Os estilhaços do capital – Eric Alliez e Michel Feher

Texto seminal, publicado em 1988, sobre a crise e transformação da sociedade capitalista nas décadas de 1960-1980, que passou de um modelo fordista e keynesiano para um de terceirização e crescente automação e informatização. Aborda a relação dessa transformação com a formação de subjetividades, a sujeição social, a escravização maquínica e maio de 1968.

Submitted by Joaos on April 22, 2018

[Nota de humanaesfera: Texto seminal, publicado em 1988, sobre a crise e transformação da sociedade capitalista nas décadas de 1960-1980, que passou de um modelo fordista e keynesiano para um de terceirização e crescente automação e informatização. Aborda a relação dessa transformação com a formação de subjetividades, a sujeição social, a escravização maquínica e maio de 1968. Este texto foi publicado originalmente como um capítulo do livro Contratempo - Ensaios sobre Algumas Metamorfoses do Capital, de Eric Alliez, Michel Feher, Didier Gille, Isabelle Stengers com um pósfácio de Félix Guattari (tradução de Maria de Lourdes Menezes).]

Os estilhaços do capital – Eric Allez e Michel Feher

De que metamorfoses é capaz o capitalismo e de que pontos de vista deixam-se elas apreender? Para responder a essa dupla pergunta seria talvez necessário questionar o próprio conceito de crise econômica que com frequência se aplica às sociedades industrializadas a partir do final dos anos 60. Tanto o liberalismo clássico quanto a teoria econômica marxista fazem da crise um período transitório: para o primeiro ela corresponde a uma interrupção da regulação mercantil, quando a regulamentação adminis­trativa entrava a lei de equilíbrio automático entre a oferta e a procura; para a segunda ela anuncia a morte próxima do capitalismo quando exprime as contradições internas que o corroem. Porém, acidental ou fatal, a crise é sempre apresentada como um momento excepcional que ne­cessariamente conduz a uma pós-crise: capitalismo "sadio" ou advento do socialismo. Em compensação, a combinação de um modo novo de regulação da atividade econômica com um novo regime de acumulação do capital, agenciamento ligado ao desenvolvimento de uma ética "neopuritana", tende a fazer daquilo que ainda costumamos chamar de crise, um estado ordinário, para não dizer permanente. Na verdade, há uns quinze anos uma certa ordem social vem se realizando e continua a realizar-se: um mundo fundamentado sobre o direito ao trabalho, que tem como objetivo o pleno emprego e o crescimento dos salários reais — um mundo regido por um capitalismo com restrições em que o capitalista encontra sua legitimidade apresentando-se como "doador" de trabalho. Entretanto, enquanto os defensores do welfate state — os que nele percebem uma via de transição para o socialismo e os que nele cele­bram a reconciliação do capitalismo com a justiça social — confundem a crise de seus próprios valores com a crise do capitalismo, este último já mudou de cara. 1

Há muito tempo o capitalismo se quis de massa. A partir da virada do século ele volta a indústria para a produção de massa e dessa maneira leva os trabalhadores a se reconhecerem e depois a se organizarem como uma massa solidária; enfim, inventa o consumo de massa para responder, ao mesmo tempo, aos riscos da superprodução e da insurreição operária. Entretanto, essa massificação generalizada não ocorre sem um consequente enrijecimento das relações sociais que, no fim das contas, confir­ma-se nefasto à rentabilidade do capital. Por esse motivo, daí por diante, o capital adota uma postura mais flexível. O espaço produtivo, até então dominado pelas grandes fábricas, tende a se disseminar pelo tecido urbano e, até mesmo, a invadir o espaço doméstico correlativamente, o tempo de trabalho, até então, regulamentado por rigorosas convenções coletivas, cada vez mais se acomoda às ne­cessidades e eventualidades da produção. Essa inflexão do processo de valorização capitalista — ou seja, do processo de formação dos valores de troca — apóia-se no incremento da noção de informação, que passa a gozar do duplo esta­tuto de recurso escasso e de mercadoria. Ou seja, um estatuto formalmente idêntico ao estatuto que o capita­lismo clássico atribui ao trabalho: ao mesmo tempo fonte de valor e mercadoria-força de trabalho. Ora, a partir do momento em que o processo de valorização se apoia mais sobre o tratamento dado à informação do que sobre o tra­tamento direto dado a matéria, o tempo de valorização pode libertar-se do tempo de trabalho concreto. Por con­seguinte, o capitalismo ocupa-se menos em organizar o espaço em esferas funcionais — essencialmente a esfera da produção das mercadorias e a esfera da reprodução da força de trabalho — do que em subsumir a integralidade do tempo sob a lei da troca desigual que é a sua própria lei. Em outras palavras, o capital não mais se contenta em "dar" trabalho — dentro de um espaço-tempo limi­tado — e em controlar o tempo livre dos indivíduos a fim de que eles continuem, dia após dia, a aceitar o dom que lhes é feito. Hoje o capital se apresenta, verdadeiramente, como um doador de tempo — de um tempo indiviso, que, conforme a expressão de Bernard Schmitt, se divide apenas nas suas afetações.2

Na prática, essa inversão da relação entre o espaço e o tempo conduz a uma ampla rede de circulação produ­tiva das informações que não mais respeita a fronteira entre as esferas — a compartimentação do tempo entre espaços produtivos e reprodutivos — e onde homens e má­quinas "inteligentes" são relés equivalentes de direito, peças do capital como máquina social. Mas essa inversão conduz também à desativação dos espaços e dos homens que não podem ser "ligados" nessa rede, seja porque não são suficientemente "informados", seja porque as infor­mações que produzem são consideradas rebeldes à forma--mercadoria. Para cada trabalhador a complementaridade entre um tempo de trabalho e um tempo livre espacial­mente limitados e sua articulação regulamentada pelo welfare state, é sucedida por uma segmentação da popu­lação entre os que estão integrados aos novos circuitos de valorização e os que, por estarem excluídos deles, vêem as suas existências especialmente precarizadas.

Poder-se-á dizer que se trata de um problema de re­conversão característica de uma crise no sentido habitual de período de transição? Nossa hipótese prefere desvendar nisso uma autêntica transformação da relação social capi­talista. O regime de assujeitamento do trabalhador ao ca­pital, que compreende a alienação voluntária de uma parte de seu tempo e de seus gestos, mas que também compreen­de a afirmação de sua identidade formal com o empresário, já que ambos se reconhecem na concepção do trabalho como domínio da natureza ou da produção como empreen­dimento comum, 3 se desvanece em proveito de um regime de escravização dos indivíduos pelo capital como engre­nagem, onde a identidade entre o trabalhahdor e o capi­talista, dessa vez, é substancial, na medida em que um e outro são partes integrantes do capital e, portanto, con­vidados a usufruir de sua acumulação — mesmo que o primeiro quase não tenha oportunidade de gastar os seus dividendos.

O antigo regime concedia, ainda que mantendo-o sob controle, o tempo livre que precipitou o seu declínio, já que fez germinar a revolta inesperada de 1968. O novo regime, que pretende tornar rentável a totalidade do tempo, por sua vez, propicia espaços e corpos vacantes, onde não se escoa senão tempo perdido. Por mais que estes sejam "denegados" pelos novos campeões da liberdade individual, abandonados pelos agentes do corporativismo operário ou ainda mistificados pelos pesquisadores impe­nitentes de uma vanguarda revolucionária, eles não assustam menos o novo rosto do capitalismo. Tanto isso é verdade, como Marx demonstrou a propósito do declínio da feudalidade, que uma formação social deve, quem sabe, temer mais os poros de sua própria pele do que as suas contradições profundas.

I — A Formulação da Crise

Uma análise, a essa altura clássica, associa a crise econômica das nações industrializadas, há já quinze anos, à invalidação de uma equação de origem marginalista, mas cujo respeito constitui a pedra de toque das políticas econômicas de inspiração keynesiana. Essa equação, que deve ser entendida como uma injunção, impõe igualar o ritmo de crescimento dos salários e o da produtividade marginal do trabalho. Ela se encarna nos "productivity deals" (acordos de produtividade), praticados nos Estados Unidos a partir do New Deal e nos países da Europa oci­dental depois da guerra, que fazem da indexação dos lucros do trabalho sobre o aumento de sua produtividade mar­ginal o objeto de convenções coletivas ocorridas entre os sindicatos e o patronato sob a égide de um Estado "árbi­tro". Esses acordos supõem que um crescimento simul­tâneo dos salários reais e dos lucros é possível desde que, como quer a equação, a produtividade prossiga. Essa concepção se opõe à crença que animou as políticas econômicas anteriores; crença em que uma relação estática de suplementaridade entre salários e lucros assim como um aumento dos salários reais só pode ocorrer em detrimento dos rendimentos do capital.

Promover uma dinâmica onde o crescimento dos salários ocorre em benefício dos lucros que eles promovem implica uma modificação do papel do Estado. Este deve, não apenas ratificar e garantir os acordos de produtividade, mas também manter, quando não planificar a dinâmica revestida por eles: por um lado, estimulando o consumo dos assalariados através do aumento das transferências sociais — previdência social... — e, por outro, sustentando os investimentos produtivos — controle das taxas de juros e política de investimentos públicos.

A maior inovação contida nessa estratégia "keynesia­na" de desenvolvimento diz respeito ao papel de piloto do crescimento reservado à demanda dos assalariados. Quanto à oferta, ela só pode corresponder à ajuda de progressos incessantemente renovados da produtividade do trabalho. 4

Apoiado e restringido ao mesmo tempo por um Estado que é árbitro do processo de distribuição dos lucros e catalisador do processo de produção, o capitalismo irá conhecer — nos países "ricos" ou do "centro" — vinte anos de crescimento relativamente equilibrado entre oferta e pro­cura, investimento e consumo, lucros e salários. Mas, na segunda metade dos anos 60, o encanto vai progressiva­mente ser quebrado: de um lado, porque o relativo consenso social engendrado pelos acordos de produtividade de repente volta a ser violentamente questionado por parte daqueles a quem eles pretendem trazer o "welfare"; por outro lado, porque o regime de acumulação do capital, no qual esses acordos se apoiam, dá os primeiros sinais de sufoco.

a) A crise por tradução forçada

A grande onda de contestação que parte dos campus universitários e atinge amplas camadas da população dos países industrializados comporta pelo menos três "corren­tes" distintas tanto por sua composição quanto pelos problemas que apresentam à ordem social do pós-guerra: assim sendo, a revolta estudantil, substituída e, em certos casos, precedida por uma franja da classe operária, de­nuncia as relações de produção capitalistas enquanto relações de poder. Isso significa que ela as considera, do ponto de vista da organização hierárquica do trabalho e do não-trabalho e não apenas do ponto de vista da pro­priedade dos meios de produção ou da repartição dos lucros, perspectivas que são as dos partidos comunistas e dos sindicatos social-democratas, respectivamente. Logo. a dominação do capital não deve ser apreendida ao nível da realização do produto como a apropriação abusiva de um ganho ou mesmo como a extorsão de uma mais-valia muito mais quantificável, mas sim ao nível daquilo que o processo de produção capitalista "faz" o trabalhador "fazer"; seja no embrutecimento a que se vê submetido, seja no trabalho propriamente dito — desqualificação, submissão cega ao movimento das máquinas —, seja no lazer regulamentado pela sociedade dita de consumo. Nos Estados Unidos, é ainda contra esse poder "pragmático" do capital e do Estado que defende seus interesses, contra aquilo que eles fazem as pessoas fazerem, que se levanta o movimento de protesto contra a guerra do Vietnã.

A segunda corrente de contestação que agita o final dos anos 60 corresponde ao surto político das minorias étnicas e culturais — inclusive o movimento feminista, mesmo que as mulheres sejam quantitativamente majori­tárias —, cujas reivindicações são ambivalentes frente aos acordos de produtividade e ao consenso que pretendem promover. Em nome do princípio: para igual trabalho, igual salário e igual proteção, os movimentos minoritários pedem a ampliação dos acordos de produtividade e dos direitos que atribuem a seus membros, quando estes estão excluídos desses direitos. Mas, ao mesmo tempo, esses movimentos fazem valer a sua autonomia, ou seja, a irre­dutibilidade dos gostos e das necessidades dos indivíduos que eles representam, aos gostos e necessidades dos assa­lariados nacionais, brancos, machos e adultos. Dessa ma­neira, quando afirmam suas singularidades e investem contra a homogeneização induzida pelo processo de tra­balho e pelas normas de consumo capitalistas, as minorias reencontram a atitude de rejeição característica da cor­rente radical de contestação. Em contrapartida, quando se limitam a pedir a igualdade dos direitos e se levantam contra a discriminação de que são vítimas, esses mesmos grupos minoritários reassumem as reivindicações do mo­vimento operário tradicional.

Quanto a este último, de onde emana a terceira cor­rente de contestação — mas desta vez trata-se de uma corrente mais reativa do que ativa — ele percebe como uma ameaça "pessoal" o questionamento do trabalho como cimento de uma identidade coletiva na qual todos os indi­víduos despossuídos daquilo que produzem, não podem deixar de reconhecer-se orgulhosamente. Adequados a um regime capitalista onde obtiveram seu lugar e onde agem não só como uma imposição incontornável mas também como um elemento regulador, os partidos e organizações que se valem dos trabalhadores não toleram de forma algu­ma que experiências baseadas nas relações sociais apelem para outras "substâncias" que não sejam o próprio traba­lho, ou para outras "formas" que não sejam a relação salarial. Consequentemente, eles irão anatematizar como "esquerdista" a revolta estudantil e os seus prolongamentos nos meios operários, e conjurar as exigências de singula­ridade oriundas dos grupos minoritários que exigem a regularização de seus estatutos, resguardando apenas as suas reivindicações de igualdade.

De um modo geral, as três partes do consenso keynesiano — o Estado, o patronato e os sindicatos — irão lançar-se conjuntamente num vasto empreendimento de tradução forçada, onde é necessário converter em termos quantitativos compatíveis com o sistema das convenções coletivas, as propostas "qualitativas" de transformação social, cuja difusão abala o modo de regulação social origi­nário dos primeiros acordos de produtividade e ameaça seus beneficiários. Nos Estados Unidos esse empreendimento se consolida, principalmente, pela instituição de um salário mínimo indexado com base nos salários industriais prote­gidos, em proveito de certos grupos sócio-profissionais desfavorecidos, como por exemplo os trabalhadores agrí­colas. Na Europa ocidental, o empreendimento reforça a rigidez dos salários em baixa e conduz a novos acordos que condicionam a sua elevação à elevação do nível geral dos preços — acordos de Grenelle na França, Statuto dei Lavoratori na Itália, Arbeitsfõrderungsgesetz na R.F.A. Do ponto de vista de seus autores que manifestaram sua concordância, essas diversas medidas vão obter sucesso, no sentido em que elas conseguem abafar o alcance insurrecional do movimento contestatório: na Europa, os estudan­tes, frequentemente afogados na sua própria retórica operaista, 5 deixam-se tetanizar pela reação das grandes organizações operárias. Nos Estados Unidos, a maior parte das organizações minoritárias reunidas no movimento dos direitos civis sacrifica um pouco a afirmação de sua hete­rogeneidade para apostar em sua integração na sociedade americana. Entretanto, se o vento da revolta tende a se acalmar, as proteções e vantagens salariais concedidas para esse fim não são compensadas por progressos equi­valentes por parte da produtividade do trabalho. Por isso irão provocar a inflação "galopante" do final dos anos 60 e do início dos anos 70, que não faz senão traduzir uma falha com relação aos acordos de produtividade e à equa­ção que os mantém.

Entre 1968 e 1974, os governos ocidentais alimentam uma relação muito ambivalente com a inflação que as suas economias sofrem. É verdade que o seu caráter irre­gular, acentuado pelo desmantelamento do sistema mo­netário internacional — inconvertibilidade do dólar em ouro, depois supressão do sistema das taxas de câmbio fixas — entrava a retomada dos investimentos a longo prazo, indispensáveis à retomada da produtividade. Mas, em contrapartida, sua persistência tende a limitar, ou até mesmo a anular a diferença positiva entre o crescimento dos salários reais e o crescimento da produtividade, trans­ferindo para o capital, através do aumento dos preços, uma boa parte do aumento dos salários nominais. 6 Em 1974, com o primeiro choque do petróleo, a espiral infla­cionária atinge um nível crítico. O aumento brutal dos preços do petróleo e dos custos embutidos leva os gover­nos ocidentais passar de uma política de sustentação do crescimento — bem ou mal, protegido pela flutuação das divisas — a uma política deflacionária que leva o mundo industrializado a uma era de recessão. Entretanto, se a estagnação da atividade produtiva provoca o crescimento do desemprego, ela não é suficiente para reabsorver a inflação, pois o temor de um recrudescimento das pertur­bações sociais força os governos e as organizações patronais a considerar a rigidez dos salários em baixa e o cresci­mento regular das transferências sociais como outros tantos "direitos adquiridos" pela classe operária. Sem dúvida, a terapia de austeridade relativa praticada pelos países industrializados consegue moderar a inflação, de tal ma­neira que, a partir de 1976, os governos falam em saída da crise e tomam medidas de retomada do crescimento. Entretanto, foi apenas um pequeno interlúdio: precipitada pelo segundo choque do petróleo que se seguiu à revolução iraniana, a inflação logo irá retornar ainda mais forte e, dessa maneira, aparecer como o sintoma da crise que con­dena a "fórmula" do capitalismo do pós-guerra aplicada pelas convenções coletivas e as políticas orçamentárias keynesianas. 7 Uma nova ortodoxia "monetarista" se apo­dera dos goverantes ocidentais que, a pretexto de serem responsáveis por uma política de "rigor" contra os "exces­sos" dos anos 68/73 (os quais, entretanto, conjuravam, traduzindo-as, propostas muito mais audaciosas), pretendem modificar em profundidade a regulação social da atividade econômica — isto é, as instituições, os procedimentos e as práticas que a regem.

b) A crise por sufoco

Mesmo que a crise dos últimos quinze anos seja uma crise da produtividade, alguns autores adiantam que ela não é apenas induzida pelo congelamento dos baixos salá­rios, pelo crescimento contínuo das transferências sociais e pela alta do preço do petróleo, mas que ela advém, sobre­tudo, do declínio de um certo agenciamento entre a organização do trabalho, a alocação do capital e os tipos de produtos oferecidos, agenciamento que define o regime de acumulação capitalista já há meio século. Esse regime, frequentemente qualificado de "fordista", comporta dois aspectos solidários, mesmo que eles não se formem no mesmo momento.

A primeira vertente do fordismo que aparece a partir do final da primeira guerra mundial, diz respeito à esfera produtiva propriamente dita. Ela completa aquilo que Marx chama de recomposição maquínica do processo de trabalho, isto é, a concentração nas grandes fábricas de uma mão-de-obra pouco qualificada, privada de iniciativa, que é cega ao processo global de fabricação dos produtos e está presa ao movimento cada vez mais automático das máquinas, das quais será, logo, apenas uma auxiliar. Para chegar aí, será preciso abstrair e sistematizar o savoir-faire dos operários do ofício, depois, redistribuí-los con­forme os métodos do "scientific management" em amplas coletividades de operários que efetuem apenas um trabalho parcelar (é o estágio do taylorismo) e finalmente, incorporando-o a máquinas que se interponham entre os tra­balhadores que as acionam e os produtos sobre os quais elas agem diretamente (estágio do fordismo propriamente dito). A intensificação do trabalho completada pela sua decomposição taylorista e depois pela sua recomposição maquínica ou fordista aumenta rápida e consideravelmente a sua produtividade. Esse aumento da produtividade do trabalho exprime-se, então, em termos de economia de escala: a concentração da força de trabalho em longos encadeamentos, o parcelamento dos gestos que caracteriza a sua utilização e a especialização crescente das máquinas às quais está sujeitada, orientam a atividade econômica na direção da produção em grandes séries de mercadorias padronizadas. Esse regime, dito de acumulação intensiva, se expõe, desde então a uma crise de superprodução se não for criada uma demanda correspondente às suas capa­cidades.

A segunda vertente do fordismo que se apresenta a partir de 1933 nos Estados Unidos — exatamente como resposta à grande crise de superprodução que eclode em 1929 — e entre 1945 e 1950 nos outros países ocidentais, dedica-se a criar essa demanda, desenvolvendo o consumo de massa: trata-se de centrar a produção nos bens de consumo — e nos bens de equipamento susceptíveis de produzi-los — que sejam ao mesmo tempo suficientemente numerosos e suficientemente baratos para que os próprios trabalhadores possam adquiri-los. Daí vem a fórmula atri­buída a Henry Ford: nossos operários devem ser também nossos clientes. Assim, para integrá-los à acumulação capi­talista será necessário, por um lado, impor-lhes normas de consumo, ou seja conduzi-los à demanda dos produtos que lhes são oferecidos e, por outro lado, prever o crescimento real de sua renda segundo uma taxa idêntica às taxas de crescimento da produtividade marginal do trabalho. Em suma, chegou o tempo das políticas keynesianas de sus­tentação da demanda e dos acordos de produtividade. 8

Observaremos também que o fordismo constitui um modelo de crescimento relativamente autocentrado: os operários nacionais, na verdade, são em grande escala os consumi­dores das mercadorias que produzem; portanto, o território nacional define um espaço de valorização consistente, para não dizer autônomo. Por isso é que o Estado — além do seu papel de árbitro e de catalisador — fornece, enquanto Estado-Nação, a moldura do processo de produção e marca o consenso social com o selo da soberania nacional.

Ora, a partir de meados dos anos 60, antes mesmo que a onda de contestação atinja o seu ápice, esse regime de acumulação intensiva do capital fundamentado sobre a produção e o consumo da massa deixa entrever os seus limites. O primeiro fator de declínio reside na saturação progressiva dos mercados internos. Piore e Sabei indicam que, em 1970, 90% dos lares americanos possuem uma televisão, uma geladeira e uma máquina de lavar e que, em 1979 um americano em cada dois — contra um em cada quatro em 1950 — é proprietário de um automóvel. Parece, então, que o mercado interno dos bens de consumo duráveis e produtos em séries, pilares do crescimento dos anos 50 e 60, não dispõe de margens para se estender. 9 Na medida em que os outros países ocidentais estão numa situação semelhante e que os mercados internos da maio­ria dos países em vias de desenvolvimento são incapazes de fornecer demanda adequada a essa oferta, o que se recoloca em questão é a expansão a nível mundial do par produção/consumo de massa. Essa inflexão, pelo menos prospectiva, do crescimento em volume logo repercute sobre a produtividade, já que, num regime de acumulação do tipo fordista, a produtividade se apoia essencialmente nas economias de escala. Por certo, mesmo em escala constante, existe uma segunda fonte de crescimento da produtividade: ela consiste no que Marx chama de compo­sição orgânica do capital, isto é, uma busca de substituir o homem pela máquina na realização do trabalho. Mas também esse "progresso" se vê entravado em razão do poder adquirido pelos sindicatos no decorrer do período de pós-guerra. Esses sindicatos, com efeito, impõem uma forte resistência à automação da produção, já que ela é medida pela perda de empregos. O peso da resistência sindical se reencontra ainda no terceiro fator da estagnação da pro­dutividade que diz respeito aos problemas de reconversão que o capitalismo reencontra a partir do final dos anos 60: a defesa do direito ao trabalho ratificado pelo caráter autocentrado do modo de desenvolvimento em vigor, fre­quentemente, torna muito difícil o abandono das fábricas, até mesmo de seções cujo aparelho produtivo, envelhecido, sofre a concorrência seja de produtos substitutivos, seja de países recentemente industrializados que se "beneficiam" de custos salariais muito menos elevados. Um segundo problema de produtividade ligado à reconversão se prende, ao contrário, às novas atividades econômicas que se desen­volvem nos anos 60: a saturação progressiva da demanda pelos bens industriais de consumo e o desenvolvimento de uma demanda mais "qualitativa" — cuja vertente mais radical se exprime na revolta contra a própria sociedade de consumo — dão lugar, então, a título de antecipação e de conjuração desse deslocamento desses desejos e necessidades, a uma explosão do setor terciário, ou seja, da oferta de serviços. Ora, até a sua informatização, que ocorre atualmente, o crescimento da produtividade do trabalho no domínio dos serviços, é, necessariamente, muito inferior à produtividade que a indústria manufatureira permite. 10 Enfim, o quarto fator do declínio da produtividade, estrei­tamente ligado ao problema da reconversão, sob o seu primeiro aspecto, reside na concorrência imposta às antigas nações industrializadas pelos novos países industriais. No decorrer desses mesmos anos 60, certos países da América do Sul e do Sudeste Asiático já dotados de uma mão-de-obra urbana — ao mesmo tempo abundante e pronta para o trabalho industrial, mas pouco organizada e por con­seguinte barata — acolherão as linhas de montagem das empresas ocidentais às voltas com os "direitos adquiridos" e a combatividade das organizações operárias em seus países de origem. Com a ajuda dos governos locais e sob estatutos jurídicos que assegurem o reinvestimento de uma parte relativamente importante dos lucros da explo­ração no país que as acolhe, essas empresas entregam-se, aí, à produção de mercadorias manufaturadas, destinadas, em primeiro lugar, à reexportação. E também, prosseguin­do com a exportação de suas matérias-primas, os novos países industriais logo se tornam exportadores, para a Europa e para os Estados Unidos, de bens de consumo duráveis: têxteis e eletrônicos no Sudeste asiático, auto­móveis ou/e peças de reposição na América do Sul. Como os fretes são amplamente compensados pela diferença dos custos salariais e sociais entre países do "centro" e "peri­feria" recentemente industrializada — ao que é necessário acrescentar o espantoso ritmo imposto aos trabalhadores da Coreia do Sul, de Formosa ou de Singapura — e como as taxas de reinvestimento dos lucros de exportação é bem mais elevada nos novos países industriais — por causa da pequena pressão exercida pelos seus mercados internos — a concorrência das firmas instaladas em seus territórios com as firmas que permanecem na Europa Oriental ou nos Estados, rapidamente reverte em benefício das pri­meiras. Tudo ocorre, portanto, como se a multinacionalização do capital ou, mais exatamente, a sua transnacionalização que corresponde à elevação dos custos de pro­dução dentro da rede internacional fordista — ou seja, fundamentada sobre as relações entre Estados-Nações autocentrados — ainda tivesse acentuado a crise da pro­dutividade do trabalho nos países que o compõem. 11

Aos cinco fatores de inflexão da produtividade nos países do fordismo, a saber, o achatamento da demanda interna que diz respeito aos bens de consumo duráveis e aos bens de equipamento que servem para produzi-los, a resistência operária à substituição da força de trabalho pelo capital fixo, os dois problemas ligados à reconversão industrial e à concorrência imposta pelos novos países industriais, é ainda necessário acrescentar um sexto, que nasceu por sua vez das reações à inflação de 68 a 73, e que reside no estreitamento do horizonte econômico dos deten­tores de capital-dinheiro.

Privados de perspectivas estáveis, estes chegam a pre­ferir os investimentos a curto prazo e a especulação sobre o câmbio aos investimentos de capital de risco (investi­mentos a longo prazo, pois a produção de massa supõe uma planificação rigorosa). A crise da produtividade se acrescenta, então, à do "espírito de empreendimento", ou seja, a crise do valor-sinal do capitalismo industrial.

Em resumo, para além do enfraquecimento das políti­cas de inspiração keynesiana centradas na manutenção da demanda, é mesmo com os limites do regime de acumula­ção fordista que as nações industrializadas se chocam a partir do início dos anos 70. Esses limites aparecem na vertente do consumo de massa e de suas normas, enquanto o crescimento planificado da demanda se entusiasma, assu­me um movimento qualitativo e contestatório, cuja tra­dução forçada em termos quantitativos — monetários — provoca um desequilíbrio que, mantendo a "forma" das convenções coletivas, esvazia de sua substância os acordos de produtividade. Mas esse desequilíbrio entre o cresci­mento dos lucros e o crescimento da produtividade do trabalho remete, também, ao esgotamento progressivo do outro aspecto do fordismo, ou seja, a produção de massa. Em crise, nas suas duas vertentes, o capitalismo do pós--guerra vai progressivamente, portanto, mudar de "fór­mula": por um lado, adotando um novo modo de regulação — ou de desregulação — destinado a reabsorver a inflação; e, por outro lado, engajando-se em um novo regime de acumulação do capital.

II — A Regulação Neoliberal

Em seguida ao segundo choque do petróleo, os diri­gentes ocidentais, no conjunto, deixaram-se levar pelo monetarismo. Por isso acionaram medidas de restrição ao crédito (provocando um aumento brutal das taxas de juros) e de austeridade orçamentária (atingindo principal­mente os gastos sociais) que submeterão suas populações a dois novos períodos de recessão (em 1980, depois em 1982 e 1983). Mas para além de seus efeitos conjunturais, a estratégia que anima essas medidas exprime uma verda­deira doutrina e, nesse sentido, pretende suplantar os esquemas keynesianos que durante trinta anos impregna­ram os atos governamentais e também as ações das em­presas. Assim sendo, no momento do primeiro choque do petróleo, a política de austeridade dirigida pelos conser­vadores pragmáticos assumiu, para eles, a forma de um parêntese, e de maneira alguma colocava em questão a fé num crescimento simultâneo e complementar dos salários e dos lucros, nem sequer no papel motor conferido à demanda apoiada no consumo dos assalariados. Já o novo conservadorismo que se apodera da cena política entre 1978 e 1980, é bem diferente, visto que em nome da equação que o sustenta, equação que eles pretendem restabelecer, os seus arautos denunciam as convenções coletivas e a doutrina dos direitos adquiridos que delas procede. Se o assunto em questão permanece sendo o alinhamento da evolução dos salários com a evolução da produtividade marginal do trabalho, os meios políticos para chegar a isso passam a ser o abandono dos instrumentos que servi­ram para forjar os acordos de produtividade e, especial­mente, o recuo do Estado como árbitro e como interventor direto.

O aumento das despesas públicas e, em particular, o crescimento explosivo das transferências a partir do final da segunda guerra mundial são acusados de aumentar os lucros disponíveis do trabalho para além do que é autorizado pela progressão de sua produtividade marginal. E, correlativamente, as receitas fiscais necessárias para finan­ciar esses orçamentos sociais são consideradas como o principal fator que desencoraja o investimento. A doutrina neoliberal ou neoconservadora chega, então, para restaurar a ideia de uma proporcionalidade inversa entre a evolução dos salários reais e a evolução dos lucros. Por isso, de um lado ela se propõe a controlar estritamente o aumento das transferências quando deixa de proteger os salários e, de outro, a favorecer o aumento dos lucros do capital a fim de promover os investimentos produtivos. Uma tal concepção supõe vários tipos de medidas cuja ressonância define a estratégia neoliberal:

1 º — a limitação, talvez até a supressão dos salários garantidos: operações que são, pudicamente, qualificadas como retorno à competição no mercado de trabalho;

2 º — O aumento das taxas de juros que desestimula o empréstimo e favorece a poupança em detrimento do consumo;

3 º — a diminuição das receitas públicas particular­mente do imposto sobre as sociedades e as rendas elevadas (obviamente mais "inclinadas" à poupança e aos lucros modestos) a fim de reconstituir as margens das empresas e de acumular uma poupança susceptível de ser investida produtivamente;

4 º — Essa diminuição das receitas é correlativa à diminuição das despesas públicas e bem particularmente dos orçamentos sociais. De fato, estes são improdutivos — pelo menos de imediato — constituem subvenções para o consumo e prejudicam o entusiasmo no trabalho dos assalariados, criando neles uma mentalidade de "assis­tidos".

O programa conservador de restauração do laço estrito entre salários e produtividade do trabalho passa, portanto, pelo desmantelamento das instituições e pelo abandono das práticas através das quais ele se estabeleceu. Poder-se-ia dizer que se trata de uma mudança de método, bem radical é verdade, a serviço de uma finalidade idêntica? Entretanto, essa solução de continuidade negligencia uma reversão dos termos no próprio cerne do objetivo visado. Aqueles que concebem os programas keynesianos poderiam adiantar, com mais ou menos razão, e eles não deixam de fazê-lo, que encaram o aumento da produtividade como uma condição necessária, enquanto que o aumento dos rendimentos do trabalho constituiria, ao mesmo tempo, sua finalidade e a prova de que a sua política otimizaria o consenso social. Entretanto, pelo contrário, os novos arautos do liberalismo promovem bem abertamente o aumento da produtividade como um fim em si, e o aumento dos salários como uma restrição a ser minimizada. A pri­meira tarefa dos governos conservadores consiste, pois, em fazer com que os assalariados deixem de viver acima de seus meios, ou para dizer mais exatamente, acima dos meios do capital que lhes "dá" trabalho.

Para fazer isso, como reza o credo liberal, eles proce­dem à liberação das forças do mercado entravadas pela política contratual na escala do Estado-Nação. Entretanto, constatamos duas grandes diferenças entre o liberalismo tradicional e o neoliberalismo.

A primeira divergência diz respeito à política orça­mentária: a política econômica liberal e sua herdeira ortodoxa, o monetarismo de estrita obediência esboçado por Milton Friedman nos anos 50, preconizam o recuo do Estado em assuntos orçamentários: limitação das despesas públicas de qualquer natureza, correlativa diminuição dos impostos e condenação dos investimentos públicos. O objetivo é apresentar um orçamento equilibrado e de vo­lume reduzido que não pese nem sobre os preços nem sobre os salários. A intervenção do Estado deve limitar-se à oferta de moeda: essa é a palavra de ordem monetarista. E trata-se de modular essa oferta a fim de controlar a inflação. Em contrapartida, os defensores da política dita de oferta, pontas-de-lança da ofensiva neoliberal, atribuem-se a tarefa essencial de reativar os investimentos, e, através deles reativar a produtividade do trabalho. Por isso eles se ocupam muito menos do equilíbrio do que da descriminação orçamentária entre as despesas públicas produtivas e improdutivas. Nos Estados Unidos, a partir da eleição de Ronald Reagan, a divergência entre as duas tendências se cristaliza rapidamente, divergindo em torno da questão das despesas militares, que promovem, ao mesmo tempo, a reativação dos investimentos (o Estado compra as armas e o equipamento militar e financia diretamente a sua pesquisa e desenvolvimento), e o déficit orçamentário. Entre monetaristas estritos e "supply siders", até agora a administração Reagan tem optado pelos se­gundos, campeões do que poderíamos chamar de acumu­lação primitiva permanente. Em um artigo já citado, Harry Cleaver demonstra que a política da oferta insiste menos na oposição entre economia de mercado e inter­venção estatal, ou mesmo no deslocamento da atenção da demanda para a oferta (mesmo que esta se beneficie do achatamento ou da baixa dos impostos), do que numa modificação na composição da demanda, que trata de orientá-la para o investimento — através da poupança e da reformulação orçamentária — em detrimento do con­sumo. 12 Em outras palavras, o objetivo dos supply siders é o de transferir maciça e regularmente, isto é, no quadro de um novo modo de regulação, as rendas das famílias para as empresas, sem recorrer à inflação. Sem dúvida, precisamos ver nisso, para além do liberalismo, um retorno ao puritanismo das origens, ao produzir por produzir que, para retomar a fórmula de Max Weber, é apenas "o espí­rito do capitalismo". Mais exatamente, todo o problema consiste em compreender que aspecto essa ética irá "assumir" (através de que figuras e para produzir quais efeitos) numa sociedade impregnada ao mesmo tempo pelas normas e pelo relativo conforto ligados a trinta anos de consumo de massa, e que mal acaba de voltar a si do turbilhão de revolta que por um longo instante a per­passou.

A segunda divergência entre o liberalismo e o neolibe­ralismo contém um elemento de resposta a essa questão. Ela diz respeito à ideia que os neoconservadores fazem do mercado ou, mais exatamente, da função principal que lhes atribuem. Por causa disso pudemos nos espantar com a sua oposição às leis antitrustes, emanação da doutrina liberal em matéria de livre-concorrência. Podemos lembrar que essa denuncia não só os acordos explícitos, mas tam­bém as concentrações efetivas dos mercados na medida em que ela intenta produzir resultados econômicos equivalen­tes aos de uma entente, mesmo quando não ocorre um ver­dadeiro conluio entre os produtores. Sob essa ótica, a lei Sherman de 1890 aparece como um ato de defesa da con­corrência sadia contra os excessos de um capitalismo sel­vagem entregue totalmente ao laissez-faire. Pelo contrário, para um neoliberal como o filósofo libertário Roy Childs Jr., a ideia da lei da selva como lei dominante do capita­lismo é muito mais uma invenção ideológica, fruto das crises, do que uma causa das crises. 13 Ela age como um fantasma coletivo utilizado por todos aqueles a quem a reestruturação industrial diz respeito diretamente, a fim de obter dos poderes públicos a proteção que eles pedem. Por isso, a legislação antitruste foi concebida, dentro de uma ótica conservadora, muito mais para proteger situações já alcançadas, ameaçadas por um fenômeno de reclassifica­ção industrial bastante semelhante aos que conhecemos hoje em dia, do que como um instrumento que tivesse por objetivo restaurar um clima de concorrência sadia. A partir daí, os processos de integração vertical são — de acordo com o raciocínio neoliberal — globalmente justifi­cados, já que contribuem para aumentar a eficiência do mercado e a mobilidade econômica, quando eliminam as empresas inadaptadas à concorrência internacional. A concepção do mercado que subtende uma tal tomada de posição difere consideravelmente daquela que prevalece entre os economistas clássicos e neoclássicos. Por conse­guinte, a restauração e a regulação mercantil desejada pelos neoliberais não assume a forma de um retorno à lei de Jean-Baptiste Say sobre o equilíbrio automático entre a oferta e a procura (desde que não ocorra ingerência do Estado ou de qualquer outro agente não econômico na livre circulação dos recursos e dos produtos), nem tam­pouco ao mercado walrassiano de concorrência pura e perfeita. 14 O equívoco dessas construções antigas, na ideia dos renovadores do liberalismo, é que elas consideram a perfeita mobilidade dos recursos humanos e materiais, assim como da difusão sem entraves dos conhecimentos, "dados" que o mercado terá que tratar no sentido de um equilíbrio geral entre a oferta e a procura. Uma concep­ção assim é duplamente recusada: primeiro, e com justiça, é considerada contraditória com a manutenção do próprio liberalismo, na medida em que uma circulação perfeita­mente fluida dos homens, das mercadorias e das informações "longe de promover uma situação de concorrência atomizada, levaria a uma lógica de monopolização univer­sal, de acordo com as previsões de Marx, e desembocaria inevitavelmente na tomada da economia por um poder central". 15 Mas, sobretudo, os economistas neoconservadores insistem na viscosidade que, em todas as sociedades complexas, prejudica tanto a mobilidade dos homens e das coisas quanto a difusão dos conhecimentos. A partir daí, a razão de ser da economia de mercado consiste muito menos em sua função de reequilíbrio entre a oferta e a procura, ou seja, em seu caráter homeostático, do que em sua função de aceleração ou da "fluidificação" da cir­culação dos diversos recursos, isto é, no seu caráter dinâ­mico. Em outros termos, o mercado não é mais, apenas o lugar anônimo onde se trocam bens e serviços, mecanismo estático onde as carências disseminadas no corpo social supostamente se anulam umas às outras. Ele se torna es­sencialmente o instrumento dinâmico da mobilização optimal (no duplo sentido do termo mobilização) dos recursos raros: assumindo a forma de mercadorias negociáveis, elas são, ao mesmo tempo, recrutadas pelo capital e afetadas pelo seu coeficiente e fluidez maximal. Esse foi o destino do trabalho na origem do capitalismo: fator de produção ele pode, e na verdade será, de maneira bastante eficaz explorado sob a forma de mercadoria-força de trabalho. Mas, hoje, figuras importantes do movimento neoconservador como Friedrich Von Hayek e George Stigler preten­dem infligir a mesma sorte ao que eles chamam de infor­mação. 16 Uma vez admitido que: 1.°) a importância as­sumida pela pesquisa e pelo desenvolvimento faz da infor­mação um fator de produção, 2.°) a circulação da infor­mação no corpo social — a única que a torna produtiva — é necessariamente imperfeita, e 3.°) a expansão da ciberné­tica, das ciências da comunicação e de suas aplicações eletrônicas apóiam-se na possibilidade de medir a informação (graças ao bits definidos pela álgebra de Boole), torna-se ao mesmo tempo necessário e possível fazer da dita informa­ção uma mercadoria plena, para que seja possível assegurar a mobilização optimal dos conhecimentos. Mesmo que os ganhos de produtividade originários da introdução da in­formática na indústria e nos serviços possam ser percebi­dos como a recaída conversão, esta define, antes de tudo, uma expansão da esfera mercantil a novos recursos, expan­são que corresponde aos limites que encontra a intensifi­cação do processo de exploração dos antigos recursos. Mas essa transformação da informação em mercadoria, em nome da maximização de sua eficiência, ou seja, da minimização dos entraves a sua difusão, ainda produz um outro efeito. A proposição de que o mercado optimiza a mobilização das informações é necessário logo acrescentar um corolário im­plícito, este corolário enuncia: o mercado só promove a circulação das informações facilmente negociáveis. A par­tir daí, o efeito sobre a teoria econômica da elevação da noção de informação ao papel de recurso raro e de fator de produção se duplica, através de um efeito prático sobre os conhecimentos e sua disseminação (e mais comumente sobre a cultura e o pensamento) com a sua transformação em mercadorias, isto é, com a sua submissão às leis de mer­cado. 17 Com relação ao liberalismo clássico, parece que o limite da não ingerência política na regulação mercantil, imposto por Jean-Baptiste Say, está invertido, pois o mer­cado pretende reger até mesmo a difusão das ideias. E para fazer isso. é menos necessário controlar os fluxos de informação do exterior (através da intermediação de um Estado-policial e de seus aparelhos ideológicos) do que sub­metê-los aos critérios e desempenho das mercadorias: no caso, a minimização dos custos medidos pelo tempo neces­sário para formular e compreender a informação, e a ma­ximização do seu valor de troca pela multiplicação das re­ferências, o que lhe permite alcançar um vasto público. (Talvez estejamos nos referindo à definição econômica de um certo pós-modernismo.) Bem mais do que isso, é a pró­pria noção de liberdade que, decalcada sobre a de livre circulação das informações-mercadorias, encobre apenas um vasto empreendimento de homogeneização em que só são divulgadas as mercadorias que vendem bem, ou seja, as informações que circulam rápido.

De um modo geral, se examinarmos o papel do orça­mento ou a definição de mercado, a corrente neo liberal se distingue das ortodoxias clássicas e neoclássicas porque professa o abandono da categoria de equilíbrio macroeco­nômico geral e, correlativamente, recorre a uma mobili­zação não menos geral dos recursos. A rentabilidade do capital, em cujo nome esse apelo é feito abertamente, não é mais considerada apenas o resultado do ajustamento das utilidades individuais ou uma condição de crescimento dos lucros reais através da elevação da produtividade do tra­balho: a qualidade mais importante que os neoliberais atribuem a um capitalismo sem entraves consiste na in­comparável fluência que ele confere aos movimentos dos homens, das riquezas e das palavras. A renovação do ca­pitalismo, da qual a crise é, ao mesmo tempo o indício e o meio, por conseguinte, exige duas coisas: 1.°) que a fluên­cia mercantil não seja mais entravada, que ela possa di-fundir-se livremente em todas as malhas do tecido social e 2.°) que, graças a essa difusão, o objetivo de rentabiliza­ção do capital assuma a forma de uma ética individual, mesmo para aqueles que não pertencem à "classe" capi­talista.

III — A Acumulação Neofordista

Se à tradução inflacionária das perturbações sociais dos anos 60 corresponde um modo de regulação que per­mite transferir para o capital uma parte crescente dos lucros do trabalho e fazer da ampliação da valorização capitalista o objeto de uma ética, o esgotamento do for­dismo, em sua vertente produtiva, corresponde à aparição de um novo regime de acumulação. Apenas esboçado, esse regime deixa-se apreender, entretanto, a partir de modi­ficações que afetam os campos da geografia industrial e da ergonomia e que desembocam em um novo tipo de estratificação social.

a — A transnacianalização do capital

Na medida em que a proteção dos trabalhadores as­segurada pelas organizações operárias dos países industrializados leva o capital a se multi —, ou melhor dizendo, a se transnacionalizar, a antiga bipartição entre países ricos e países pobres cede lugar a uma tripartição na qual, entre o "centro" e as regiões mais desfavorecidas, se forma uma região intermediária, entregue ao que Alain Lipietz chama de taylorização primitiva e de fordismo periférico. O taylo­rismo primitivo aplica-se às indústrias de mão-de-obra, como a indústria têxtil, ou à eletrônica, fundamentadas sobre um trabalho fragmentário e repetitivo, porém, não integrado nem submetido a uma rede de máquinas. Os mercados para a produção são procurados, essencialmente entre os países do centro, enquanto os lucros — que a su-perexploração do trabalho torna consideráveis — são em grande parte reinvestidos no local. O fordismo periférico aplica-se, basicamente, às indústrias que procederam à recomposição maquínica de seu processo de trabalho. Seus produtos, principalmente os bens de consumo duráveis e as peças de reposição são, parcialmente, destinados ao mercado interno, isto é, às classes médias locais e, em certa medida, à própria classe operária. Entretanto, trata-se de um fordismo "periférico" de um lado porque, em primeiro lugar, a demanda visada é a dos "antigos" países indus­triais — que o mercado interno dos países recém-industrializados é levado a seguir e a imitar, e de outro lado porque a engenharia e a fabricação qualificadas, a mon­tante das linhas de montagem, frequentemente, permane­cem nos países do centro. 18

Essa nova tripartição, ela mesma sujeita a numerosas divisões internas, define as regiões cujas fronteiras não coincidem com as fronteiras dos Estados Nacionais. Assim, a periferia recém-industrializada consiste em uma série de metrópoles florescentes. Estas, é bem verdade, drenam para as suas favelas a população rural de seus países, nos quais o desenvolvimento é, ele mesmo, muito desigual, e praticamente não atinge o resto do território nacional. Em contrapartida, a concorrência exercida pelas metrópoles periféricas contribui para o aumento de um desemprego estrutural nos países do centro, e até mesmo para o apa­recimento de verdadeiras áreas de subdesenvolvimento den­tro das nações mais ricas. A transnacionalização do capital que, progressivamente, substitui a sua integração num sistema internacional tende, portanto, a produzir uma transnacionalização correlativa das favelas. Além disso, ela também tende a modificar o papel das políticas econômicas governamentais. Na medida em que o mercado mundial encobre um recorde onde os Estados Nacionais aparecem cada vez menos como elementos autônomos, os governos se submetem, muito mais facilmente, às condições de ren­tabilização do capital transnacionalizado do que aos acor­dos de produtividade internos. 19

b — A especialização flexível

A inflexão da demanda por produtos em série que, nos anos 60, se origina de uma mistura de saturação e de contestação do consumo de massa e de suas normas, leva as empresas a traduzir as reivindicações de "qualidade" em termos de poder de compra, mas também em termos de poder de oferta. Daí a criação de uma infinidade de servi­ços mercantis adequados às novas necessidades, os quais se preocupam com a qualidade da vida, que participam da adaptação da oferta às tendências "anormais" da deman­da. Mas essa tradução-conjuração também afeta a produ­ção industrial dos bens de consumo, onde ela assume três formas distintas e, numa certa medida, sucessivas. Inicial­mente a de variantes aplicadas dos modelos em série, mas que são, elas próprias, produzidas em grande escala. Em seguida a de elementos distintivos produzidos em número limitado, enxertados em objetos de base ainda padroniza­dos. E finalmente., a de mercadorias inteiramente concebi­das como séries restritas. Essa evolução implica, ao mesmo tempo, na redução e na requalificação dos coletivos de tra­balho, elas mesmas ligadas à introdução de máquinas ver­sáteis, isto é, adaptáveis à modificação contínua dos pro­dutos. O computador capaz de agenciar múltiplos sistemas lógicos a uma mesma matriz constitui, evidentemente, a máquina paradigma do que Piore e Sabei chamam de "espe­cialização flexível" em oposição às máquinas estritamente dedicadas à produção maciça de mercadorias homogêneas. 20 Ora, a partir do momento em que a composição da demanda desencoraja a busca sistemática de economias de escala e que a introdução de novas máquinas, que admi­tem constantes mudanças de programa, fazem baixar, consideravelmente, os custos relativos da produção em sé­ries limitadas, a dita especialização flexível abandona as margens da sociedade industrial (onde subsistia na qua­lidade arcaica de artesanato, no mais das vezes dedicado aos produtos de luxo) para apresentar-se como um autên­tico modelo de desenvolvimento. Por conseguinte, assistimos a um novo surto do trabalho qualificado, executado por equipes restritas e ao renascimento das pequenas e mé­dias empresas — responsáveis desde 1970 pela maioria dos empregos nos países industrializados. Entretanto, é pre­ciso observar que, se essas pequenas e médias unidades de produção necessitam de pessoal qualificado e, principal­mente, promovem novas qualificações, ao mesmo tempo, elas recorrem a uma mão-de-obra desprovida de qualquer qualificação. Essa mão-de-obra, contratada por tempo de­terminado ou subcontratada, é frequentemente utilizada pelos pequenos empresários em condições contrárias ao di­reito do trabalho, ou pelo menos fora de seu alcance, para cumprir tarefas subalternas, mas indispensáveis ao funcio­namento do regime de especialização flexível. Em outras pa­lavras, as pequenas empresas dinâmicas, tão orgulhosas das relações de cooperação quase familiares que seus dirigentes mantêm com o pessoal qualificado, às vezes, assumem a atitude de "sweat shops" para a mão-de-obra não qualifi­cada que elas empregam irregularmente.

Sem dúvida, seria bastante arriscado pretender uma atomização generalizada da produção em pequenas unida­des independentes para os próximos anos. Entretanto, no próprio seio das grandes empresas, observamos que um modo de crescimento "externo" ou descentralizado, que opera através da criação de filiais ou de empresas satélites, substitui-se, progressivamente, ao modo de crescimento in­terno, ou seja, à ampliação das capacidades produtivas de cada fábrica. 21

c — A automação da produção

A penetração da informática na produção industrial favorece, como acabamos de observar, o renascimento das pequenas e médias empresas. Ela também permite um au­mento considerável da produtividade do trabalho no setor terciário. Entretanto, é principalmente ao nível dos gran­des complexos industriais que a informatização da produção realiza uma verdadeira revolução, ao mesmo tempo nas re­lações entre tempo de trabalho e tempo de produção e no próprio estatuto do trabalho.

O processo de trabalho taylorista, fundamentado na decomposição das tarefas numa sucessão de gestos elementares (cada um deles escrupulosamente cronometrado e efetuado por um operário "especializado" apenas naquele gesto), apóia-se numa adequação estrita entre o ritmo de trabalho e o ritmo da produção. O processo de trabalho fordista, povoado por uma rede de máquinas-instrumentos servidas por operários não menos especializados do que elas, constitui uma linha de montagem semi-automática, já que, nela, o ritmo da produção está submetido ao ritmo do tra­balho, isto é, à precisão e à presteza da execução de que os operários dão prova quando acionam as máquinas. Em contrapartida, o processo de trabalho neofordista 22 leva a uma verdadeira independência entre o ritmo de produção e o ritmo de trabalho. 23 Sem dúvida, esse processo sò é realizado plenamente nas indústrias ditas de propriedade, cujo objeto é o acionamento de reações físico-químicas a nível industrial; mas as indústrias de "forma", quer dizer, de fabricação, procuram, na medida das possibilidades tecnológicas, alinhar-se com esse novo modelo (cf. o projeto Saturno elaborado pela General Motors). Este, graças ao desenvolvimento das máquinas cibernéticas, apóia-se em cadeias integradas de autômatos industriais capazes de efetuar o trabalho, para o qual são programados, sem a ajuda de auxiliares humanos. A partir daí, o tempo da produção não é mais determinado pelo trabalho vivo, pela manipu­lação dos produtos ou pela utilização das máquinas, ainda que reduzido a intervenções elementares. Verdadeiramente automatizada, a produção depende, essencialmente, do ren­dimento das máquinas e tende a um processo contínuo (ou pelo menos, a um processo onde as interrupções se referem muito mais à renovação do capital fixo e ao escoamento do produto do que à reconstituição da força de trabalho). Além disso, a planificação da produção não mais se apre­senta como uma organização hierárquica das tarefas — desde a concepção até a execução, passando pelas tarefas intermediárias — mas como uma programação efetiva das máquinas técnicas, das quais os homens seriam os interlo­cutores em todos os níveis — mesmo que a uns caiba esta­belecer como elas irão se conduzir e a outros ler e inter­pretar o seu comportamento.

De fato, o neofordismo não faz desaparecer os traba­lhadores da indústria, embora contribua para reduzir consideravelmente o seu número dentro de cada unidade de produção, mas modifica profundamente o seu estatuto. Os operários não são mais encarregados de acionar as máqui­nas, mas de supervisionar as suas operações; eles não lidam mais com a matéria, ainda que indiretamente, mas com a informação que os robôs lhes fornecem sobre o seu pró­prio trabalho. Por isso, como observa Jean-Paul de Gau­demar, ocorre uma verdadeira relação inversa — e não apenas de independência — entre o trabalho vivo e o tem­po de produção, já que os operários supervisores só inter­vêm no caso de disfunção do sistema automático das má­quinas, para corrigi-la ou, o que é mais frequente, para indicá-la ao departamento de engenharia de programa­ção. 24 Esse tipo de "trabalho" que requer muito menos operários do que as linhas de montagem semiautomáticas, implica numa inegável requalificação dos trabalhadores que o exercem. Essa requalificação passa pela aquisição de um saber que confere a capacidade de ler e interpretar as informações que se inscrevem nos quadros das salas de controle, e também consiste numa melhor compreensão do processo global de produção (que assegura um plano de carreira que permite ao supervisor tornar-se, pouco a pou­co, um programador). Finalmente, a requalificação dos trabalhadores "internos" da indústria neofordista com­preende responsabilidades de enquadramento dos trabalhadores externos, contratados por tempo parcial ou para em­preendimentos subcontratados, e encarregados de manter e/ou consertar as máquinas. Dessa maneira, à requalifica­ção dos trabalhadores encarregados do tratamento da informação, dos trabalhadores internos da empresa, empre­gados por tempo integral, corresponde, pelo menos tenden­cialmente, uma precarização dos trabalhadores externos, encarregados do tratamento residual e aleatório do mate­rial — ou seja, de manter e consertar as máquinas estra­gadas, mas também nesse entretempo, de substituí-las. 25

d — A nova segmentação da força de trabalho

Portanto, a especialização flexível, tal como a auto­mação da produção, parecem promover uma mesma bi­partição entre, de uma parte, os coletivos restritos de trabalhadores qualificados e menos cegos em relação ao processo global de produção dos valores de troca e, de outra, uma massa crescente de trabalhadores estatutariamente exteriores à empresa, contratados por tempo parcial ou por uma empreitada subcontratada, para cumprir tarefas tecnicamente copiadas do taylorismo e do fordismo — quer dizer, desqualificadas — mas sem usufruir das garantias de salário e de emprego, já há várias décadas, ligadas a esse processo de trabalho. (A transnacionalização do capi­tal caminha no mesmo sentido, já que ela mantém os de­partamentos de trabalho qualificado nos antigos países industrializados e exporta as linhas de montagem para os novos países industrializados onde os trabalhadores são mal pagos e mal protegidos.) Na verdade, já observamos que a especialização flexível correspondeu a uma evolução da demanda no mercado dos produtos e que a automação da produção resultou dos progressos da informática e de suas aplicações industriais. Entretanto, nem as novas normas de consumo, nem a nova organização do trabalho exis­tiam nas reivindicações sociais dos anos 60 ou nos avan­ços das ciências da informação. Em contrapartida, a segmentação da população assalariada, coextensiva a um regime de acumulação neofordista no sentido amplo (ou seja, que inclui a automação das linhas de montagem e o desenvolvimento das novas pequenas e médias empresas), corresponde muito bem às condições neoliberais de regulagem da atividade econômica. Mais exatamente, elas pre­cipitam o declínio do modo de regulagem keynesiano, com suas convenções coletivas e, particularmente, o declínio das grandes organizações operárias cujo peso político e social torna-se um entrave à restauração da produtividade a par­tir do momento em que esta requer uma transferência de lucros do trabalho para o capital e mais por reduções de efetivos, do que pelo aumento do poder de compra dos assa­lariados e por novas economias de escala. Ora, as grandes fábricas dedicadas à produção de massa, com seus operá­rios e suas máquinas-instrumentos estritamente especia­lizados, são, ao mesmo tempo, os pilares da acumulação fordista em crise e os principais bastiões do poder sindical. O desmantelamento das linhas semiautomáticas em pro­veito da especialização flexível e da automação completa provoca, em consequência, a dissolução ou, pelo menos, a fragmentação dos coletivos operários mais numerosos e mais organizados, correspondendo tanto a uma exigência polí­tica quanto a uma evolução da demanda ou das técnicas de produção.

De um modo geral, o neofordismo, em suas duas ver­tentes — requalificação e precarização — favorece a rentabilidade do capital em três níveis:

1.° — Operários internos da empresa mais responsá­veis. Ratificada, ou melhor dizendo, encorajada pelos gover­nos e pelos patronatos ocidentais desde o final da segunda guerra mundial, efetua-se a constituição de uma classe operária homogênea, sob a direção de sindicatos poderosos: esses sindicatos promovem entre seus filiados um senti­mento de pertença ao mundo do trabalho, e também ser­vem de garantia, frente ao Estado e ao capital, no sentido da canalização desses sentimentos para reivindicações "ra­zoáveis". Essa organização de trabalhadores encontra o seu meio ideal nas grandes fábricas fordistas, onde a co­operação no trabalho e a homogeneização das tarefas enco­rajam os sentimentos de solidariedade (a consciência de classe) e, por conseguinte, a implantação dos sindicatos. Mas, a partir do momento em que, fortes por sua concen­tração, os trabalhadores dão às suas reivindicações um outro aspecto além do "trabalhismo" fundamentado no di­reito ao trabalho e à sua justa remuneração e, depois, quando o preço exigido pelas organizações operárias para poder "chamar à razão" as suas bases parece elevado de­mais para os detentores do capital, estes irão buscar sua salvação — isto é, a manutenção de suas taxas de lucro — no neofordismo: a automação da produção, mas também a sua descentralização (transnacionalização, multiplicação das filiais, recurso à subcontratação) constituem, de fato, meios para quebrar os coletivos operários cujo crescimento numérico os torna cada vez menos razoáveis.

Além disso, quer seja nas novas pequenas unidades de produção ou nas fábricas fortemente automatizadas, os grupos restritos de trabalhadores requalificados revelam-se menos receptíveis às palavras de ordem e aos valores do sindicalismo de massa. Bem mais do que isso, a reavalia­ção de suas tarefas, eventualmente acompanhadas por pla­nos de carreira ou ainda pela participação nos lucros da empresa, mostra o caminho para um corporativismo novo ou para um sindicalismo "caseiro" bem mais sensível às necessidades de rentabilização do capital.

Em resumo, a instalação dos processos de trabalho neofordistas permite não apenas o enfraquecimento do sindicalismo de massa, cujas praças-fortes são deslocadas, mas também a instalação de um novo "espírito" entre os tra­balhadores internos das empresas neofordistas. Não lhes é mais pedido que sejam "razoáveis" no interior de uma relação de força capital-trabalho institucionalizada e ne­gociada a nível setorial ou nacional, mas antes, que se mostrem responsáveis" em nome da rentabilidade da empresa (isto é, do capital) concebida como um interesse comum de proprietários e assalariados.

2.° Trabalhadores precários mais baratos. Sempre em nome da rentabilidade do capital, o neofordismo, em sua segunda vertente, permite uma redução importante dos encargos salariais e sociais das empresas. Os trabalhadores externos, provisórios ou por tempo parcial, são, de fato, muito menos protegidos pelos sindicatos (e são, também, muito menos sindicalizados) e pela legislação trabalhista do que os operários internos das linhas fordistas. A mesma coisa acontece com os operários que trabalham (no mais das vezes clandestinamente) nos empreendimentos de sub­contratação. Além disso, as empresas só os chamam na medida de suas necessidades pontuais e podem despedi-los muito mais facilmente do que os operários internos empregados por tempo integral. Esse "mercado de trabalho" (que os economistas que se inclinaram para a segmentação da população assalariada, como Michel Piore, chamam de mercado secundário) apresenta para o capital a vantagem de adaptar-se às flutuações de sua rentabilidade. Tudo se passa como se, ao fim e ao cabo, os detentores do capital desejassem que todos os trabalhos desqualificados fossem executados pelos operários que participam daquilo que Marx chamou de exército industrial de reserva. Reserva que os capitalistas poderiam usar ou dispensar conforme as suas necessidades pontuais, enquanto as negociações coletivas de tipo keynesiano lhes custam mais caro e os comprometem a longo prazo.

3.° Operários protegidos mais razoáveis. A consti­tuição desse reservatório em expansão contínua de traba­lhadores precários tem influência sobre as indústrias que, por razões técnicas e sociais, continuam a funcionar num quadro jurídico e com os meios de produção fordistas. Os operários especializados que trabalham sempre em linhas semiautomáticas de produção de massa — e que continuam a ser muito numerosos — entram, de fato, em competição direta, ao mesmo tempo, com os trabalhadores secundários e com os trabalhadores dos novos países industrializados. Por conseguinte, eles se vêem na contingência de limitar as suas reivindicações a proporções extremamente "razoá­veis", sob pena de serem também precarizados.

Assim sendo, o neofordismo, ainda em formação, divide a população assalariada em três segmentos: uma minoria responsável nas empresas que praticam a especialização flexível e nas indústrias de ponta fortemente automatizadas, um grupo protegido, importante em número, mas resi­dual nos direitos, de operários especializados nas fábricas fordistas e, finalmente, um grupo precarizado de trabalha­dores intermitentes sem outra qualificação além de sua disponibilidade e mobilidade. Entretanto, este último gru­po, cuja importância relativa não pára de crescer às custas dos trabalhadores protegidos, não forma uma população homogênea. Não podemos negar que o retraimento da oferta de empregos industriais estáveis e a perda correla­tiva das proteções sociais e da identidade operária con­feridas pelos sindicatos frequentemente só produzem o de­semprego e a desordem. Entretanto, o declínio do mercado de trabalho fordista é acompanhado por uma nova deman­da por parte das empresas: demanda de subcontratação que, como já vimos, substitui vantajosamente o emprego de trabalhadores internos e, mais geralmente, a demanda de serviços que promovem e acompanham a diversificação dos gostos dos consumidores (isto é, a expansão da esfera mercantil). Essa demanda de reserva do capital conduz, então, à proliferação da microempresa (o que implica no renascimento do trabalho domiciliar e no desenvolvimento do trabalho clandestino) cujos protagonistas constituem, de alguma forma, a "elite" da população precarizada na medida em que, oferecendo mais produtos ou prestações de serviços do que a sua força de trabalho "nua", eles são levados a adotar uma "mentalidade" de comerciante frente ao chefe de empresa — mesmo que, às vezes, os seus lucros sejam irrisórios — no lugar e na condição de uma identi­dade operária evanescente.

IV — O Espaço do Assujeitamento e o Tempo da Escravização

Quer se trate de um modo de regulagem enxertado nas transferências dos lucros do trabalho para o capital ou de um regime de acumulação em que o tempo do trabalho vivo e o tempo da produção dos valores de troca coincidem cada vez menos, o capitalismo da era pós-keynesiana ou neofordista parece marcado pela preocupação do capital em manter a sua rentabilidade libertando-se do trabalho, pelo menos como entidade submetida mas ainda exterior ao capital. Essa preocupação não conduz a uma vontade de reduzir o tempo de trabalho necessário à produção (von­tade característica do regime de acumulação intensiva for­dista), mas esconde, no próprio seio do capitalismo, uma subversão potencial dos laços entre o capital e os trabalha­dores mas também entre o espaço e o tempo, tal como são ordenados por ele.

a — o assujeitamento ao capital

Para apreender o alcance dessa mutação, é preciso retornar ao que constitui o primeiro limiar propriamente capitalístico, o que Marx chama de subsunção formal do trabalho pelo capital, ou seja, a própria relação salarial. Marx demonstra, com efeito, que o capital se impõe como processo de valorização quando "um fluxo de riqueza não qualificada encontra um fluxo de trabalho não qualifi­cado e se conjuga com ele". 26 O fluxo de riqueza não qualificada, isto é, o capital liberado sob forma de capital-dinheiro, se constitui quando caem as barreiras entre o capital financeiro (originário da usura), o capital mer­cantil e o capital industrial (a propriedade dos meios de trabalho). Historicamente, a unificação do capital é feita, de início, pelos mercadores internacionais de produtos de luxo que importam matérias-primas e operários, depois pelos comerciantes que compram a produção dos artesãos ou que deles fazem os seus intermediários ("midâlemen"), e finalmente pelos industriais que produzem com a in­tenção direta de comerciar. 27 Quanto ao fluxo de trabalho não qualificado, ele é, ao mesmo tempo, o produto da "miséria do trabalhador" desapossado das substâncias so­bre as quais ele age, dos instrumentos dos quais se serve e dos produtos que realiza, e também de sua "liberdade", já que a transformação das estruturas agrárias que con­duz ao êxodo rural e à formação do proletariado põe fim à servidão, talvez mesmo a todo regime de dependência pessoal ou territorial. À imagem do capitalista ou do em­presário que libera o fluxo do capital dos seus entraves e de suas compartimentações, corresponde a imagem do trabalhador livre, independente, mas, desprovido de tudo, até mesmo de sua "força de trabalho" que o empresário está disposto a comprar, e cujo futuro-mercadoria con­firma assujeitamento social característico do capitalismo. A relação salarial que estabelece, ao acaso, os fluxos de ca­pital e de trabalho não qualificado não distingue o em­presário e o trabalhador não qualificado como as encar­nações individuais de cada um desses dois fluxos, sem reuni-los, ao mesmo tempo, na categoria de sujeito livre e na noção de produção, na atividade produtiva em geral como essência subjetiva e abstrata da riqueza — mesmo que esta diga respeito "objetivamente" à propriedade privada da classe capitalista. Portanto, existe um igualitarismo formal e um humanismo essencial do capitalismo, que não nega nem a diferença substancial entre aquilo que o capitalista possui e o que o trabalhador possui, nem a desigualdade da troca entre uma porção de vida e uma soma de dinheiro, nem, por conseguinte, o conteúdo de suas respectivas liberdades: por um lado, a liberdade de empreender, por outro lado a liberdade de submeter seu tempo e seus gestos.

Numa primeira fase, o capital, muito ocupado em verter a variedade das tarefas e dos trabalhos no molde homogêneo da produção, prende-se a essa subsunção formal do trabalho: ele se contenta em estender ao conjunto das atividades, agora "produtivas", a relação salarial e o assu­jeitamento que ele realiza — no sentido duplo de assujeita­mento dos indivíduos à organização capitalista do trabalho e de sua transformação em sujeitos livres para submeter-se a ela. Sem dúvida, o tempo dessa sujeição, a jornada de trabalho, de fato, espantosamente longa, e a esfera da produção capitalista, a esfera do trabalho assalariado e abstrato, está em constante expansão. E não é menos ver­dade que o capitalismo principiante não se preocupa com nada que não diga respeito ao espaço e ao tempo da valo­rização mercantil.

Entretanto, os empresários e os Estados "liberais" que, progressivamente, compartilham os seus interesses, não podem negligenciar por muito tempo o espaço-tempo, na medida em que nele se representa a reprodução da força de trabalho. De fato, desde que as manufaturas se desen­volvem e solicitam cada vez mais trabalhadores livres e nus, nada mais perigoso do que deixá-los agregar-se numa "massa aberta" (conforme a expressão de Elias Canetti) já que eles deixam seu lugar de trabalho. Essa massa é portadora de vícios e de micróbios que dissolvem o devo­tamente ao trabalho (quando não dizimam os próprios trabalhadores) mas também intrigas e raiva, podendo levar à insurreição. Portanto, é preciso disciplinar os operários tanto no interior quanto no exterior das oficinas, assegu­rar a reprodução de seus esforços, de sua docilidade, graças a uma educação moral, higiênica e cívica, e à construção de equipamentos coletivos adequados a essa tarefa. A sub­missão dos indivíduos na esfera da reprodução da força de trabalho assume, então, a mesma forma da submissão que reina na esfera da produção mercantil: a forma de uma sujeição que compreende um assujeitamento (homó­logo ao assujeitamento ao capital industrial) aos dispositi­vos educacionais, penitenciários, sanitários... sob a égide do Estado, e a constituição de uma subjetividade livre que culmina com a instauração da democracia parlamentar e a noção de legislador-sujeito na qual os cidadãos são convidados a reconhecer-se (de maneira que, obedecendo às suas injunções, não obedeçam senão a eles mesmos e nada manifestem além de sua liberdade subjetiva). 28 En­tretanto, se a forma da dominação é idêntica dentro e fora dos muros das manufaturas, as esferas da produção e da reprodução não são, ali, menos escrupulosamente sepa­radas. Distinção indispensável à própria relação salarial como dispositivo de sujeição, já que é a ultrapassagem da fronteira entre as duas esferas que realiza a liberdade do trabalhador, sua submissão soberana e reiterada, dia após dia, no processo de trabalho regido pelo capital.

Finalmente, numa terceira fase, a fase do taylorismo e depois do fordismo, o capitalismo, na medida em que adota um regime de acumulação intensiva do capital e, por conseguinte, promove um processo de trabalho cada vez mais coletivo (ao mesmo tempo do ponto de vista do número de trabalhadores empregados nas grandes fábricas e do grau de cooperação entre eles) aparece confrontado com dois problemas: por um lado, a solidariedade cres­cente dos trabalhadores, proveniente de sua concentração no lugar de trabalho, tende a ultrapassar os processos de subjetivação individual, onde as relações horizontais entre os indivíduos são mediatizadas e, portanto, subordinadas às relações verticais de assujeitamento entre cada indivíduo e os pólos de subjetivação que são o capital, o legislador etc. Por outro lado, a acumulação intensiva do capital cria um risco de superprodução de que a crise de 1929 serve de exemplo. O primeiro problema levará à constituição de uma subjetividade operária coletiva, reconhecida como tal, em outras palavras, ao reconhecimento por seus pró­prios membros e pela classe capitalista de uma classe ope­rária dotada de um interesse "de classe" objetivamente oposto ao interesse dos capitalistas. Uma vez mais, no entanto, esta consciência de classe só se forma, através da mediação e da direção das relações horizontais entre tra­balhadores pelas instâncias representativas de interesses de classe que são os partidos e os sindicatos operários. Em outras palavras, a solidariedade só se torna subjetividade coletiva através de um novo dispositivo de sujeição. E então, ao trabalhador livre que se submete ao capital ao mesmo tempo que se reconhece na produção como essência subjetiva da riqueza que lhe escapa objetivamente, 29 ao cidadão responsável que se submete às normas sociais, reconhecendo-se no legislador-sujeito como ser razoável, acrescenta-se o proletário consciente de seu interesse que ratifica as palavras de ordem das organizações operárias, reconhecendo-se na classe que elas representam. O desen­volvimento da subjetividade coletiva sob a forma da su­jeição (e seu corolário, o reconhecimento da luta de classes por seus protagonistas) levará às revoluções socialistas — e a seus impasses — mas também levará à social-democracia "keynesiana" e a suas convenções coletivas. Quanto ao segundo problema, já vimos que ele desemboca na orga­nização do consumo de massa — segunda vertente do for­dismo — mas também numa nova forma de assujeitamento. Os bens de consumo duráveis, produzidos em grande escala e destinados por seus preços, e pela publicidade que os envolve, à população assalariada, apresentam-se de fato, como os operadores concretos do assujeitamento próprio da esfera do consumo, de agora em diante, subconjunto autônomo da esfera da reprodução social da força de trabalho. Os produtos de consumo duráveis, as máquinas domés­ticas (automóveis, eletrodomésticos...) acrescentam-se aos bens de equipamentos aos quais os trabalhadores estão sujeitados na esfera da produção, e aos equipamentos co­letivos, operadores do assujeitamento na esfera dos serviços públicos (a saber a outra superfície de reprodução das condições de trabalho). A partir daí, a sujeição como re­lação social inerente ao capitalismo apoderou-se, verda­deiramente, de todos os domínios da sociedade: do assujei­tamento às máquinas técnicas (aos bens de produção de massa) que permite a extração da mais-valia, ao assujeita­mento às máquinas domésticas (aos bens de consumo de massa) que assegura a sua realização, passando pelo assu­jeitamento aos equipamentos coletivos que garantem o funcionamento contínuo do circuito de valorização ou, pelo menos, a sua retomada, dia após dia. Em todos os níveis, o assujeitamento remete à independência de um sujeito, quer seja trabalhador livre, quer seja cidadão responsável, quer seja consumidor que maximiza a sua utilização dentro dos limites determinados pelo seu salário. Porém, reciprocamen­te, essa subjetividade soberana só se atualiza na submissão voluntária, na prática, às condições capitalistas de produ­ção, de consumo e de circulação. Mais exatamente, é a pró­pria ultrapassagem das fronteiras entre as esferas — o fato de ir à fábrica, à escola, ao supermercado... — que atua­liza a liberdade dos indivíduos, confirmando o seu assujeitamento. A grande tarefa do fordismo, do welfare state e dos acordos de produtividade consiste, então, em manter a sujeição dos indivíduos e a sua realização nas diversas passagens de uma esfera para outra, enquanto a solida­riedade operária, estimulada pela socialização do trabalho ameaça quebrar o isolamento do "trabalhador livre". Essa postura, inicialmente, passa pela transformação dos afetos de massa em consciência de classe, ou seja, pela consti­tuição de uma subjetividade coletiva atualizada pela adesão (o assujeitamento) aos aparelhos sindicais e partidários. En­tretanto, a subjetividade coletiva que se forma dessa ma­neira permanece antagônica à dos empresários e corre o risco de levar a uma revolução socialista. Por isso, é neces­sário, também, converter o interesse de classe e as reivin­dicações que o expressam numa demanda que o consumo de massa possa atender. De maneira que, passando da esfera da produção para a esfera do consumo, o traba­lhador reencontre interesse na maximização de sua utili­dade e possa medi-la por referência aos bens de consumo aos quais acaba de se sujeitar.

Portanto, o dispositivo de sujeição que define a relação salarial difundiu-se de tal maneira em todos os domínios da organização social, que só podemos falar de uma sub­sunção real da sociedade inteira ao capital e não mais, apenas da subsunção formal do trabalho. Porém, se as rela­ções de sujeição formalmente homólogas à relação salarial são encontradas em todos os níveis da vida social e se, por conseguinte, o espaço-tempo da produção se submete ao espaço-tempo do consumo privado e dos serviços pú­blicos utilizando-os como auxiliares destinados a reprodu­zir e a escoar os seus valores, não é menos verdade que essas diversas esferas não podem jamais confundir-se, já que os sujeitos só atuam e se reconhecem como tais quando podem passar "livremente" de uma para outra.

b — A escravização pelo capital

Enquanto sistema de sujeição social o capitalismo comporta dois caracteres essenciais: 1.° — Considera os homens como sujeitos livres capazes de se reconhecerem — quer sejam trabalhadores ou empresários — na produção (o trabalho abstrato) como a sua essência subjetiva; portanto, o capital não confunde nunca os homens com os equipamentos aos quais esses mesmos homens vêm livremente sujeitar-se. 2.° — Constrói uma ordem espacial no sentido em que recorta o tempo em esferas fun­cionais (produção de valores de troca, consumo, ou seja, escoamento desses valores, reprodução da força e da von­tade de trabalhar), cuja delimitação geográfica é essen­cial já que é a ultrapassagem das fronteiras entre as es­feras que realiza o assujeitamento ao capital.

Ora, é exatamente com esse sistema que a estratégia neofordista e a ética neoliberal rompem:30 utilizando a nebulosidade das fronteiras entre as esferas e a modifi­cação da relação entre o homem e a máquina, elas subs­tituem o sistema de compartimentação do tempo no es­paço articulado pelo capital por um empreendimento de subsunção do espaço ao tempo que o capital procura in­vestir na sua integralidade. E assim, elas também substi­tuem os dispositivos de assujeitamento dos indivíduos ao capital por uma forma original de escravização dos indiví­duos pelo capital. 31

A nebulosidade das fronteiras entre a esfera produ­tiva e as esferas reprodutivas em proveito de uma nova hegemonia do capital é o resultado das tendências neo­fordistas à descentralização espacial e temporal da indús­tria e à expansão quantitativa e qualitativa do setor terciário. A descentralização produtiva da indústria engloba a sua transnacionalização e também a efusão da jornada de trabalho e a difusão do seu lugar, ou seja, a difusão da fábrica pela cidade. 32 Depois da era das manufaturas, ainda dominadas pelo ofício, e depois da era da grande indústria com suas fábricas-fortalezas que se destacam do tecido urbano e se cercam de cidades-dormitórios onde abrigam seus operários, talvez estejamos assistindo, con­forme a expressão de Jean-Paul Gaudemar, a uma terceira idade da fábrica. Esta, pelo contrário, corresponde a "um gigantesco processo de fabrilização social onde ocorrerá a fusão da dupla experiência da fábrica e da cidade". Con­cretamente, essa difusão assume muitas caras: multipli­cação das filiais e das oficinas de subcontratação, renas­cimento do putting out system e do trabalho a domicílio que apagam qualquer distinção entre o lugar de trabalho e o lar dos assalariados. Essa invasão do espaço-tempo doméstico pode assumir tanto o aspecto sofisticado da telemática, quando um terminal instalado em sua casa curto-circuita o ato de assujeitamento do trabalhador e per­mite que a empresa o alcance a qualquer momento, quanto o aspecto mais miserável dos pequenos trabalhos a domi­cílio, realizados além da jornada de trabalho "normal". (Esses dois tipos de difusão da fábrica remetem, respecti­vamente, ao segmento primário-interno e ao segmento secundário-externo da população assalariada.) De um modo geral, a disseminação do espaço produtivo corresponde ao desenvolvimento de uma economia subterrânea ou paralela, povoada por microempresas futuristas ou arcaicas e vo­tadas a fazer o tempo supostamente "livre" render.

A expansão do setor terciário, ou seja, da produção de serviços mercantis a partir do início da crise do for­dismo, constitui o outro grande fenômeno de confusão entre a esfera produtiva e as esferas reprodutivas, isto é, de infiltração da primeira nas últimas. Essa expansão que tende, também, a maximizar a rentabilização dos espaços e do tempo livre tem, inicialmente, uma dimensão quanti­tativa. Na verdade, assistimos a um aumento do número dos serviços mercantis tradicionais (por exemplo, o aumen­to de empregos através da multiplicação dos fast food nos Estados Unidos) mas também do número de horas de fun­cionamento (por exemplo, a questão bastante debatida na Europa sobre o funcionamento das grandes lojas aos do­mingos). Mas o desenvolvimento do setor terciário tem, sobretudo, uma dimensão qualitativa, no sentido em que ele diz respeito à área coberta pelos serviços mercantis. Os "novos" serviços podem ser situados na categoria da produção da informação: por um lado, podemos lembrar a subsunção dos domínios da arte e do pensamento (ante­riormente dentro dela, mas agora relativamente protegi­dos da homogeneização mercantil) sob a noção de infor­mação e suas condições "mediáticas" de valorização — rapidez da concepção e da compreensão e multiplicação das referências. Por outro lado, a informação aparece exata­mente como a mercadoria elaborada e vendida pela malta que aumenta sem parar, dos intermediários e conselheiros de todo tipo — da finança à dietética, do fiscalismo à vida sexual etc. Esses comerciantes de serviços tendem a substituir, progressivamente, pelos seus produtos as nor­mas impostas pelos equipamentos coletivos mas também pelas famílias, pelas associações comunitárias etc. Além disso, esta substituição tem como efeito, da mesma forma que a difusão da fábrica, curto-circuitar a sujeição dos indivíduos: daqui para frente, estes são muito menos sujeitos que se reconhecem nas normas "razoáveis" às quais se submetem livremente, do que investidores (inves­tidores cuja própria vida é encarada como capital) preo­cupados em adquirir um comportamento rentável graças às informações (ou aos fatores de produção) que lhes são vendidas. Assim, disseminando a produção de seus valores, e não mais apenas a forma da sujeição em todas as malhas do tecido social, a estratégia neofordista de "con­fusão produtiva" das esferas de atividade não entrava o assujeitamento "atuante" dos indivíduos sem alterar igual­mente a sua subjetividade.

A automação da produção caminha no mesmo sen­tido já que, num mesmo movimento, ela liberta o tempo da valorização do capital do ritmo e das configurações im­postas pelo encadeamento do trabalho e do não-trabalho e pára de sujeitar o operário à máquina não para libertá-lo dela, mas para integrá-lo nela, ou, melhor ainda, escravizá-lo a ela. E como a sujeição compreendia o assujeita­mento dos indivíduos às máquinas e à subjetividade livre na qual se reconhecem, a escravização comporta a integração do homem na máquina e a sua nova concepção de si mesmo como capital humano.

Quanto à relação homem-máquina, já vimos que a in­formatização da produção tende a substituir por uma rela­ção de comunicação entre o homem e a máquina, no âmbito do tratamento da informação, uma relação de utilização com a finalidade de tratar o material. Além disso, o ma­nuseio das máquinas-instrumentos se origina nas relações irreversíveis entre o homem e a máquina, no sentido em que o trabalhador é exterior e heterogêneo aos meios de trabalho aos quais acaba de se sujeitar. Em contrapar­tida, as relações de comunicação inerentes às máquinas cibernéticas são reversíveis. (A nível de formação social podemos até falar de relações de programação, e também de vigilância recíproca: pois, se a informática faz do operário um controlador de máquinas, ela também dá à máquina infinitos meios de vigiar os indivíduos.) Essa reversibilidade leva a tornar homens e máquinas técnicas equivalentes do ponto de vista do processo de trabalho e, portanto, a integrar uns e outros como peças ou substitutos na vasta rede maquínica da circulação produtiva das informações. Essa revolução ergonômica, naturalmen­te, se prolonga nas novas máquinas domésticas — jogos eletrônicos, computadores domésticos — que funcionam com o mesmo modelo, mas perpassa objetos que já são considerados "antigos" como a televisão. Esta, de fato, não procura captar um espectador considerado como alvo a ser submetido, isto é, levá-lo a reconhecer-se nas emissões que ela propõe, mas integrar quem a olha no espetáculo permanente que produz. 33

À diluição progressiva de todas as diferenças de esta­tuto entre as instâncias ocultadas pelo capital constante (meios e objetos de trabalho) e pelo capital variável (a força de trabalho), em outras palavras, pela escravi­zação maquínica "objetiva" dos indivíduos pelo capital, corresponde uma nova relação com eles mesmos que realiza, subjetivamente, a sua integração no capital — do qual eles se consideram um "pedaço". Essa conversão é objeto de uma estratégia política que reverte em benefício do capital a crise generalizada da sujeição capitalista (da rejeição do trabalho à recusa da sociedade de consumo), da qual a revolta de 68 foi o sintoma mais violento, e também a crise correlativa dos grandes aparelhos de gestão da consciência de classe. A nova estratégia capitalista faz com que a dessubjetivação dos trabalhadores deságue na sua escravização pelo capital. Para fazer isso é necessário, inicialmente, controlar o ritmo do processo de des-subjetivação, o que significa, na prática, controlar o fluxo de trabalhadores expulsos do domínio das convenções cole-tivas e da proteção social fordista. Esse ritmo deve ser sufi­cientemente sustentado, para permitir o redesdobramento industrial e o restabelecimento financeiro das empresas, mas não elevado demais, para que a dissolução muito violen­ta da consciência de classe provoque a eclosão de afetos de massa que de outra maneira se tornariam perigosos. Em segundo lugar, é necessário assegurar que uma parcela suficientemente importante de trabalhadores precarizados descubra em si uma alma de empresário. Agora, o recurso maciço das empresas à subcontratação representa um papel fundamental, na medida em que reprime a vontade de independência dos trabalhadores (coextensiva à sua dessubjetivação) sobre um espírito de empresa, logo posto sob tutela. 34 Finalmente, a política de conversão se dirige, prioritariamente, aos trabalhadores internos das empresas "modernas". Sua integração ao "espírito de empresa" passa pela participação acionária dos operários, pelos prê­mios de produtividade e pelos círculos de qualidade onde trabalhadores, quadros e proprietários do capital se de­bruçam, juntos, sobre os desempenhos da empresa e sobre os progressos que poderiam ser acrescentados à organi­zação do trabalho. Sem dúvida, os círculos de qualidade estão na origem de certas modificações nas condições de trabalho, favoráveis ao mesmo tempo à qualidade de vida e à rentabilidade da empresa. Porém, de acordo com a confissão do próprio presidente dos círculos de qualidade na França — entrevistado pelo jornal Liberation — o essencial é modificar a mentalidade dos trabalhadores. É necessário que aqueles que trabalham nos postos fixos, ou até mesmo nas linhas de montagem, deixem de se consi­derar como operários cegamente submetidos ao movimento das máquinas e se percebam, pelo contrário, como verda­deiros chefes de empresa que tratam o seu colega do posto precedente como um fornecedor e o do posto seguinte como um cliente! Mesmo sem chegar a esse exagero, com­preendemos muito o bem que está em jogo: para o tra­balhador não se trata mais de reconhecer-se na produção geral, nem no trabalho abstrato como essência subjetiva cujo produto é concretamente apropriado pelo capitalista, nem nas organizações representativas do trabalho como fator de produção. Agora é preciso que ele se reconheça na própria empresa, ou seja no capital, do qual é parte integrante (mesmo que não receba os lucros do que pro­duz). Acionista ou não, ele é levado a vibrar com a evo­lução dos desempenhos da firma que o emprega da mesma forma com que vibra por seu time favorito de futebol. Em resumo, ainda que submetido o trabalhador recebeu do trabalho a sua dignidade, e, agora escravizado, é do ca­pital que ele recebe o seu brilho. Essa transformação ética, que não se pode assimilar a um novo disfarce ideológico, recebe uma formulação rigorosa na nova teoria do homo economicus, ou seja, do homem "convertido" à escravização maquínica.

c — O novo homo economicus

O homo economicus renovado, tal como o definem os economistas neoliberais (e, particularmente, Gary Becker) se distingue de seu homônimo neoclássico, inspirado no utilitarismo de Jeremy Bentham. Em sua acepção neoclás­sica ou marginalista, o homo economicus corresponde, de fato, à forma-sujeito, já que maximizador de sua utilidade, ele aparece na esfera do consumo como um livre arbítrio necessário para escolher, dentro dos limites de seu orçamen­to, entre os produtos que lhe são oferecidos. Correlativa­mente, na esfera da produção, é o trabalhador que negocia com igual liberdade o preço de sua força de trabalho. Os economistas neoclássicos se esforçam para apresentar os dois "mercados" — o dos produtos e o do trabalho — como simétricos, já que deles depende a sujeição dos salários e a identidade formal entre estes e os capitalistas frente a cada um dos dois mercados.

A concepção neoliberal do homo economicus é bem di­ferente. Ela faz do indivíduo não um trabalhador-consumidor livre, mas um produtor. Cada indivíduo se consagra, permanentemente, à produção do que Gary Becker e outros teóricos do capital humano chamaram de satisfações finais, isto é, que não podem ser trocadas. 35 As satisfações finais, cujo conteúdo é da escolha de cada indivíduo, podem ser medidas pelo tempo dispendido na fruição, pelo tempo consumido. Entretanto, os homens passam menos tempo usufruindo as satisfações finais do que produzindo-as. A produção das satisfações finais é assegurada por dois fatores: o tempo de que cada indivíduo dispõe e os bens e ser­viços aos quais ele pode recorrer. Entre esses dois fatores existe em princípio (neoliberal) uma relação de propor­cionalidade inversa: uma mesma satisfação final pode ser produzida com muito tempo e poucos meios, ou o inverso. Ou seja, os objetos e os know-how adquiridos pelo novo homo economicus lhe permitem, essencialmente, ganhar tempo para a produção de suas satisfações finais; ou me­lhor, esses bens e serviços são, verdadeiramente, tempo ganho ou tempo estocado. Por isso, podemos afirmar que só existe um fator na produção das satisfações finais: o tempo. Este, cristalizado ou não sob a forma de objetos ou de técnicas, só serve para produzir as satisfações finais, ou seja, tempo consumido. Produzir tempo com tempo, esse é o destino do homo economicus renovado. 36

Quanto a seu objetivo, aparentemente, ele consiste em produzir o máximo de tempo (de fruição) com a ajuda de um mínimo de tempo (de produção dessa fruição). Entre­tanto, esse hedonismo absoluto de princípio volta-se para um puritanismo absoluto. Constatamos, inicialmente, que as máquinas corporais ou incorpóreas que permitem economi­zar tempo (de produção de satisfações finais) têm um preço. Esse preço, conforme os teóricos neoliberais, é o preço do tempo de fruição sacrificado para a construção dessas máquinas — inclusive o tempo cristalizado em bens e serviços utilizados para sua fabricação. Esse preço, ex­presso em moeda, implica que para conseguir máquinas para ganhar tempo, os indivíduos devem ganhar dinheiro e, para fazer isso, consagrar uma parte de seu tempo ao exercício de um trabalho assalariado. Ou seja, para econo­mizar tempo, graças à aquisição de bens e serviços produ­tores de satisfações finais, eles são levados a consagrar seu tempo a um trabalho que retarda o momento de fruição, talvez mesmo, tendo que investir numa formação que lhes permita receber um salário mais elevado. O nível do salário estabelece então o que Becker chama de custo de opor­tunidade do tempo de cada indivíduo, isto é, o sistema de preços relativos (do tempo com relação aos bens e serviços) segundo o qual cada homo economicus escolhe as respecti­vas quantidades dos dois fatores que ele empregará para produzir as suas satisfações finais. Se o seu tempo é caro, isto é, se o seu lucro é alto, ele irá tender a utilizar um máximo de bens e de serviços, e um mínimo de tempo para produzir suas satisfações finais, reservando o essencial do seu tempo para ganhar esse dinheiro que lhe permite com­prar ainda mais máquinas para ganhar ainda mais tempo para poder ganhar ainda mais dinheiro, etc. Em contra­partida, se o seu tempo é barato, isto é, se o seu lucro é baixo, ele irá tender a utilizar muito tempo e poucos objetos ou serviços mercantis, para optimizar as suas satisfações. Essa teoria dá, ao mesmo tempo, uma explicação "racional" da propensão dos pobres à ociosidade e desloca o funda­mento do igualitarismo capitalista: existe menos igualdade formal entre os homens — ou seja, sob a mesma forma-sujeito — do que igualdade substancial. Cada um tem, mais ou menos, as mesmas satisfações, ainda que elas resul­tem de diferentes combinações dos fatores de produção, e elas mesmas são funções dos preços relativos desses fatores para cada indivíduo.

Enquanto teoria da alocação do tempo e do seu custo, essa nova apresentação do homo economicus demonstra muito bem de que maneira o capital subsume a integrali­dade do tempo nos próprios termos da teoria. Inicialmente observaremos que o dinheiro constitui a segunda forma (ou ainda a forma de segundo grau) do tempo cristalizado, isto é, economizado. Ganhar dinheiro é ganhar tempo, já desde Benjamin Franklin, o puritanismo só diz isso. Entre­tanto, ainda é preciso distinguir que: enquanto meio de pagamento, o dinheiro cristaliza (em segundo grau) tempo de produção das satisfações finais e, logo, desaparece nesse processo de produção. Em contrapartida, enquanto bene­fício do capital (lucro, juro) o dinheiro não estoca mais o tempo da produção, mas estoca o tempo da fruição das satisfações finais. (Não fora isso, dentro do quadro psico­lógico do homo economicus, de que maneira explicar que o capitalista pretende antes acumular do que dilapidar seus bens ou, mais rigorosamente, que a propensão a ga­nhar, a economizar tempo de produção das satisfações finais não inverte, para além de um certo limiar, o custo de oportunidade do tempo?) Quanto ao capital "em geral", ele efetivamente subsume a integralidade do tempo na me­dida em que economiza, ao mesmo tempo, o tempo de produção e o tempo de fruição das satisfações finais: o pri­meiro distribuindo salários, o segundo acumulando. A acumulação do capital, a partir daí, é apenas um aumento global das satisfações finais dos indivíduos que, além disso, devem ter o seu tempo de fruição garantido pela sua pou­pança! E teríamos dificuldade para negar que essa acumu­lação não é possível para aqueles que não são proprietários do capital. Enquanto escravizados pelo capital, isto é, en­quanto capitais humanos produtores de satisfações finais, todos os indivíduos que ganham tempo são, verdadeira­mente, pedaços do capital global e, dessa maneira, sua acumulação aumenta pela estocagem de suas próprias sa­tisfações finais. Aliás, os capitalistas sofrem as mesmas atribulações, excetuando que eles não concedem apenas o seu tempo real, mas entregam ainda a reserva de tempo estocado de que dispõem. 37

Em resumo, podemos afirmar que as teses e o quadro conceituai do homo economicus neoliberal realizam con­juntamente, a ambição que o capital tem de apresentar-se como um doador de tempo (e não apenas como doador de trabalho) e a passagem de um regime de assujeitamento so­cial a um regime de escravidão maquínica onde capita­listas e trabalhadores não são mais levados a se reconhe­cer no trabalho como na essência subjetiva e abstrata da riqueza mas, antes, a se investir na acumulação do capital como estoque de tempo de fruição economizado. Enquanto o regime de sujeição capitalista, em nome do trabalho como valor supremo, concedia um tempo livre, ainda que sem deixar de controlar esse tempo, para permitir à força de trabalho reconstituir-se, o regime de escravização neocapitalista tende a investir esse mesmo tempo livre em nome do crescimento das satisfações finais que ele estabelece como metas.

d — As vacâncias 38 do capital

Entretanto, se o capital pretende subsumir a integrali­dade do tempo, ele não o faz sem perda, isto é, sem criar, ousaríamos dizer, novas vacâncias: quer se trate dos espaços desativados pelo redesdobramento neofordista das atividades (ora subúrbios, ora centros de cidades, ora cidades inteiras atingidas pela desindustrialização), quer se trate dos indiví­duos, eles também, desativados pelo duplo movimento de des-subjetivação e de precarização que atinge suas vidas. Para essa população que não mais se reconhece nem na fábrica, nem no sindicato ou partido de classe, o custo da oportunidade de tempo é quase nulo já que, mesmo cobran­do barato, ela não encontra mais empregador a quem vendê-lo. Só tendo tempo para perder, a questão de saber como essa população irá "gastar-se" assusta e ameaça a empresa neoliberal de renovação capitalista.

Nos anos 70, frente ao movimento operário tradicional que preconiza a recomposição da classe operária em bases fordistas, reagrupou-se uma outra "esquerda", em torno das correntes ditas "autônoma" (na Itália, sobretudo) e auto-gestora que apostava na exterioridade objetiva mas sobre­tudo subjetivamente inegável dos trabalhadores precários com relação ao novo processo de valorização capitalista. Entretanto, essas dependências pouco homogêneas se reen­contravam para fazer da des-subjetivação em marcha a con­dição de emergência de um novo afeto coletivo capaz de promover um processo de autovalorização alternativo — quer dizer, fundamentado na produção de valores de uso. Esse processo, conforme as tendências e os momentos, de­veria estar fundamentado no antagonismo de classes e pas­sar pelo enfrentamento com o Estado e com o capital ou, pelo contrário, confiar na convivialidade de uma sociedade civil, ora voltada para alguns enclaves de "tempo livre", ora buscando infiltrar as relações burocráticas e mer­cantis. Em oposição, a utopia neoconservadora denega a conflitualidade inerente à nova sociedade dual: de fato, em boa teoria do capital humano, os indivíduos cujo custo de oportunidade de tempo é muito baixo ou mesmo nulo, produzem uma quantidade mais ou menos equiva­lente de satisfações finais à que os outros produzem. A única diferença entre trabalhadores precarizados e traba­lhadores integrados ao novo regime de escravização reside na dosagem entre os fatores de produção utilizados: não dispondo nem de dinheiro para comprar bens e serviços produtores de satisfações finais, nem de meios para obter este dinheiro, pelas próprias condições do mercado de tra­balho, os trabalhadores precários produzem suas satisfa­ções finais com a ajuda da única coisa que possuem — o seu tempo. Entretanto, essa formalização só consegue jogar o problema para adiante, pois toda a questão é saber de que maneira eles irão ocupar o seu tempo, que satisfações finais irão procurar já que não têm sequer os meios finan­ceiros para comprar um "canal", isto é, para obter esses serviços mercantis que fazem viver os trabalhadores escra­vizados pelo capital.

Entretanto, se existe uma exterioridade dos trabalha­dores precários com relação ao processo de valorização capitalista — e se, efetivamente, eles têm desse fato uma consciência dolorosa e revoltada — a sua posição de excluí­dos e os afetos flutuantes que a perpassam, em contrapar­tida, não se prestam muito bem a uma organização insurrecional de tipo leninista ou mesmo à formação de uma ampla comunidade convivial. Se é verdade que existem solidariedades locais, redes de alianças, estas não parecem caminhar — por seu movimento próprio — para a integra­ção numa convivialidade geral. Sem dúvida, o capital lhes concede muito tempo mas, também, pouco espaço e poucos objetos: por isso os grupos de ajuda-mútua tendem a se encerrar em estruturas de clã, mais ou menos mafiosas, ou em bandos mais ou menos fascistas; e quando se abrem, muitas vezes, é para o fanatismo exclusivamente religioso.

Se fosse necessário buscar algum precedente para a situação atual — operação seguramente arriscada —, o duplo processo que torna nômade a população precarizada e escraviza a população integrada não deixa de evocar as relações entre os grandes impérios arcaicos (China, índia) e os seus nômades, turcos ou mongóis. 39

Ferozmente exteriores aos impérios, os nômades, frente à máquina imperial, assumem atitudes ambivalentes e cam­biantes. Ora acampam miseravelmente às portas do impé­rio, ora fazem-se utilizar como mercenários — formando, se é que podemos dizer isto, um exército de tempo parcial. Ora se entregam a alguma razia violenta, súbita mas sem futuro, ora, finalmente, se unem e saqueiam o império: menos para conquistá-lo, pois sufocam dentro de seus muros, do que para atravessá-lo. Todavia, quer vendendo seus serviços, quer cobrando seus tributos, existem entre o nômade mongol e o burguês funcionário chinês demasia­das diferenças para que elas se articulem, ainda que sob forma de contradição. Poderíamos, então, esboçar uma homologia entre essa incompatibilidade e, por exemplo, a incompatibilidade que reina entre o jovem desempregado que não sabe como perder o seu tempo e o novo funcioná­rio do capital (o trabalhador integrado) que só procura ganhar mais dinheiro? Essa diferença, demasiado radical para transformar-se em antagonismo, não é a mesma que assusta o burguês de Pequim que, ao ver os nômades espalharem-se pelo império só consegue lamentar-se: "Como acabará isso? É o que todos se perguntam. (...) O Palácio Imperial atraiu os nômades e não sabe mais como desembaraçar-se deles. (...) A tarefa de salvar a Pátria foi con­fiada a nós, artesãos e comerciantes. Mas somos incapazes disso. Ademais, nós nos gabamos alguma vez de poder cumpri-la? Existe apenas um malentendido, mas nós mor­reremos por ele!" 40

  • 1* O título original deste capítulo - cumpre aqui lembrar - é "Les Eclats du Capital". Eclats, em francês, apresenta uma pluralidade de sentidos. Privilegiamos um dentre esses: éclat, "estilhaço" - fragmento de um corpo que se estilhaça quando se quebra. Eclat também significa "estouro", "estrépito", "escândalo", "brilho", "intensidade de uma luz viva e brilhante". (N. da Ed. Bras.)
  • 2Paradoxalmente, a nova ambição do capital ou (o que Marx chamava) a subsunção real da sociedade sob a relação social capitalista ultrapassa um novo limiar que, sem dúvida, remete à formulação mais antiga da troca desigual, à krematistikè de Aristóteles. Esta, com efeito, vê numa transação fundada mais sobre o interesse do que sobre a necessidade (no caso trata-se da usura), uma monetarização do tempo, que ameaça tanto o movimento regular do mundo quanto o movimento equilibrado da cidade, apoiado na troca de equivalentes. É daí que Marx deriva, fazendo referência explícita à crematística aristotélica, a sua célebre fórmula D-M-D, que, em seguida, reduz à troca simples M-D-M, exatamente porque identifica tempo de trabalho e tempo de valorização. A esse respeito, cf. Alliez, E., Naissance et conduites des temps capitaux (tese de Doctorat d´État), a ser publicada pela Ed. Forense-Universitária.
  • 3 O mínimo que poderíamos dizer é que o marxismo oficial - sem falar da teologia do trabalho que se desenvolve nos países do socialismo realizado - contribuiu muito para dar credibilidade a essa identificação. "Estamos, assim, colocados diante do paradoxo de um movimento de emancipação que pretende suprimir o capital, conservando, ao mesmo tempo, tudo aquilo de que ele se nutre e de onde extrai a sua força, o trabalho, tal como se desenvolveu a partir da revolução industrial". (Vincent, J.-M., Critique du travail. Le faire et Vagir, PUF, p. 62-63). Do nosso ponto de vista, foi o marxismo italiano dos anos 70 e, particular­mente Antonio Negri, que levou mais longe essa crítica do tra­balho.
  • 4 Entretanto — além das baixas taxas de juros e das ajudas diretas — é concedida uma válvula de escape às empresas, na forma de uma política monetária do Estado "keynesiano". Polí­tica que visa, essencialmente, corrigir a elevação dos salários nominais superior aos ganhos de produtividade, graças a uma inflação dosada com habilidade, isto é, graças à reposição dos custos salariais excedentes no preço de venda dos produtos e, por conseguinte, no lucro das empresas. A inflação, porém, não deve ser nem demasiado elevada, nem excessivamente persistente, do contrário os assalariados aprendem a antecipar a diferença entre a progressão de seus salários nominais e a progressão de seu poder de compra, quer dizer, a medi-la e a integrá-la em suas reivindicações. A esse respeito e de um modo geral, sobre as pro­ductivity deals como armadura da política econômica keynesiana: Cleaver, H., L´économie de l'offre, une nouvelle phase de la stratégie capitaliste dans la crise aux E.U., Babylone n.° 0, Hiver 81-82, p. 89-91.
  • 5 Operaista diz respeito a operaismo (it.): movimento que se encontra na origem da renovação teórica e política da es­querda revolucionária extraparlamentar na Itália, no início dos anos 60, e cuja divisa, pelo que se disse, podia ser: Marxianamente outro, do momento em que se tratava de ver o marxismo e sua história através da classe operária do último quarto do século, e não o contrário... O grande clássico do operaismo ita­liano — Operários e capital de Mário Tronti, traduzido para o português (Porto, Ed. Afrontamento, 1976) — foi apresentado nestes termos: "a descoberta fundamental de Tronti pode ser resumida em uma fórmula que faz da classe operária o motor dinâmico do capital, e do capital uma função da classe operária." Antonio Negri é hoje em dia o maior expoente dessa corrente teórica (N. dos Autores para a edição brasileira).
  • 6 Todavia, o controle dos salários através da inflação, por sua vez, é dificultado pelas antecipações dos assalariados que indexam suas reivindicações com base nas taxas de inflação pre­vistas. Essa antecipação remete aos trabalhos dos economistas ditos "racionalistas", como R. Lucas, T. Sargent e N. Wallace.
  • 7 Os relatos da crise são numerosos. Além do artigo já citado de H. Cleaver, fazemos referência, principalmente, a Piore, M., & Sabei, Ch. F., The second industrial divide, Basic Books, 1984, ca­pítulo 7, e a Boyer, R., & Mistral, J., Accumulation, inflation, crise, PUF, 1983, capítulos 5 e 6.
  • 80 Sobre o fordismo ver, especialmente, Lipietz, A., Crise et inflation: pourquoi?, Maspéro, 1S79; Aglietta, M., Régulation et crises du capitalisme (L'expérience des E.U.), Calmann-Lévy, 1976, 1» parte, capítulos 2 e 3; Coriat, B., Vatélier et le chrono-mètre, Bourgeois, 1979.
  • 9Piore, M. & Sabei C, op. cit., p. 184-187.
  • 10Lester Thurow chega mesmo a estimar em 40% a parte da substituição da indústria pelos serviços na desaceleração da produtividade geral. Thurow, L.. The Zero-Sum Society, Penguin, 1981, p. 86-87.
  • 11]Sobre o desenvolvimento dos novos países industriais (N.P.I.) ver Lipietz, A., Fordisme, fordisme périphérique et Métro-polisation, CEPREMAP n.? 8.514, 1985, p. 10-23.
  • 12Cleaver, H.,op. cit., p. 81-88.
  • 13Childs Jr., R., Big business and the rise of American sta-ttsm, inThe Libertarian Alternative, Chicago University Press, 1974.
  • 14A respeito da função crítica do modelo walrassiano, ver a importantíssima introdução de G. De Caro à tradução italiana dos Écrits monétaires de De Caro, G., Enciclopédia italiana, Mi­lano, 1986.
  • 15Vera Lutz, Central planning for the market economy, Langman ed., 1963, citado por Lepage, H., in Demain, le libéralisme, Livro de Poche, 1980, p. 229-230. Esse é, exatamente, o sentido do trabalho de De Caro sobre Walras.
  • 16Ver, especialmente, Stigler, G., The Economics oí infor-mation, in Journal of politicai economy, n.° 69, janeiro, 1961.
  • 17O que podemos transpor, facilmente, para a prática (e para a linguagem) mediática. Em português, o leitor poderá se reportar a E. Alliez e L. Costa Lima, "Por uma crítica da razão mediática", Folha de São Paulo, 8/1/88.
  • 18Lipietz, A., op. cit., p. 19-21.
  • 19 Essa evolução deriva, também, da “guerra econômica” a que se entregaram os países industrializados. A exacerbação da concorrência entre os países ricos se deve ao achatamento dos mercados internos de cada um deles. E, também, para preservar as suas economias de escala, eles procuram obter a maior parte possível dos mercados de seus vizinhos e parceiros, o que os leva a centrar a atividade econômica senão apenas na exportação pelo menos no critério de competitividade internacional. A esse respeito, Clerc, D., Lipietz, & Satre-Buisson, J., La crise, Ed. Syros, 1985, p. 57-61.
  • 20Piore, M. & Sabei, C, op. cit., p. 258-263.
  • 21Rosenvallon, P., Les effets sociétaux de la crise écono-mique, in Temps Libre, n.° 9, 1981, p. 100.
  • 22O termo remete a Palloix, C, Le procès de travail: du fordisme au neo-fordisme, in La Pensée n.° 185, fevereiro, 1978. Ver'também Aglietta, M., op. cit., p. 101-109.
  • 23Para uma tipologia dos processos de trabalho conforme as relações entre tempo de trabalho e tempo de produção ou de valorização, ver Coriat, B., Ouvriers et Automates (Procès de travail, économie du temps et segmentation de la force de travail), in Usines et ouvriers, figures d'un nouvel ordre productif, Obra coletiva apresentada por Jean-Paul de Gaudemar, Maspéro, 1980, p. 50-55.
  • 24Gaudemar, J.-P., De la fabrique au site: Naissance de l'usine mobile, in Usines et ouvriers, op. cit., p. 17-20.
  • 25Gaudemar, J.-P., op. cit., p. 19-20.
  • 26Deleuze, G. & Guattari, F., Mille plateaux, Minuit, 1980, p. 565.
  • 27Marx, K.,Le Capital, Obras econômicas, t. II, Gallimard, col. Bibliothèque de La Plêiade, p. 1.103, e o comentário deE.Balibar in Althusser, L. & Balibar, E., Lire le Capital, t. II, Maspéro, 1975, p. 191.
  • 28Deleuze, G. & Guattari, F., op. cit., p. 162.
  • 29Deleuze, G. & Guattari, F., L'Anti-Oedipe, Minuit, 1972, p. 308-309 e 322.
  • 30Os termos estratégia e ética são usados no sentido que lhes dá Michel Foucault: uma estratégia é um conjunto coerente de práticas normativas que não precisam ser refletidas pela consciência individual de um estrategista, nem tampouco pela consciência coletiva de uma classe dominante, para funcionarem. Quanto à ética, ela recobre os diversos regimes de relações consigo mesmo, isto é, as condutas que os homens adotam em função"do que eles acham que são".
  • 31"Nós distinguimos como dois conceitos a escravização maquínica e o assujeitamento social. A escravização ocorre quando os homens são, eles mesmos, peças constitutivas de uma máquina que compõe uns com outros e os combina com outras coisas (animais, instrumentos) sob o controle e a direção de uma unidade superior. O assujeitamento ocorre quando a unidade superior constitui o homem como um sujeito que se refere a um objeto que se tornou exterior, quer este objeto seja um animal, um instrumento ou mesmo uma máquina: o homem não é mais um componente da máquina, mas é seu operário, seu usuário... Ele está sujeitando à máquina e não mais escravizado pela máquina" (Deleuze,G. & Guattari, F., Mille plateaux, op. cit., p. 570-571).
  • 32A noção de fábrica difusa remete aos teóricos italianos oriundos do movimento operaista, que, nos anos 70, se reagruparam em torno da revista Quaderni dei territorio dirigida por Alberto Managhi. Ver especialmente: Occupazione giovanile e fabrica diffusa, Celuc libri, Milano, 1978.
  • 33Assim, as séries americanas que inundam o planeta con­sideram o público menos como alter ego de seus heróis do que "porteiros" que participam, como figurantes, de suas desventuras. Deleuze e Guattari que ressaltam essa modificação homem-máqui­na e que a aplicam à televisão indicam, seguindo Ray Bradbury, que essa mutação ocorre quando a televisão deixa de ser um objeto central da casa para tornar-se uma parede ou uma janela. Mille plateaux, op. cit., p. 572 e 573.
  • 34Em apoio a essa tese podemos evocar dois exemplos especialmente notáveis. Em meados dos anos 70, a taxa de absenteísmo dos operários da Fiat atingiu um nível particularmente elevado, o que manifesta, senão a luta contra o trabalho, pelo menos um desgosto espontâneo pelo trabalho na fábrica e pela relação de sujeição ao capital que ela atualiza. Observa-se, também, que nos dias de greve o nível de absenteísmo não é menor, prova de que a consciência de classe promovida pelas organizações operárias e atualizada, especialmente, pelas grandes reuniões em torno dos piquetes de greve não passa melhor de saúde do que a orgulhosa submissão ao trabalho assalariado. O absenteísmo protegido, na época, pelas dificuldades tanto materiais quanto legais que a empresa tinha para demitir, corresponde, por­tanto, a uma conquista de "tempo livre". Entretanto, é também, a ocasião para completar um salário que se revela ainda mais baixo quando cresce o tempo para gastá-lo. Por isso os operários absenteístas irão dedicar-se a pequenos trabalhos de manuten­ção ou de reparação, principalmente a domicílio ou clandestina­mente. A verdadeira genialidade da Fiat consistirá em contratar empreitadas a seus próprios operários absenteístas, trabalhos pa­gos como biscates e efetuados durante as horas que eles deveriam estar na fábrica! (R. Alquati que descreveu essas práticas em Sulla Fiat e altri scritti, Feltrinelli, 1975, as vitupera com a deno­minação de "renda operária"). Menos espetacular, mas também bastante ilustrativa, podemos citar, ainda, a estratégia de descentralização produtiva praticada pela IBM. A IBM se vangloria de ser uma organização à maneira japonesa, o que significa poucas ou nenhuma demissão, mas significa também uma prá­tica sistemática de "salários de mérito" que, além da hostilidade dos sindicatos leva numerosos empregados à exasperação. Alguns dentre eles abandonam a firma para se lançar por conta própria, o mais das vezes na área do software. Ora pela formação desses empregados ou, mais ainda, pela estrutura de mercado de que a IBM continua sendo a chave, suas empresas só são viáveis na medida em que os seus produtos sejam compatíveis com o ma­terial da IBM. Ou seja, a independência deles depende de uma relação de subcontratação com o antigo empregador. (Fazemos referência a uma entrevista com Michael Piore.)
  • 35ver, especialmente, Human capital, a theoretical and em-pirical approach, Columbia University Press, 1964 e The economic approach to human behaviour, University of Chicago Press, 1976.
  • 36Gonzague Pillet, Roland Leinsburger, Aline Bourrit, Les donneurs de temps (ouvrage collectif), Castella, 1981, p. 85 e seg.
  • 37A esse respeito, Lyotard, J.-F., Le diff?rend, Minuit, 1984, p. 254.
  • 38* O autor utiliza, aqui, a ambiguidade do termo vacance como férias e como vacância. Na tradução preferi vacância que, em português, também permite uma certa ambiguidade, ainda que não exatamente a mesma. (N. da Trad.)
  • 39Segundo Deleuze e Guattari, o regime de escravização maquínica "parece remeter por excelência à formação imperial arcaica: os homens não são sujeitos, mas peças de uma máquina que supercodifica o conjunto (o que chamamos "escravidão generalizada" em oposição à escravidão privada da antiguidade ou à servidão feudal)". A diferença essencial entre os regimes de escravização maquínica característicos do império arcaico e do capitalismo contemporâneo é que o primeiro remete a uma uni­dade transcendente encarnada na figura do déspota, enquanto o segundo se propõe como perfeitamente imanente às atividades dos homens, à otimização de suas satisfações finais (Mille plateaux, op. cit., p. 571 e 572).
  • 40Kafka, F., La muraille de Chine, Gallimard, 1950, p. 97-98.

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