Sobre o capitalismo nacionalizado de Cuba e a luta de classes em escala mundial.
É compreensível considerar um reino onde há um rei mau muito pior do que um onde há um bondoso. Não há como negar que é melhor trabalhar na Volvo do que na Foxconn. E sem dúvida, submetidos e impotentes, resta apenas aos proletários tentar escolher obedecer entre a pior e a menos pior facção da classe dominante na competição mercantil e geopolítica universal. Tudo isso é compreensível. Que os indicadores sociais de Cuba sejam menos piores do que outros países similares é inclusive algo humanamente digno de aplausos. Perturbador é que se suponha que os regimes de capitalismo nacionalizado sejam "comunismo" ou "pós-capitalismo". Na práxis, aceitar e propagar essa fantasia significa apoiar que, desde o início, qualquer luta que comece a se colocar na prática a questão de superar o capital, a mercadoria e o Estado deve se engajar na competição mercantil e geopolítica entre as facções da classe dominante, apoiando um país contra outro, uma ideologia contra outra, uma empresa contra outra, uma classe dominante contra outra. O único resultado disso é apoiar a supressão da luta de classes, a destruição da auto-constituição do proletariado enquanto classe, em suma, é estimular que os oprimidos continuem se engajando de corpo e alma no ataque e na matança mútua para defender os seus "bons" reis contra outros "maus".
De fato, nos países de capitalismo nacionalizado (como Cuba, URSS etc), o proletariado continua privado de meios de vida e de produção. Continua coagido a vender a si mesmo (suas capacidades de agir e de pensar, sua força de trabalho) ao capital, à propriedade privada (o mero fato jurídico de a propriedade ser nacionalizada ou estatizada em nada a altera na prática), se submetendo à classe dominante em troca do dinheiro que lhe permita sobreviver. Lá, o proletariado continua transformando o mundo, pelo seu trabalho, em um mundo do qual é privado, em um mundo hostil que se acumula contra ele enquanto poder cada vez maior da classe proprietária (o empresariado estatizado), que o domina, submete e explora.
No entanto, nada disso importa para quem chama o regime cubano de "comunismo" ou "pós-capitalismo". Para esses, o mero fato de uma facção da classe proprietária pregar ideias supostamente "socialistas" e dizer tentar aplicá-las em seu país ou em sua empresa é que tem importância, não a práxis, não a vida cotidiana, não as relações sociais de produção. Vêem tudo de ponta-cabeça através dos óculos da classe dominante, que enxerga o mundo de cima para baixo, como se fosse a aplicação de ideias à matéria, à sociedade. *
Aliás, a ideologia da classe dominante nunca é capitalista, mas sempre não-capitalista ou inclusive anti-capitalista. Até mesmo o neoliberalismo, aparentemente a ideologia mais "puramente capitalista", nega que o lucro seja o objetivo, e afirma que o mercado existe para satisfazer as necessidades humanas, por ser, segundo ele, "o sistema comprovadamente mais eficiente para lidar com a escassez e atender as necessidades, além de ser o único que permite a igualdade e a liberdade". Não faz sentido esperar que a classe dominante afirme ideias realmente capitalistas, em que simplesmente declarasse sem eufemismos seu interesse pela proletarização, exploração, lucro, derrubar os concorrentes etc. Tanto em Cuba como nos EUA e no Brasil.
Funcionárias da acumulação do capital, personificações encarregadas da aplicação prática e impessoal da lei do valor (trabalho abstrato) sobre a sociedade, sob pena de se verem derrubadas por concorrentes "mais eficientes" nessa aplicação, as várias facções da classe proprietária se digladiam, competindo antes de tudo por submeter o proletariado, suprimir a sua luta (a luta de classes). Competem por recrutar os proletários em diversas frentes concorrentes para que ataquem a si próprios em nome da defesa de uma facção da classe dominante contra outras. É em nome de comunidades fictícias - política, nação, etnia, cidadania, ideologia, identidade, religião, mercado, Estado, empresa - que tentam canalizar para a sociedade do espetáculo as insatisfações, desviando-as da práxis, da vida cotidiana universal, das relações de produção mundialmente interconectadas.
Quando os proletários lá e cá, no mundo todo e por toda parte, se solidarizarem contra "suas próprias" classes dominantes, se impondo a elas como classe histórico-mundial, suprimindo a propriedade privada - e, portanto, o Estado e a empresa, a nação e a mercadoria -, e submetendo então os meios de vida e de produção mundialmente interconectados ao poder dos indivíduos livremente associados conforme seus desejos, necessidades e capacidades, somente então haverá comunismo.
humanaesfera, novembro de 2016
* "Ora, se na concepção do curso da história separarmos as ideias da classe dominante da própria classe dominante e as tornarmos autônomas, se permanecermos no plano da afirmação de que numa época dominaram estas ou aquelas ideias, sem nos preocuparmos com as condições da produção nem com os produtores dessas ideias, se, portanto, desconsiderarmos os indivíduos e as condições mundiais que constituem o fundamento dessas ideias, então poderemos dizer, por exemplo, que durante o tempo em que a aristocracia dominou dominaram os conceitos de honra, fidelidade etc., enquanto durante o domínio da burguesia dominaram os conceitos de liberdade, igualdade etc. A própria classe dominante geralmente imagina isso. Essa concepção da história, comum a todos os historiadores principalmente desde o século XVIII , deparar-se-á necessariamente com o fenômeno de que as ideias que dominam são cada vez mais abstratas, isto é, ideias que assumem cada vez mais a forma da universalidade. Realmente, toda nova classe que toma o lugar de outra que dominava anteriormente é obrigada, para atingir seus fins, a apresentar seu interesse como o interesse comum de todos os membros da sociedade, quer dizer, expresso de forma ideal: é obrigada a dar às suas ideias a forma da universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais, universalmente válidas. [...]
Enquanto na vida comum qualquer shopkeeper sabe muito bem a diferença entre o que alguém faz de conta que é e aquilo que ele realmente é, nossa historiografia ainda não atingiu esse conhecimento trivial. Toma cada época por sua palavra, acreditando naquilo que ela diz e imagina sobre si mesma." (A Ideologia Alemã)
(Originalmente publicado em http://humanaesfera.blogspot.com.br/2016/11/luta-de-classes-na-empresa-cuba.html)
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