A recusa do trabalho - Comitato Operaio di Porto Marghera

Texto clássico da autonomia operária italiana, publicado em 1970. Mostra como as máquinas, tecnologia, automação e informática são introduzidas no processo de produção pelos capitalistas não para reduzir a labuta, mas para impor sempre mais trabalho, tanto mediante desemprego, quanto mediante modificações dos métodos de trabalho, aumentando assim o poder da classe capitalista sobre os proletários. Também é analisado na história a relação entre a lutas dos trabalhadores e as mudanças dos métodos de produção (taylorismo, fordismo etc).

Submitted by Joaos on November 6, 2016

[Tradução de “Il rifiuto del lavoro”, publicado originalmente em Quaderni dell’organizzazione operaia, Porto Marghera, nº 1, 1970. O Comitato Operaio di Porto Marghera (Comitê Operário de Porto Marghera) era composto por trabalhadores das indústrias químicas de Porto Marghera]
  
O que significa destruir o poder dos patrões? Quem são e o que querem os patrões?
Parecem perguntas estúpidas, mas na realidade são fundamentais para estabelecer qual deve ser a nossa linha política contra eles.
 
O que devemos dizer antes de tudo é que é falso o lugar comum de que os patrões exploram os trabalhadores para se enriquecerem. Esse aspecto sem dúvida existe, mas a riqueza dos patrões não é em nada proporcional ao poder deles. Por exemplo, Agnelli [NdT: chefe da Fiat de 1966 até sua morte em 2003], em proporção aos automóveis que produz, deveria andar vestido de ouro, porém ele se contenta com um barco e um avião privado, o que um outro patrão com uma fábrica bem mais modesta do que a FIAT pode muito bem se permitir. O que interessa a Agnelli é a conservação e o desenvolvimento do seu poder, que coincide com o desenvolvimento e o crescimento do capitalismo: quer dizer, o capitalismo é uma potência impessoal e os capitalistas agem como seus funcionários; tanto é verdade que nem mesmo os patrões são mais necessários ao capitalismo, na Rússia por exemplo há capitalismo sem que haja patrões. O que revela a presença do capitalismo na Rússia é a existência do lucro. Que a distribuição do lucro seja “mais justa” do que na Itália provavelmente é verdade, mas a revolução comunista não deve tornar mais justa a distribuição do lucro social, mas superar as relações de produção capitalistas que criam o lucro. É preciso superar um sistema social que faz com que as pessoas sejam coagidas a trabalhar. É com este critério que devemos também avaliar as experiências das revoluções chinesa e cubana.
 
O capitalismo está substancialmente fundamentado, sobretudo, em conservar essa relação de poder contra a classe trabalhadora e usa o seu desenvolvimento para reforçar sempre mais esse poder.
 
Isso significa que todas as máquinas, as inovações tecnológicas, o desenvolvimento das indústrias, o próprio subdesenvolvimento de certas regiões, são usados para controlar politicamente a classe trabalhadora. São exemplos já clássicos desse comportamento capitalista; por exemplo, a adoção da linha de montagem em torno dos anos 1920 foi uma resposta à onda revolucionária que abalou o mundo nos anos imediatamente seguintes à primeira guerra mundial. Queriam fazer desaparecer aquele tipo qualificado de classe operária que tinha tornado possível a revolução russa em 1917 e o movimento dos conselhos de fábrica em toda a Europa. A linha de montagem desqualificou todos os operários, impondo o recuo da onda revolucionária e modificando também o modo em que se expressa a luta de classes; tudo isso se traduziu em muitos países numa derrota política definitiva, na falta de uma organização política que tivesse a capacidade de modificar a sua intervenção segundo o novo tipo de comportamento operário. Mas agora essa estrutura técnica se voltou contra o capital, produzindo uma massificação das reivindicações salariais que encontra na estrutura um tanto plana [struttura così piatta] do ciclo de produção na fábrica um dos seus motivos principais. Assim, enquanto o capital está revolucionando essa estrutura, ele busca eliminar trabalhadores e dispor os outros em leques salariais muito mais amplos do que os atuais, tudo isso através da introdução da automação, que se configura como um verdadeiro ataque político à classe trabalhadora.
 
Essa manobra já se deu na América, e a única razão pela qual os patrões ainda não a repetiram na Itália é que eles não estão certos de poder controlar a resposta operária a esse ataque.
 
Assim se vê que o progresso, o desenvolvimento tão alardeado pelos patrões e pelos seus servos, não passa de uma tentativa contínua de adequar a organização do capital coletivo ao ataque da classe trabalhadora. O progresso tecnológico não é nunca algo neutro e inevitável, como dizem desde sempre os patrões e os sindicatos toda vez que se fala de demissões pela introdução de novas máquinas. Justamente porque creem na balela da neutralidade da ciência, os sindicatos limitam nesses casos as lutas à defesa do posto de trabalho (Sirma, Leghe Leggere,3 etc.) e nunca enfrentam o problema do ponto de vista da redução do horário de trabalho. Eles creem ou fingem crer que é verdade o que diz o patrão: que, por exemplo, naquela oficina, com a introdução daquela máquina, não podem trabalhar, digamos, mais do que cem operários dos duzentos que trabalhavam, e que os outros devem ir embora porque são vítimas do inevitável progresso.
 
Mas os trabalhadores têm uma lógica diversa: eles pensam que, em vez de cem trabalharem oito horas cada um, depois da introdução da mencionada máquina, duzentos podem muito bem trabalhar fazendo quatro horas por cabeça. Esta lógica, além de aliviar o peso da permanência na fábrica, resolveria também o problema do desemprego.
 
Portanto, os trabalhadores não são contra as máquinas, mas contra aqueles que usam as máquinas para fazê-los trabalhar. Há quem diga que trabalhar é necessário, e nós respondemos que a quantidade de ciência acumulada (veja, por exemplo, as viagens à lua) é tal que podemos reduzir de imediato o trabalho a um fato puramente secundário da vida humana, ao invés de concebê-lo como a “razão mesma da existência do homem”. Há quem diga que desde sempre o homem trabalhou. Nós respondemos que na Bíblia está escrito que a terra é plana e que o sol gira em torno dela: antes de Galileu isso seria a verdade, uma coisa que existe desde sempre, que esse era o ponto de vista científico. Mas o problema não é dar demonstrações científicas, mas superar a atual ordem social impondo os interesses de quem materialmente criou as condições para que isso aconteça, isto é, impondo os interesses da classe trabalhadora. Só afirmando esses interesses, quebrando o poder político que se contrapõe a eles, pode-se pensar em criar as condições de existência de uma sociedade melhor do que a atual.
 
Por isso é necessário à parte trabalhadora criar uma organização que esteja a ponto de rechaçar o controle político dos patrões; de assumir todo o poder necessário para que os interesses da classe triunfem. Atualmente são os patrões e seus mecanismos de poder que utilizam tudo, da ciência à luta operária, enquanto esta não se põe realmente o objetivo de destruir as relações de produção, isto é, sair do controle político dos patrões.
 
A exigência de controlar os trabalhadores politicamente e de manter o poder é tão forte nos patrões que para isso estão dispostos até a perder dinheiro. Por exemplo, na América, são eles mesmos que vão contra o progresso. Em certas fábricas, onde faz tempo foi introduzida a automação e, consequentemente, reduzido o número de trabalhadores, sob as pressões maciças das lutas que se desenvolvem na sociedade americana, lutas que são conduzidas sobretudo pelos desempregados negros, preferiu-se retornar aos velhos sistemas produtivos para poder dar-lhes trabalho. Isso evidentemente não quer dizer que os desempregados negros tivessem em mira esse resultado, mas demonstra o uso que os patrões fazem da ciência, isto é, o controle político que através dela eles conseguem exercer sobre a classe trabalhadora. Esse comportamento dos patrões demonstra, portanto, duas coisas: primeiro, que o progresso não é um fato neutro e que ele é decidido exclusivamente segundo um particular ponto de vista que é o do controle político sobre as forças que podem tolher o poder do capitalismo; segundo, que esse controle se exerce sobretudo através do trabalho; de fato, os patrões daquelas fábricas americanas não quiseram, absolutamente, para poder fazer trabalhar os recém-contratados, reduzir o horário de todos, mas continuar mantendo o novo quadro no horário de antes, às custas de retornar às condições produtivas anteriores à automação das instalações. Em suma, o capital está disposto a ter prejuízos, a construir instalações tecnicamente superadas, a fim de controlar os trabalhadores politicamente: para isso ele está disposto até a pagar pessoas que trabalham completamente em vão.
 
É aqui que o discurso da recusa do trabalho se torna atual. Com esse desenvolvimento das máquinas é possível trabalhar muito menos, desde que as máquinas inventadas pela moderna ciência não se tornem monopólio exclusivo da América e da União Soviética, como acontece agora, mas seja possível utilizá-las em todo o mundo. É preciso impor a lógica operária segundo a qual é preciso inventar tantas máquinas quantas necessárias para reduzir sempre mais o tempo de trabalho até fazê-lo tendencialmente desaparecer. Neste ponto, falar de socialismo não é mais possível, o socialismo é o que existe na Rússia, uma nova organização do trabalho, mas os trabalhadores não querem isso, eles querem trabalhar sempre menos, até fazer desaparecer toda forma de coerção efetiva ao trabalho.
 
Não é verdade que nesta sociedade sejamos livres. Somos livres só para nos levantar toda manhã e ir para o trabalho. QUEM NÃO TRABALHA NÃO COME! Isso é liberdade? Há uma coisa que impede a nossa liberdade: o trabalho; na realidade somos obrigados a trabalhar. O dito segundo o qual o trabalho enobrece é uma invenção patronal.
 
Quando todos os homens forem libertados da necessidade de trabalhar, por terem o que comer, o que vestir e com que satisfazer os seus desejos sem trabalhar, então haverá verdadeira liberdade! Nós sustentamos que desde já, com as máquinas que existem, é possível realizar muitas dessas coisas que, ditas assim, parecem ficção científica. No CV 16, por exemplo, durante as últimas greves “contratuais” de 1969, a direção manteve em operação as autoclaves daquela oficina servindo-se dos novos instrumentos para a condução automática das instalações: os operários estavam em casa e as instalações continuavam a produzir. Para demonstrar ser mais forte, o patrão naquela ocasião não se preocupou em mandar pelos ares todos os discursos sobre a necessidade do trabalho humano.
 
Assim, no estabelecimento da Montedison Azotati funciona um computador eletrônico que conduz “em automático” a instalação de síntese do amoníaco: também aí se conta com o aumento da produtividade e não se põe o problema da diminuição da jornada de trabalho.
 
Em instalações como essas é muito mais evidente como o interesse do sistema é usar o trabalho como forma de controle político sobre os trabalhadores. De fato, o aspecto manual das operações e o esforço psíquico são reduzidíssimos; resta só a imposição da presença física do operário ao lado da máquina, resta a violência capitalista que quer o homem condicionado e submetido à máquina.
 
Mas quais são os meios de abolir tudo isso? Trata-se de quebrar o mecanismo de controle que o capital dispôs sobre os trabalhadores.
 
Ninguém está em condições de imaginar quais serão os atos concretos com que essa ruptura se realizará, e muito menos é possível responder à pergunta daqueles que nos indagam o que pensamos para substituir por aquilo que devemos destruir. O problema não é esse; em nenhuma das grandes revoluções da história se sabia a priori o que substituiria aquilo que se estava derrubando, pois as modificações no caráter das pessoas, nas relações entre as classes são tão radicais nos períodos revolucionários que tornam impossível qualquer hipótese histórica.
 
O que os trabalhadores deverão fazer para derrubar o capitalismo modificará a história dos homens de maneira muito mais profunda e radical do que a Revolução Francesa e, por isso, é impossível prever o que acontecerá depois. O que importa agora, ao invés disso, é ver como se faz para destruir o que existe.
 
Desse modo, “fazer a revolução” se torna uma expressão tão inadequada quanto “tomar o poder”. De fato, o poder é sobretudo uma linha política imposta mediante o desenvolvimento, todas as estruturas da sociedade formam a organização que os patrões se deram para poder impor essa sua linha política. Trata-se de criar uma organização mais forte que a dos patrões em torno da nossa linha política. Por isso, nós dizemos que os proletários são contra a sociedade, que são diversos dos outros na medida em que a sociedade está toda estruturada contra eles e que inclusive ela vem se aperfeiçoando desse modo como resposta aos movimentos da classe trabalhadora.
 
A luta da classe trabalhadora é, de fato, como vimos, o principal incentivo ao desenvolvimento do capitalismo: pensemos no maio francês [1968], em que as pequenas fábricas entraram em crise na sequência dos aumentos salariais arrancados pelos operários com a sua luta revolucionária, e isso favoreceu a concentração do capital e o desenvolvimento do monopólio. Pensemos na União Soviética, em que a revolução de 1917 de tal modo acelerou o desenvolvimento capitalista que transformou um país atrasado como era a Rússia czarista num dos mais fortes países capitalistas do mundo.
 
O capital é, em suma, uma potência que se reproduz além da boa vontade de cada indivíduo; o problema da sua eliminação não está, portanto, na eliminação da propriedade privada, mas na destruição mesma da relação de produção, isto é, na destruição da necessidade de trabalhar para viver.

Comitato Operaio di Porto Marghera
Quaderni dell’organizzazione operaia, Porto Marghera, nº 1, 1970.

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