Influente texto sobre a história das revoluções e contrarrevoluções que aconteceram na primeira metade do século XX, especialmente o período de 1917 até 1937, abrangendo as insurreições do trabalhadores na Itália, na Alemanha, na Rússia e na Espanha, a relação entre a derrota dessas insurreições e o crescimento da social-democracia, da democracia, do fascismo e do nazismo e a maneira como o Estado se converte em democracia e ditadura conforme as necessidades do capital.
QUANDO AS INSURREIÇÕES MORREM
Gilles Dauvé 1
[Tradução feita por humanaesfera a partir da versão original em francês (Quand meurent les insurrections, publicada no website Troploin, e também publicada impressa por ADEL, Paris, 1998) cotejada com a versão em inglês traduzida por Loren Goldner que foi revisada pelo autor (When insurrections die, publicada no website Libcom e publicada impressa por Antagonism Press em 1999)]
BREST-LITOVSK: 1917 E 1939
“(...) e se a revolução na Rússia der o sinal de uma revolução proletária no ocidente, de modo que as duas se complementem, a atual propriedade comum russa da terra pode servir como o ponto de partida para um desenvolvimento comunista.” 2
Esta perspectiva não se realizou. O proletariado europeu perdeu seu encontro com uma comuna rural russa revitalizada.
Brest-Litovsk, Polônia, dezembro de 1917: os bolcheviques propuseram a paz sem anexações a uma Alemanha decidida a tomar para si boa parte do velho império czarista, que se estendia da Finlândia ao Cáucaso. Mas em fevereiro de 1918, os soldados alemães, embora “proletários em uniformes”, obedeceram a seus oficiais e retomaram a ofensiva contra a Rússia soviética como se ainda estivessem confrontando o exército czarista. Não houve fraternização, e a guerra revolucionária advogada pela esquerda bolchevique se mostrou impraticável. Em março, Trotsky teve que assinar um tratado cujas condições foram ditadas pelos generais do Kaiser. “Estamos dando espaço ao tempo”, disse Lênin: efetivamente, em novembro, com a derrota alemã, o tratado caducou. Porém, a prova prática da união internacional dos explorados tinha fracassado. Alguns meses depois, retornados à vida civil com o fim da guerra, os mesmos proletários confrontaram o movimento operário oficial aliado dos Freikorps. Derrota em 1919, em Berlim, na Baviera e na Hungria. Derrota do Exército Vermelho do Ruhr em 1920. Derrota da Ação de Março em 1921...
Setembro de 1939. Hitler e Stalin acabam de dividir a Polônia. Na ponte-fronteira de Brest-Litovsk, várias centenas de membros do KPD [Partido Comunista da Alemanha] refugiados na URSS, depois aprisionados como “contrarrevolucionários” ou “fascistas”, são tirados das prisões estalinistas e entregues à Gestapo. Um dos sobreviventes, anos mais tarde, mostraria as cicatrizes nas costas – “essa foi a GPU” – e as unhas arrancadas – “...e essa foi a Gestapo”.
1917-1937, vinte anos que sacudiram o mundo. O cortejo de horrores do fascismo, a segunda guerra mundial e as sublevações que se seguiram, são o efeito de uma gigantesca crise social aberta com os motins de 1917 e fechada com a guerra civil espanhola.
NÃO FASCISMO OU DEMOCRACIA – FASCISMO E DEMOCRACIA
É um lugar comum ver no fascismo uma intensificação da repressão estatal a serviço das classes dominantes. Segundo a fórmula tornada célebre por Daniel Guérin desde os anos trinta, o fascismo é igual ao grande capital. Então, pela lógica, a única maneira de se livrar dele é abolir o capitalismo.
Até aí, nada a retorquir. Infelizmente porém, em 99% dos casos, a lógica imediatamente se enrola: se o fascismo encarna o que o capitalismo produziu de pior, é preciso fazer de tudo para impedi-lo de produzir esse pior, quer dizer, fazer de tudo para favorecer um capitalismo não-fascista. Já que o fascismo é a reação, busquemos promover o capitalismo sob formas não-reacionárias, não-autoritárias, não xenofóbicas, não-militaristas, não-racistas, em outras palavras, um capitalismo mais moderno, mais... capitalista.
Ao reiterar que o fascismo serve aos interesses do “grande capital”, o antifascismo se apressa em acrescentar que, apesar de tudo, em 1922 ou 1933, o fascismo poderia ter sido evitado se o movimento operário e/ou os democratas tivessem exercido uma pressão suficiente para interditar o caminho de Mussolini e Hitler ao poder. O antifascismo é uma comédia de remorsos sem fim: se em 1921, o Partido Socialista Italiano e o recém fundado Partido Comunista da Itália apenas tivessem se aliado aos republicanos para barrar o caminho de Mussolini... se, no início dos anos 1930, o KPD apenas não tivesse travado com o SPD uma luta fratricida... a Europa seria poupada de uma das ditaduras mais ferozes da história, de uma segunda guerra mundial, de um império nazista de dimensões quase continentais, dos campos de concentração e do extermínio dos judeus.
Acima e além das considerações bastante verdadeiras sobre as classes, o Estado, os laços entre fascismo e grande indústria, essa visão ignora que o fascismo foi a conseqüência de dois fracassos: o primeiro, dos revolucionários após 1914-1918, que foram massacrados pelos social-democratas e pela democracia parlamentar; o segundo, o da gestão do capital pelos democratas e social-democratas durante os anos 1920. A subida do fascismo ao poder, e ainda mais a natureza dele, permanecem incompreensíveis sem o período precedente, a fase anterior da luta de classes e seus limites. De resto, não é por acaso que Daniel Guérin se engana simultaneamente sobre a Frente Popular, na qual ele vê uma “revolução perdida”, e sobre o significado profundo do fascismo. 3
Qual é o fundo do fascismo senão a unificação econômica e política do capital, uma tendência tornada geral desde 1914? O fascismo foi um modo particular de realizar essa tendência nos países – Itália e Alemanha – onde, muito embora a revolução tivesse sido sufocada, o Estado se mostrou incapaz de impor a ordem, inclusive no seio da burguesia.
Mussolini não era Thiers, com uma sólida base no poder e ordenando que as forças regulares massacrassem os communards. É essencial ao fascismo que ele nascesse nas ruas, provocasse a desordem para impor a ordem, mobilizando as classes médias enfurecidas por sua ruína, regenerando de fora um Estado incapaz de fazer face à crise do capitalismo. 4
O fascismo foi um esforço da burguesia para domar suas próprias contradições pela força, se apropriar para sua vantagem dos métodos operários de mobilização, e empregar todos os recursos do Estado moderno contra um inimigo interior e, depois, um exterior.
Ele foi precisamente uma crise do Estado durante a transição para a dominação total do capital sobre a sociedade. Primeiro, as organizações operárias foram necessárias para responder à irrupção proletária; a seguir, o fascismo foi requerido para acabar com a desordem ulterior. Essa desordem, é claro, não foi revolucionária, mas foi paralisante, bloqueando a via para soluções que doravante só poderiam ser violentas. Essa crise mal foi superada na época: o Estado fascista só era eficaz na aparência, pois integrava à força os assalariados (corporações italianas, Frente do Trabalho Alemã), excluindo artificialmente os conflitos ao projetá-los numa fuga para adiante militarista. Mas a crise foi relativamente superada pelo Estado democrático multi-tentacular estabelecido em 1945, que se guarneceu, de modo potencial, de todos os métodos do fascismo, e adicionou alguns dos seus próprios, uma vez que ele neutraliza as organizações dos assalariados sem destruí-las. O parlamento perdeu o controle sobre o executivo. Com o Welfare ou o Workfare, com as técnicas modernas de supervisão ou pela assistência estatal estendida a milhões de indivíduos, em suma, com um sistema que torna todos cada vez mais dependentes, a unificação social ultrapassa qualquer coisa alcançada pelo terror fascista, mas o fascismo enquanto movimento específico desapareceu. Ele correspondia ao disciplinamento forçado da burguesia sob a pressão do Estado, no contexto particular de Estados recém formados e fortemente pressionados a se constituírem como nações.
A burguesia tomou inclusive o nome “fascismo" das organizações dos trabalhadores, que por vezes se chamavam “fasci” na Itália. É significativo que um movimento inicialmente se definisse como forma de organização e não como programa. A palavra simboliza ao mesmo tempo a autoridade (fasces, ou feixe de varas, levada diante de altos oficiais na Roma Antiga) e uma vontade de unir todos os italianos do mesmo modo como a fasces é amarrada. Seu programa se resume a fazer convergir à força os elementos que compõem a sociedade.
A ditadura não é uma arma do capital que ele pudesse trocar por outras menos letais: ela é uma de suas tendências, que se realiza sempre que necessário. Um “retorno” à democracia parlamentar, como na Alemanha após 1945, significa que a ditadura é inútil para integrar as massas no Estado (ao menos até a próxima vez). O problema então não é que a democracia assegure uma dominação mais suave que a ditadura: qualquer um, em sã consciência, preferiria ser explorado à maneira sueca do que ser desaparecido pelos esbirros de um Pinochet. Mas a questão é: temos escolha? Mesmo a reconfortante democracia escandinava se transforma em ditadura tão logo as circunstâncias exijam. O Estado tem apenas uma função, que pode ser realizada democraticamente ou ditatorialmente. O fato de que a primeira maneira seja menos rude, não significa que seja possível manejar o Estado para dispensar a segunda. As formas que o capitalismo assume não dependem mais das preferências dos assalariados do que das intenções da burguesia. Weimar capitulou de braços abertos diante de Hitler. E a Frente Popular de Blum não “evitou o fascismo”, pois a França de 1936 não tinha nenhuma necessidade de unificar autoritariamente seu capital e nem de reduzir suas classes médias. Não existe “escolha” política à qual os proletários pudessem ser atraídos ou que pudessem ser convidados à força. Democracia não é ditadura, mas a prepara e se prepara para ela.
A essência do antifascismo consiste em resistir ao fascismo defendendo a democracia, ou seja, não mais lutar contra o capitalismo, mas exercer sobre ele uma pressão suficiente para que ele renuncie à opção totalitária. Uma vez que o socialismo é identificado com a democracia total, e o capitalismo com uma fascistização crescente, o antagonismo entre proletariado e capital, comunismo e trabalho assalariado, é abandonado em favor da oposição entre democracia e fascismo apresentada como a quintessência da perspectiva revolucionária. A acreditarmos na esquerda e na extrema-esquerda, a verdadeira transformação seria a realização enfim dos ideais de 1789 eternamente traídos pela burguesia. O mundo novo? Ele já existe um pouco!, embriões a serem preservados, pequenos brotos a serem cultivados: os direitos democráticos conquistados, que é preciso pressionar para aumentarem cada vez mais em uma sociedade indefinidamente aperfeiçoável pela adição de doses diárias cada vez mais fortes de democracia até a democracia completa: o socialismo.
Reduzida a uma resistência antifascista, a crítica social se entusiasma em se reunir à tudo que ela antes denunciava, e abandonar nem mais nem menos do que essa coisa fora de moda: a revolução, em favor do gradualismo, variante da transição pacífica ao socialismo, advogada outra vez pelos PCs e ridicularizada em 1968 por qualquer um que buscasse seriamente transformar o mundo. A regressão é palpável.
Não caímos no ridículo de acusar a esquerda (e extrema-esquerda) de jogar no lixo uma perspectiva comunista que ela conhecia apenas para combater. Que o antifascismo renuncia a toda revolução, é evidente. Mas o antifascismo fracassa exatamente onde seu “realismo” se pretende eficaz: em prevenir a possível mutação ditatorial da sociedade.
A democracia burguesa é uma etapa na tomada do poder pelo capital, e sua extensão no século XX completa a dominação do capital pela intensificação do isolamento dos indivíduos. Remediação da separação entre homem e comunidade, entre atividade humana e sociedade, entre classes, a democracia nunca poderá resolver o problema da sociedade mais separada da história. Forma sempre incapaz de modificar seu conteúdo, ela é precisamente parte do problema que pretende resolver. Toda vez que ela quer fortalecer o “laço social”, ela contribui para sua dissolução. Toda vez que ela alivia as contradições do mercado, ela aperta o ponto do tecido estatal estendido sobre as relações sociais. Mesmo no nível de desespero resignado em que se colocam, os antifascistas, para serem críveis, devem nos explicar por que a democracia local é compatível com a colonização da mercadoria que esvazia os locais de encontro e enche os shopping centers, ou explicar como um Estado onipresente a que a população se volta por proteção e assistência, verdadeira máquina de produzir “bem” social, não fará “o mal” no dia em que as contradições explosivas o exigirem para restaurar a ordem. Enquanto o fascismo é a adulação do monstro estatal, o antifascismo é a sua apologia mais sutil. Lutar por um Estado democrático é inevitavelmente consolidar o Estado, e é, ao invés de extirpar as raízes do totalitarismo, afiar as garras que ele projeta sobre a sociedade.
ROMA: 1919-1922
Os países onde o fascismo histórico triunfou foram também aqueles onde o assalto revolucionário que se seguiu à primeira guerra mundial amadureceu numa série de insurreições armadas. Na Itália, foi com seus próprios métodos e objetivos que uma parte importante do proletariado afrontou diretamente o fascismo. Sua luta não tinha nada de especificamente antifascista: agir contra o capital obrigou os operários e o PC (criado em 1921, e então dirigido por Bordiga) a agir tanto contra os Camisas Negras quanto contra os meganhas da democracia parlamentar. 5
O fascismo tem a singularidade de dar à contrarrevolução uma base de massa e de mimetizar a revolução. Ele volta contra o movimento operário a exigência de “transformar a guerra imperialista em guerra civil”. Ele apareceu como uma reação de veteranos de guerra retornados à vida civil na qual eles não eram nada, sem outro laço exceto a violência coletiva, e decididos a destruir tudo que eles imaginavam ser a causa de sua despossessão: baderneiros, subversivos, inimigos da nação, etc. Em julho de 1918, Mussolini adiciona o subtítulo “jornal dos veteranos e produtores” ao título de seu jornal Il Popolo d´Italia.
Assim, desde o início, o movimento fascista se torna um auxiliar da polícia no meio rural, reprimindo à bala o proletariado agrícola, mas ao mesmo tempo desenvolve uma feroz demagogia anticapitalista. Em 1919, ele não representava nada: nas eleições de novembro, consegue 5.000 votos em Milão, contra 170.000 dos socialistas. Nesse momento, ele reivindicava a abolição da monarquia, do senado e dos títulos de nobreza, o voto das mulheres, o confisco dos bens da igreja, a expropriação dos grandes proprietários de terras e dos grandes industriais. Combatendo o operário em nome do “produtor”, Mussolini exalta a memória da Semana Vermelha de 1914 (que tinha visto uma onda de rebeliões, principalmente em Ancona e Nápoles), e saúda o papel positivo dos sindicatos quando ligam o operário à nação. Seu objetivo: a restauração autoritária do Estado a fim de criar uma estrutura estatal nova, capaz – contrariamente à democracia, ele promete – de defender os interesses tanto do operário quando do burguês, de limitar o grande capital, de controlar a lógica do mercado que erode os valores, os laços sociais e o trabalho...
Tradicionalmente, a burguesia nega a realidade das contradições sociais: o fascismo, ao contrário, as proclama com violência, negando sua existência entre as classes para transpô-las para o conflito entre nações, denunciando o destino reservado à Itália como “nação proletária”. Mussolini era arcaico na medida em que reivindicava os antigos valores arruinados pelo capital, e moderno na medida em que reivindicava defender os direitos dos trabalhadores na sociedade.
Quem derrotou os proletários? A repressão fascista foi desencadeada após um fracasso proletário cujo principal artífice foi a democracia e seus relés: os partidos e sindicatos, que sozinhos conseguiram derrotar os operários com métodos ao mesmo tempo diretos e indiretos. É falso apresentar a subida do fascismo ao poder como o ponto culminante das batalhas de rua em que ele teria derrotado os trabalhadores. Na Alemanha, os proletários tinham sido esmagados onze ou doze anos antes. Na Itália, eles foram derrotados tanto pelas urnas quanto pelas balas.
Em 1919, federando elementos pré-existentes e outros contemporâneos, Mussolini fundou os seus fasci. Para agir contra os clubes de oficiais e os revólveres, enquanto a Itália explodia junto com o resto da Europa, a democracia apelou... ao voto, do qual saiu uma maioria moderada e socialista.
“O envolvimento entusiástico nas grandes saturnais eleitorais de 1919 significou remover todos os obstáculos do caminho do fascismo, que, enquanto as massas eram cloroformizadas na expectativa da grande prova parlamentar, pulava as etapas (...). A vitória, a eleição de 150 deputados socialistas, foi alcançada ao preço do refluxo do movimento insurrecional e da greve geral política, da regressão das conquistas que já tinham sido alcançadas (...)”, comentará Bordiga 40 anos mais tarde.
Quando das ocupações de fábrica de 1920, o Estado, evitando atacar frontalmente, deixou os proletários se cansarem por si sós, com o apoio da CGL (central sindical de maioria socialista) que exauriu as greves quando não as quebrou abertamente.
Os patrões e os sindicatos se entenderam em seguida, institucionalizando o “controle operário” das fábricas sob a supervisão do Estado.
Desde quando os fasci apareceram, saqueando as Casa del Popolo, a polícia ora fechava os olhos, ora confiscava as armas dos trabalhadores. A magistratura dava mostras da mais generosa condescendência, e o exército tolerava, quando não auxiliava suas exações. Esse apoio aberto mas não-oficial se tornou quase oficial com a “Circular Bonomi”. Expulso em 1912 do PSI (com a concordância de Mussolini) por seu apoio à guerra contra a Líbia, Ivanoe Bonomi, após diversos postos ministeriais, foi primeiro-ministro da Itália em 1921-22. Sua circular de 20 de outubro de 1921 envia 60.000 oficiais desmobilizados para tomar o comando dos grupos de assalto de Mussolini.
O que os partidos fizeram? Os liberais, aliados com a direita, não hesitaram em constituir para as eleições de maio de 1921 um “bloco nacional” incluindo os fascistas. Em junho-julho do mesmo ano, o PSI conclui um “pacto de pacificação” totalmente em vão face a um adversário decidido a não ter quaisquer escrúpulos, mas que confunde ainda um pouco mais os trabalhadores.
Diante da óbvia reação política, a CGL se declarou apolítica. Sentindo que Mussolini tinha o poder ao seu alcance, os líderes sindicais sonhavam com um acordo tácito de tolerância mútua com os fascistas, e convocou o proletariado para ficar de fora da briga entre o PC e o Partido Nacional Fascista.
Até agosto de 1922, o fascismo raramente existia fora das regiões agrárias, particularmente no norte, onde ele erradica todos os traços do sindicalismo agrícola autônomo dos trabalhadores. Se em 1919 os fascistas incendiaram as sedes dos jornais socialistas, em 1920, eles evitaram fazer o papel de fura-greves, até mesmo aprovando verbalmente as reivindicações operárias: Mussolini se esforçou por ficar do lado dos grevistas e se dissociar dos baderneiros, isto é, dos comunistas. Nas áreas urbanas, os fasci eram raramente dominantes. Sua “Marcha sobre Ravena” (setembro de 1921) foi facilmente dispersada. Em novembro de 1921, em Roma, uma greve geral impediu um congresso fascista de acontecer. Em maio de 1922, tentaram outra vez e foram impedidos de novo
O cenário variou pouco. Cada ataque fascista localizado era respondido com um contra-ataque operário, mas que cessou (seguindo os conselhos de moderação do movimento operário reformista) assim que a pressão reacionária diminuiu: os proletários confiaram nos democratas para desmantelar os bandos armados. A ameaça fascista recede, se concentra de novo e vai para algum outro lugar... com o tempo fazendo crível um Estado do qual as massas esperavam solução. Os proletários não hesitaram em obter armas e nem em usá-las, transformando em campo entrincheirado mais de uma Borsa del Lavoro e Casa del Popolo, mas discernia melhor o inimigo sob a camisa negra dos brutamontes de rua do que sob a forma “normal” do policial ou do militar vestido com uma legalidade sancionada pelo hábito, pela lei e pelo sufrágio universal.
No início de julho de 1922, a CGL, por uma maioria de 2/3 (contra 1/3 da minoria comunista), declarou seu apoio a “qualquer governo que garanta a restauração das liberdades elementares”. No mesmo mês, os fascistas multiplicaram suas tentativas de penetrar as cidades do norte...
Em 1 de agosto, a Alleanza del Lavoro, que incluía o sindicato dos trabalhadores ferroviários, a CGL e os anarquistas da USI, proclama uma greve geral. Apesar de um grande sucesso, a Alleanza decreta-a oficialmente terminada no dia 3. Em numerosas cidades, porém, ela continuou de forma insurrecional, que só foi contida pelo esforço combinado da polícia e dos militares, apoiados pelos canhões da marinha, e, é claro, com o reforço dos fascistas.
Quem derrotou a energia proletária? A greve geral foi quebrada pelo Estado e pelos fascistas, mas também sufocada pela democracia, e seu fracasso abriu o caminho para a solução fascista da crise.
O que se seguiu foi menos um golpe de Estado do que uma transferência de poder com o acordo dos partidos envolvidos. A “marcha sobre Roma” do Duce (que na verdade pegou o trem) foi menos uma exibição de força do que um teatro: os fascistas fizeram careta de assaltar o Estado, que fez careta de travar uma luta, e Mussolini recebeu o poder. Seu ultimatum de 24 de outubro (“Nós queremos nos tornar o Estado!”) não foi uma ameaça de guerra civil, mas um sinal para a classe dominante de que o Partido Nacional Fascista representa a única força capaz de restaurar a autoridade estatal, e assegurar a unidade política do país. O exército ainda poderia ter contido os grupos fascistas reunidos em Roma, que estavam mal equipados e eram notoriamente inferiores no plano militar, e o Estado ainda poderia ter resistido à pressão sediciosa. Mas o jogo não ocorria no terreno militar. Sob a influência especialmente de Badoglio (chefe do Estado Maior em 1919-21), a autoridade legítima cede. O rei se recusou a proclamar Estado de sítio e, no dia 30, pede ao Duce que forme o novo governo, no qual participam os liberais – os mesmos com quem o antifascismo contava para impedir o fascismo. Com exceção do PS e do PC, todos os partidos se aproximaram do PNF e votaram em Mussolini: o parlamento, com apenas 35 fascistas, apoiou a investidura dele por 306 votos contra 116. O próprio Giolitti, a grande figura liberal da época, reformador autoritário que tinha sido primeiro-ministro muitas vezes antes da primeira guerra mundial, e outra vez em 1920-21, que hoje é de bom tom vê-lo retrospectivamente como o único capaz de se opor a Mussolini, o apoiará até 1924. A democracia não apenas entregou seus poderes ao ditador, mas os ratificou.
Frente à tempestade que se levanta (quase 17.000 ferroviários demitidos, jornais comunistas saqueados e depois fechados, a prisão de centenas e, a seguir, de milhares), o PC propusera em 26 de outubro, uma greve geral, e a CGL assim respondeu:
“No momento em que as paixões políticas se exacerbam, e no qual duas forças estranhas aos sindicatos disputam furiosamente o poder, a CGL sente que é seu dever pôr os trabalhadores em guarda contra as especulações dos partidos ou dos agrupamentos políticos que visam levar o proletariado a uma luta a qual ele deve permanecer absolutamente estranho se não quiser comprometer sua independência.”
Diante de uma reação com toda evidência política, a CGL se declara a-política, e espera uma tolerância mínima do novo poder. O sonho será breve. Nos meses seguintes, muitos sindicatos, entre os quais os dos ferroviários e dos marinheiros, acreditaram serem hábeis em se declarar nacionais, não hostis à pátria e, consequentemente, ao regime – a repressão não os poupou.
TURIM: 1943
Se a democracia italiana se entregou praticamente sem luta ao fascismo, esse mesmo fascismo pariu de novo a democracia quando cessou de corresponder ao estado das forças político-sociais.
Como controlar a classe trabalhadora? Questão central tanto após 1943 quanto em 1919. Na Itália, ainda mais do que em outros países, o término da segunda guerra mundial atesta a dimensão de classe dos conflitos entre Estados, que nunca podem ser explicados apenas pela lógica militar. Uma greve geral explode na FIAT em outubro de 1942. Em março de 1943, uma onda de greves sacode Turim e Milão, incluindo tentativas de formar conselhos operários. Em 1943-45, surgem grupos operários, às vezes independentes do PC, às vezes se proclamando “Bordiguistas”, muitas vezes simultaneamente antifascistas, rossi e armados. O regime não assegura mais o equilíbrio social, enquanto a aliança alemã se torna insustentável diante do avanço dos anglo-americanos, que todos pressentiam que seriam os futuros senhores da Europa ocidental. Mudar de campo é passar para o lado dos futuros vencedores, mas também canalizar as revoltas operárias e os grupos partigiani para um objetivo patriótico com conteúdo social. Em 10 de julho de 1943, os aliados desembarcaram na Sicília. No dia 24, encontrando-se em minoria no Grande Conselho Fascista por 19 a 17, Mussolini renuncia. Dificilmente o ditador teria de se dobrar à regra do voto majoritário.
O marechal Badoglio, que tinha se tornado um dignitário do regime depois de seu apoio à “marcha sobre Roma”, preocupado em evitar que, como ele disse, “o colapso do regime vá demasiado à esquerda”, forma um governo ainda fascista mas sem o Duce, e se dirige à oposição democrática. Esta última recusa, fazendo da saída do rei uma condição. Após um segundo governo de transição, Badoglio formou um terceiro em abril de 1944, que incluía o líder do PC, Togliatti: sob pressão dos aliados e do PC, os democratas aceitam manter o rei (a república será proclamada mediante plebiscito em 1946). Mas Badoglio trazia muitas más lembranças. Em junho, Ivanoe Bonomi, aquele que 23 anos antes enviou por uma circular seus oficiais para entrar nos faci, forma um ministério excluindo dessa vez os fascistas. E foi assim que Bonomi, ex-socialista, ex-belicista, ex-ministro, ex-deputado do “bloco nacional” (fascistas incluídos), ex-primeiro-ministro de julho de 1921 até fevereiro de 1922, quando foi um dos artífices da transmissão do poder à Mussolini, assumiu a direção de um governo antifascista. Enfim, a situação se orientou para a fórmula tripartite (Partido Comunista + Partido Socialista + Democracia Cristã) que dominará a Itália, assim como a França, nos primeiros anos do pós-guerra.
Uma dança das cadeiras, muitas vezes com os mesmos políticos, uma sangrenta valsa de marionetes, eis o cenário atrás do qual a democracia se metamorfoseia em ditadura e vice-versa. As fases e rupturas de equilíbrio dos conflitos de classes e de nações levam a uma sucessão e uma recombinação de formas políticas a fim de manter o mesmo Estado que subscreve o mesmo conteúdo. Ninguém será mais qualificado para dizê-lo do que o PC espanhol, ao declarar com cinismo ou ingenuidade, no meio dos anos 1970, quando da transição do franquismo à monarquia democrática:
“A sociedade espanhola quer que tudo seja transformado a fim de que seja assegurado, sem solavancos nem convulsões sociais, o funcionamento normal do Estado. A continuidade do Estado exige a não-continuidade do regime.” 6
VOLKSGEMEINSCHAFT VERSUS GEMEINWESEN
É sobre o terreno revolucionário que triunfa a contra-revolução, inevitavelmente. Mediante sua “comunidade popular”, o nacional-socialismo pretendeu eliminar o parlamentarismo e a democracia burguesa contra os quais o proletariado tinha se insurgido após 1917. Mas a revolução conservadora se apropriou também de antigas tendências anticapitalistas (retorno à natureza, fuga das cidades...) que os partidos operários, mesmo os extremistas, tinham negado ou desprezado por incapacidade de integrar a dimensão aclassista e comunitária do proletariado, por incapacidade de criticar a economia e de pensar o mundo futuro como diferente de um prolongamento da grande indústria. Na primeira metade do século XIX, esses temas figuravam no coração do movimento socialista, antes de serem abandonados pelo “marxismo” em nome do progresso e da ciência, e sobreviveram apenas no anarquismo ou em seitas. 7
Volksgemeinschaft versus Gemeinwesen, comunidade popular ou comunidade humana… 1933 não foi a derrota, apenas a consumação dela. O nazismo surgiu para neutralizar, resolver e fechar uma crise social tão profunda que sua magnitude mal foi avaliada. A Alemanha, berço da maior social-democracia do mundo, também viu o surgimento do mais poderoso movimento radical anti-parlamentar, anti-sindical, aspirando a um mundo “operário”, mas também capaz de atrair para si muitas outras contestações antiburguesas e anticapitalistas. A presença de artistas de vanguarda nas fileiras da “esquerda alemã” não foi por acaso. Sinalizou a colocação em questão do capital como “civilização”, no sentido em que Charles Fourier o criticava. Perda da comunidade, individualismo e massificação, miséria sexual, a família ao mesmo tempo corroída e afirmada como refúgio, alienação da natureza, alimentação industrial, artificialidade crescente, prostetização do homem, corrida contra o tempo, morte da arte, relações cada vez mais mediatizadas pelo dinheiro e pela técnica... todas essas alienações passaram então pelo fogo de uma crítica confusa e multiforme. Só um olhar superficial retrospectivo vê essa fermentação unicamente através do prisma de sua inevitável recuperação.
A contrarrevolução só triunfou na década de 1920 pela instalação, tanto na Alemanha como nos Estados Unidos, dos elementos iniciais de uma sociedade de consumo e do fordismo, integrando na modernidade industrial e mercantilizada milhões de alemães, inclusive operários. Após dez anos de governo frágil, como mostra a hiperinflação alucinada de 1923, seguiu-se em 1929 um terremoto: foi, não o proletariado, mas foi a prática capitalista que negou sua própria ideologia de um progresso que oferece a todos um consumo crescente de objetos e signos.
Em dez anos, a modernidade capitalista foi questionada duas vezes, na primeira, pelos proletários, na segunda, pelo capital. O extremismo nazi e seu surto de violência foram proporcionais à profundidade do movimento revolucionário que o nacional-socialismo recuperou e negou. Como os radicais de 1919-1921, o nazismo propõe uma comunidade salarial, mas, diferente deles, uma que fosse autoritária, fechada, nacional e racial, e, durante doze anos, ele teve sucesso em transformar proletários em assalariados e em soldados.
O fascismo é a cria de um capitalismo que arruína as antigas relações sem poder substituí-las por aquelas que acompanham a comunidade da mercadoria. Se Hitler pôde buscar resgatar as eras passadas, foi porque ele é filho das contradições do mundo moderno.
BERLIM: 1919-1933
A ditadura vem sempre depois da derrota dos movimentos sociais, entorpecidos e massacrados pela democracia, pelos partidos de esquerda e pelos sindicatos. Na Itália, alguns meses separam as últimas derrotas proletárias da nomeação de Mussolini como chefe de Estado. Na Alemanha, um intervalo de uma dezena de anos quebra a continuidade, fazendo com que o 30 de janeiro de 1933 pareça um fenômeno político, ideológico ou econômico (um resultado da crise de 1929), e não o efeito do terremoto social anterior. A base popular do nacional-socialismo e a energia assassina que ele desencadeou permanecem mistérios enquanto se ignora a questão do trabalho assalariado, do lugar atribuído a ele, de suas revoltas assim como a questão de sua submissão voluntária ou forçada.
A derrota alemã de 1918 e a queda do império liberaram um assalto proletário forte o suficiente para sacudir as fundações da sociedade mas incapaz de revolucioná-la, levando assim a social-democracia e os sindicatos para o centro do palco do equilíbrio político. Seus líderes, homens da ordem, naturalmente convocaram os Freikorps, agrupamentos perfeitamente fascistas com muitos futuros nazis em suas fileiras, para reprimir uma minoria operária radical em nome dos interesses da maioria reformista. Derrotados pelas regras da democracia burguesa, os comunistas também o foram pela democracia operária: os “conselhos de empresa” colocaram sua fé nas organizações tradicionais, não nas dos revolucionários, facilmente denunciados como antidemocratas.
Democracia e social-democracia então foram indispensáveis ao capitalismo alemão para enquadrar os trabalhadores, assassinar o espírito de revolta nas urnas, obter dos patrões uma série de reformas e dispersar os revolucionários. 8
Após 1929, em contraste, o capitalismo precisou se concentrar, eliminar parte das classes médias, disciplinar os proletários e até mesmo a burguesia. O movimento operário, defendendo o pluralismo político e os interesses imediatos dos trabalhadores, bloqueava a situação. Assegurando a mediação entre capital e trabalho, as organizações operárias derivam sua função tanto de um quanto de outro, mas tentam ficar autônomas frente a ambos e frente ao Estado. A social-democracia só tem significado ladeando o patronato e o Estado, e não absorvida por eles. Sua vocação é administrar uma imensa rede política, municipal, social, mutualista, cultural e o que hoje se chama associativismo. Também o KPD rapidamente constituiu seu próprio império, menor, mas igualmente vasto. Mas o capital, cada vez mais organizado, tende a juntar todos os fios, introduzindo o elemento estatista na empresa, o burguês na burocracia sindical e o social na administração. O peso do reformismo operário, presente até no seio do Estado, e sua existência como “contra-sociedade”, fizeram dele um fator de conservação social que o capital em crise precisava eliminar. Expressão da defesa do trabalho assalariado enquanto componente do capital, o SPD e os sindicatos cumpriram em 1918-1921 uma função anticomunista indispensável, mas essa mesma função os levou depois a colocar o interesse dos assalariados na frente de tudo mais, em detrimento da reorganização do capital como um todo.
Um Estado burguês estável tentaria resolver esse problema mediante uma legislação anti-sindical, uma redução das “fortalezas operárias”, exaltando as classes médias contra os proletários em nome da modernidade contra o arcaísmo, como bem mais tarde faria a Inglaterra thatcherista. Uma tal ofensiva supõe um capital relativamente unido por trás de poucas facções dominantes. Mas a burguesia alemã de 1930 estava profundamente dividida, as classes médias estavam frustradas, e o Estado-nação estava em frangalhos.
Pela negociação ou pela força bruta, a democracia moderna representa e concilia os interesses antagônicos... na medida do possível. As repetidas crises parlamentares e complôs reais ou inventados (dos quais a Alemanha foi palco depois da queda do último chanceler socialista em 1930) são, na democracia, signos invariáveis de uma persistente falta de unidade nos círculos dirigentes. No início da década de 1930, face à crise, a burguesia estava dilacerada entre duas estratégias sociais e geopolíticas inconciliáveis: integração maior ou eliminação do movimento operário; comércio internacional “pacífico” ou autarquia assentando as bases de uma expansão militar. A solução não implicava forçosamente que se tivesse que passar por um Hitler, mas supunha, em todo caso, uma concentração de força e violência nas mãos do poder central. Terminado o compromisso centrista-reformista, a única opção que restou foi a estatista, protecionista e repressiva.
Um programa assim implicava o desmantelamento violento da social-democracia, que, ao domesticar os trabalhadores, veio a exercer uma influência excessiva sem entretanto unir toda a Alemanha atrás de si. Esta foi a tarefa do nazismo, que conseguiu apelar a todas as classes, dos desempregados aos capitães de indústria, com uma demagogia que ultrapassava até mesmo a dos políticos burgueses, e com o anti-semitismo para criar coesão através de exclusão.
Como os partidos operários bloqueariam uma tal loucura xenofóbica e racista após terem tão frequentemente servido de companheiros de viagem do nacionalismo? Para o SPD, isso era claro desde a virada do século, óbvio em 1914, e autografado com sangue em 1919 na aliança com os Freikorps, formados no mesmo molde militarista dos fasci. Quanto ao racismo, não raro algum jornalista do SPD, um dirigente sindical, ou até a prestigiosa revista teórica Die Neue Zeit, atacava judeus “estrangeiros” (poloneses, russos). Em março de 1920, a polícia de Berlim, então sob controle dos socialistas, atacou o bairro judeu e cerca de mil pessoas foram enviadas a um campo, antes de finalmente serem liberadas. Como a social-democracia alemã escaparia das obsessões e das fobias do Volk ao qual ela também pretendia pertencer?
O KPD, por sua vez, não hesitou em se aliar aos nacionalistas contra a ocupação francesa do Ruhr em 1923. Para Radek, “só a classe operária pode salvar a nação”. Thalheimer, dirigente do KPD, deixou claro que o partido devia lutar ao lado da burguesia alemã que “cumpre um papel objetivamente revolucionário por sua política externa”. Zinoviev não disse outra coisa na sessão do executivo amplo da III Internacional, em junho de 1923:
“A questão nacional é também a questão vital da política alemã. Nosso partido tem bons motivos para dizer que, apesar de não reconhecermos a pátria burguesa, somos nós que defendemos, na Alemanha, o futuro do país, e da nação. Nossos companheiros o reconheceram sem ousar realizar uma campanha prática.”
E Radek, na mesma reunião:
“Afirmar a questão nacional significa fazer o proletariado compreender que ele deve ser o Partido da Nação, isso na Inglaterra é apenas uma fórmula de propaganda pelo objetivo final. Não se trata da mesma coisa na Alemanha. É significativo que um jornal nacional-socialista se levante violentamente contra as suspeitas de que os comunistas são objeto: ele os menciona como um partido combativo que se torna cada vez mais nacional-bolchevique. O nacional-bolchevismo significava em 1920 uma tentativa em favor de alguns generais; hoje ele traduz o sentimento unânime de que a salvação está nas mãos do PC. Apenas nós somos capazes de encontrar uma solução para a situação atual da Alemanha. Colocar a nação em primeiro plano, na Alemanha assim como nas colônias, é fazer uma trabalho revolucionário.” (citações extraídas do relato aparecido no Bulletin Communiste, 28 de junho de 1923)
Uma dezena de anos estalinistas depois, o KPD apela a uma “revolução nacional e social”, denuncia o nazismo como “traidor da nação”, e usa tanto o slogan “revolução nacional” que ele inspirou Trotsky em 1931 a escrever um panfleto Contra o nacional-comunismo.
Desafortunadamente para os militantes do KPD, em matéria de demagogia nacional, os nazis eram imbatíveis.
Janeiro de 1933: o jogo acabou. Ninguém pode negar que a República de Weimar se oferereceu à Hitler. A direita e o centro acabaram por considerá-lo uma solução viável para tirar o país do impasse, ou como um mal menor provisório. O “grande capital”, reticente ante qualquer agitação incontrolável, não tinha, até então, sido mais generoso com o NSDAP do que com as outras formações de direita e nacionalistas. Foi somente em novembro de 1932 que Schacht, homem de confiança da burguesia, convenceu o empresariado a apoiar Hitler (que acabava de sofrer um ligeiro declínio eleitoral) porque ele o via como uma força unificadora do Estado e da sociedade. O fato de que os grandes burgueses não tenham previsto e nem sempre apreciado a evolução subsequente, a guerra e ainda menos a derrota, é uma outra questão, e de todo modo, eles serão pouco numerosos na resistência clandestina ao regime.
Foi dentro da perfeita legalidade que Hitler foi nomeado chanceler em 30 de janeiro de 1933 por Hindenburg, que foi eleito presidente um ano antes com o apoio dos socialistas que viam nele... um baluarte contra Hitler, e os nazis eram minoria no primeiro governo formado pelo líder do NSDAP.
Nas semanas seguintes, as máscaras caíram, os militantes operários são perseguidos, seus locais são saqueados, o terror se instala e as eleições de março de 1933, que ocorrem sob a violência conjunta da SA e da polícia, envia ao Reichstag 288 deputados do NSDAP (mas ainda 80 do KPD e 120 do SPD).
Os ingênuos podem se surpreender que o aparato repressivo se coloque tão docilmente à serviço de ditadores: mas do policial de rua até o líder do ministério, a máquina estatal obedece à autoridade que a comanda. Os novos líderes não gozavam de plena legitimidade? Eminentes juristas não escreveram cada decreto em conformidade com as leis superiores do país? No “Estado democrático” - e Weimar bem que era um -, se há um conflito entre os dois componentes do binômio, não é a democracia que prevalecerá. No “Estado de direito” – e Weimar também era um -, se há contradição, é o direito que terá que se dobrar, servir ao Estado, jamais o inverso.
Durante esses poucos meses, o que os democratas fizeram? Os de direita aceitaram. O Zentrum, partido católico do centro (ex-pivô das maiorias de Weimar junto com o SPD), que inclusive melhorou sua posição nas eleições de março de 1933, votou por quatro anos de plenos poderes para Hitler - a base legal da ditadura nazista. O Zentrum se auto-dissolverá em julho.
Os socialistas, por sua vez, tentaram escapar do destino do KPD, que foi proibido depois de 28 de fevereiro (um dia após o incêndio do Reichstag). Em 30 de março de 1933, para provar seu caráter nacional alemão, eles saíram da Segunda Internacional [Internacional Operária e Socialista]. Em 17 de maio, seu grupo parlamentar votou pela política externa de Hitler. O SPD será, porém, dissolvido em 22 de junho como “inimigo do povo e do Estado”
Quanto aos sindicatos, em 1932, à maneira da CGL italiana, eles professaram o a-politicismo para salvar o que pudessem, com seus líderes se proclamando independentes de qualquer partido e indiferentes à forma do Estado, o que não os impediu de buscar um acordo com Schleicher, chanceler desde novembro de 1932, então em busca de uma base e alguma demagogia pró-operária. Uma vez que os nazis formaram um governo, os líderes sindicais se deixaram persuadir que, se reconhecessem o nacional-socialismo, o regime lhes deixaria algum pequeno espaço. Isso os levou ao ridículo desfile de sindicalistas sob a suástica, no primeiro de maio de 1933, transformado em “Festa do Trabalho Alemão”. Esforço em vão. Nos dias seguintes, os nazistas liquidaram os sindicatos e prenderam os militantes...
Formada para conter as massas e negociar em seu nome ou, se isso falhar, reprimi-las, a burocracia operária estava ainda lutando uma situação já passada. Multiplicar os sinais de lealdade não lhe serviu de nada. A burocracia operária estava sendo atacada não por atacar o patriotismo, mas os cofres das classes proprietárias. Não era seu internacionalismo verbal herdado de antes de 1914 que incomodava a burguesia, mas a existência de um sindicalismo que, embora servil, retinha certa independência, numa época em que o capital não tolerava mais outra comunidade que não a dele mesmo, e em que até um órgão de colaboração de classe se tornava supérfluo se o Estado não o controlasse por completo.
BARCELONA: 1936
Na Itália e na Alemanha, o fascismo tomou o Estado pelas vias legais. A democracia capitulou diante da ditadura. Pior ainda, ela recebeu a ditadura de braços abertos. E na Espanha...? Longe de ser o caso excepcional de uma ação resoluta que foi, porém, derrotada, a Espanha representa o caso extremo de confronto armado entre democracia e fascismo em que a natureza da luta permaneceu a mesma oposição entre duas formas de desenvolvimento do capital, duas formas políticas do Estado capitalista, duas estruturas estatais disputando a legitimidade em um mesmo país.
“Objeção!...Então, segundo vós, Franco e uma milícia de trabalhadores são a mesma coisa? Os grandes proprietários de terras e os camponeses pobres que coletivizaram a terra são dois campos que tem a mesma natureza?!"
Antes de tudo, o confronto aconteceu somente porque os trabalhadores se insurgiram contra o fascismo. Toda a força e contradição do movimento se manifestaram em suas primeiras semanas, toda a sua complexidade: uma guerra de classes inegável se transformou em guerra civil capitalista, na qual proletários dos dois campos morreram em nome de estruturas capitalistas rivais (embora em nenhum momento, é claro, tivessem um entendimento prévio e nem tenham atribuído a si os papéis de duas facções burguesas teleguiando as massas a seu favor). 9
A história de uma sociedade dividida em classes gira em torno da necessidade de as reunir. Quando, ao impulso popular, se acrescenta, como na Espanha, o despedaçamento das camadas dominantes, a crise social assume o aspecto de uma crise do Estado. Mussolini e Hitler triunfaram em países com Estados nacionais frágeis e recentemente unificados, e com tendências regionalistas poderosas. Na Espanha, do renascimento aos tempos modernos, o Estado se nutriu de uma sociedade mercantil que foi a ponta de lança colonial, mas que ele a seguir arruinou, paralisando uma das condições da expansão industrial: uma reforma agrária. De fato, a industrialização teve que abrir caminho através do monopólio, do peculato e do parasitismo.
Falta aqui espaço para resumir a imbricação, no século XIX, de inumeráveis reformas e impasses liberais, as querelas dinásticas, as guerras carlistas, a sucessão tragicômica de regimes e partidos depois da primeira guerra mundial, e o ciclo de insurreições e repressões após o advento da República em 1931. No fundo desses sobressaltos estava a fragilidade de uma burguesia em ascensão, empacada entre sua rivalidade com a oligarquia fundiária e a necessidade imperiosa de conter as revoltas camponesas e operárias. Em 1936, a questão da terra não estava resolvida: ao contrário da França pós 1789, a venda dos bens do clero espanhol, imposta em meados do século XIX, fortaleceu uma burguesia latifundiária. Mesmo anos depois de 1931, o Instituto pela Reforma Agrária só usou um terço dos fundos que dispunha para comprar grandes propriedades. A conflagração de 1936-1939 nunca teria alcançado tal escalada política aos extremos, até a ruptura do Estado em duas facções que travaram por três anos uma guerra civil, sem os tremores que não cessaram de sacudir as profundidades sociais por um século.
Uma tão persistente falta de unidade interditava a alternância entre dois partidos, um conservador e outro reformador (como na Inglaterra), ou a força estabilizadora de uma formação no centro de gravidade político (como o partido radical francês na terceira república). Ante julho de 1936, em uma Espanha onde os operários agrícolas não hesitaram em ocupar as terras, onde a multidão não hesitou em libertar cerca de 30.000 prisioneiros políticos, onde as greves eram rampantes e os trabalhadores dos bondes de Madri buscaram autogeri-los, a social-democracia adotou inevitavelmente uma visão extremista. Como dizia um líder socialista: “Em nosso país, as possibilidades de estabelecer uma república democrática diminuem a cada dia. As eleições não passam de uma forma da guerra civil.” (pode-se acrescentar: uma forma de controlá-la)
No verão de 1936, era um segredo de polichinelo que um golpe militar estava vindo. Após ter deixado aos militares rebeldes toda facilidade para se prepararem, a Frente Popular, eleita em fevereiro, iria negociar e talvez ceder. Os políticos fariam as pazes e se adaptariam, como na ditadura de Primo de Rivera (1923-1931), apoiada por eminentes socialistas (Caballero foi conselheiro, antes de se tornar ministro do trabalho em 1931, e depois líder do governo republicano de setembro de 1936 a maio de 1937). Ademais, o general que, dois anos antes, tinha obedecido as ordens republicanas de massacrar os insurgentes das Astúrias – Franco – não poderia ser inteiramente mal.
Mas os proletários se levantaram, impedindo o sucesso do golpe em metade do país, e permaneceram armados. Agindo assim, eles obviamente combateram o fascismo, mas não agiam como antifascistas porque sua ação se dirigia ao mesmo tempo contra Franco e contra um Estado democrático mais perplexo com a iniciativa deles do que com a rebelião militar. Em 24 horas, três primeiro-ministros se sucederam antes que fosse aceito o fato consumado: o auto-armamento do povo.
Mais uma vez, o desenrolar da insurreição mostra que o problema da violência não é nunca primariamente técnico. A vitória não pertence àqueles que tem superioridade em armamento (os militares) ou em número (o povo), mas a quem ousa tomar a iniciativa. Lá onde os trabalhadores confiaram no Estado, este permaneceu passivo ou prometia a lua, como ocorreu em Saragoça. Já quando a luta dos trabalhadores foi impetuosa (como em Málaga), eles venceram. Onde lhes faltava vigor, foram afogados em sangue (20.000 mortos em Sevilha).
Assim, a guerra civil espanhola começou com uma autêntica insurreição, mas esse fato não é suficiente para a caracterizar. Ele define apenas o primeiro momento. Após derrotar a reação em um grande número de cidades, os trabalhadores possuíam o poder. Mas o que fizeram com ele? Devolveriam-no ao Estado republicano, ou o utilizariam para ir mais longe, em um sentido comunista?
Criado imediatamente depois da insurreição, o Comitê Central de Milícias Antifascistas reuniu delegados da CNT, da FAI, da UGT, do POUM, do PSUC (produto de recente fusão do PC e do PS na Catalunha), dos partidos moderados, e quatro representantes da Generalitat, o governo regional da Catalunha. Verdadeira ponte entre o movimento operário e o Estado, e, além disso, ligada, se não integrada, ao Departamento de Defesa da Generalitat pela presença nele do Conselho de Defesa, do comissário de ordem pública, etc. o Comitê Central de Milícias não tardará a se dissolver.
Com efeito, ao renunciar à sua autonomia, a maior parte dos proletários acreditou estar, apesar de tudo, detendo o poder real e dando aos políticos, de quem desconfiava, apenas uma fachada de autoridade, que pensava poder controlar e orientar em um sentido que lhe fosse favorável. Eles não estavam armados?
Erro fatal. A questão não é: quem tem as armas? Mas sim: quem tem as armas fez o quê? 10.000, 100.000 proletários armados até os dentes não são nada se eles colocarem sua confiança em qualquer outra coisa que não na sua própria capacidade de transformar o mundo. Senão, no dia seguinte, em um mês ou em um ano, pela esperança ou pela força, o poder cuja autoridade eles reconheceram vai tomar deles as armas que deixaram de usar contra esse poder.
“A luta na Espanha entre o ´governo legal´ e as ´forças rebeldes´ não é de modo algum uma luta por ideais, mas uma luta de certos grupos capitalistas entrincheirados na república burguesa contra outros grupos capitalistas (...). Esse gabinete espanhol não se distingue, em seus princípios, do regime do cão sangrento Lerroux, que, em 1934, abateu milhares de proletários espanhóis (...). Atualmente, os trabalhadores espanhóis são oprimidos de armas em punho!” (Proletariër, publicado pelo grupo conselhista de La Haye, 27 de julho de 1936).
Os insurgentes não atacaram o governo legal, ou seja, o Estado existente, e todas as suas ações subsequentes se farão sob a direção dele. “A revolução tinha começado, mas nunca se consolidou”, escreverá George Orwell. Essa é a questão central, que determinou o destino de uma luta armada cada vez mais perdida por exaustão para Franco, até a destruição violenta pelos dois campos, o das coletivizações e o das socializações. Após o verão de 1936, na Espanha, o poder real é exercido pelo Estado e não pelas organizações, sindicatos, coletividades, comitês, etc. Muito embora Andrés Nin, o líder do POUM, fosse conselheiro no Ministério da Justiça, “o POUM em parte alguma conseguiu ter influência sobre a polícia”, admite um defensor desse partido. 10 Apesar de as milícias dos trabalhadores terem sido de fato uma das jóias do exército republicano, e de pagarem um pesado tributo em combate, elas não tiveram peso nas decisões do estado-maior, que não cessou de integrá-las em unidades regulares (isso foi completado no início de 1937), preferindo reduzi-las do que tolerar sua autonomia. Quanto à poderosa CNT, ela cedeu diante de um PC que era muito fraco antes de julho de 1936 (14 deputados eleitos na câmara da Frente Popular em fevereiro de 1936, contra 85 socialistas), mas que conseguiu se fundir com parte do aparelho de Estado, extraindo disso a força que usará cada vez mais contra os radicais, em particular contra os militantes da CNT. Quem dominava a situação? Eis a questão. E a resposta: o Estado soube fazer um uso brutal de seu poder quando precisou.
Se a burguesia republicana e os estalinistas perderam um tempo precioso desmantelando as comunas camponesas, desarmando as milícias do POUM, caçando os “sabotadores” trotskistas e outros “agentes de Hitler” - tudo isso no próprio momento em que se esperava que o antifascismo fosse com tudo para destruir Franco -, não foi por causa de um erro suicida. Para o Estado e o PC (que foi se tornando a ossadura militar-policial do Estado), nada disso foi tempo perdido. A seguinte frase é atribuída ao chefe do PSUC: “Antes de tomar Saragoça, é preciso tomar Barcelona”. Sua prioridade não foi nunca esmagar Franco, mas manter o controle das massas, porque essa é a função do Estado. Barcelona foi recapturada dos proletários. Saragoça permaneceu nas mãos dos franquistas.
BARCELONA: MAIO DE 1937
A polícia tenta ocupar a central telefônica controlada pelos trabalhadores anarquistas (e socialistas). Na metrópole catalã, coração e símbolo da revolução, a legalidade está pronta para fazer de tudo para desarmar o que quer que permaneça vivo, espontâneo e anti-burguês. A polícia local, além disso, está nas mãos do PSUC. Face a um poder que se comporta abertamente como inimigo, os proletários compreenderam finalmente que esse poder não é o deles, que, com sua insurreição dez meses antes, eles deram de presente esse poder que agora se volta contra eles. Em resposta, uma greve geral paralisa Barcelona. Tarde demais. A capacidade de se insurgir contra o Estado (dessa vez sob sua forma democrática) está sempre ali, mas não a capacidade de levar a luta ao ponto de ruptura.
Como sempre, a questão “social” prima sobre a militar. A autoridade legal não se impõe por batalhas de rua. Em poucas horas se instalou não uma guerrilha urbana, mas uma guerra de posições, um face-a-face de blocos de prédios contra blocos de prédios, num empate defensivo em que ninguém prevalecia, porque ninguém atacava. Bloqueada na sua ofensiva, a polícia não se arriscou mais em investir nas construções onde os anarquistas estavam entrincheirados. Grosso modo, o PC e o Estado detém o centro da cidade, e a CNT e o POUM, os bairros populares. Foi só politicamente que o status quo conseguiu se desenredar da situação. As massas colocaram sua confiança nas duas organizações atacadas, que, temerosas de se alienarem do Estado, obtiveram, não sem dificuldade, a volta ao trabalho – minando assim a única força capaz de salvá-las politicamente e... “fisicamente”. No instante em que cessa a greve, sabendo que doravante domina a situação, o governo traz de Valência 6.000 guardas de assalto, a elite da polícia. Tendo aceito a mediação das “organizações representativas” e os conselhos de moderação do POUM e da CNT, aqueles que em julho de 1936 derrotaram os militares fascistas, em maio de 1937 se renderam sem combate frente aos policiais republicanos.
Nesse ponto, a repressão pôde começar. Bastaram apenas algumas semanas para proibir o POUM, prender seus dirigentes, assassiná-los legalmente ou não, e fazer Nin desaparecer. Uma polícia paralela foi estabelecida, organizada pelo NKVD e o aparelho clandestino da Comintern, em locais secretos, e que responde apenas às ordens de Moscou. De agora em diante, qualquer um que contestar por pouco que seja o Estado republicano e seu principal aliado – a URSS – será estigmatizado e perseguido como “fascista”, e, de um continente ao outro, uma legião de bem-intencionados repetirá a calúnia, alguns por ignorância, outros por interesse, mas todos convencidos que não se deve supor falsa nenhuma denúncia quando o fascismo ataca.
A crueldade contra o POUM não foi uma aberração. Ao se opor aos processos de Moscou, o POUM condenou-se a ser destruído por um estalinismo engajado numa luta mundial e sem misericórdia contra seus rivais pelo controle das massas. Na época, na maioria dos países, a maior parte dos partidos, inúmeros analistas políticos, advogados e até a Liga dos Direitos do Homem francesa avalizou a tese da culpa dos acusados. Sessenta anos depois, a versão oficial denuncia esses processos e vê neles o sinal de uma louca vontade de poder do Kremlin. Como se os crimes estalinistas não tivessem relação com o antifascismo! A lógica antifascista será sempre a de se alinhar com o mais moderado e combater o mais radical. A ação antifascista não esquece nunca de acusar o “fascismo” na esquerda: segundo as épocas, trotskistas, anarquistas, esquerdistas, ultra-esquerda, em suma, todos os que incomodam a esquerda oficial.
No plano puramente político, maio de 1937 engendra o que alguns meses antes era inimaginável: um socialista ainda mais à direita do que Caballero: Negrin, dirigindo um governo que se afirma firmemente ao lado da ordem, incluindo aberta repressão contra os trabalhadores. Com toda evidência, constata George Orwell (que quase perdeu sua vida nos eventos), a guerra “pela democracia” está morta: dois fascismos se confrontam, com a única diferença que um deles é menos desumano do que seu rival. 11 Portanto, Orwell não renuncia à necessidade de evitar aquele fascismo “mais brutal e mais desenvolvido de Franco e de Hitler”. A questão então já não era mais nada além de combater por um fascismo menos pior do que o outro...
A GUERRA DEVORA A REVOLUÇÃO 12
O poder não reside mais na ponta do fuzil do que na urna. Nenhuma revolução é pacífica, mas a sua dimensão “militar” nunca é central. O problema não é que os proles se decidam a finalmente tomar os arsenais, mas que eles exprimam aquilo que eles são: seres mercantilizados que não podem nem querem mais existir como mercadorias, e cuja revolta explode a lógica capitalista. É desse “armamento” que decorrem as barricadas e os fuzis. Quanto maior a transformação social, menos armas são necessárias. Uma revolução comunista nunca parecerá um massacre: não por qualquer princípio de não-violência, mas porque ela só é revolução se subverte mais (incluídos os soldados) do que destrói.
Imaginar uma frente proletária face a uma frente burguesa é pensar o proletariado em termos burgueses, à maneira de uma revolução política ou de uma guerra (tomar o poder do outro, ocupar seu território). Ao se fazer isso, se reintroduz aquilo que o momento insurrecional tinha derrubado: a hierarquia, o respeito aos especialistas, à ciência que sabe, à técnica que resolve, à tudo que sujeita o homem na vida cotidiana. A serviço do Estado, o trabalhador “miliciano” se transforma em “soldado”. Na Espanha, a partir do outono de 1936, a revolução se afunda na guerra, e em um tipo de combate típico de Estados: a guerra de frentes.
Na forma de “colunas”, os trabalhadores deixaram Barcelona para derrotar o fascismo em outras cidades, começando por Saragoça. Enquanto supunham estarem levando a revolução para além das zonas de controle republicano, eles na verdade tinham fracassado em revolucionar essas mesmas zonas. Até mesmo Durruti não parecia perceber que o Estado estava intacto por toda parte. A medida que sua coluna (composta 70% por anarquistas) avançava, ela deixava as coletivizações no seu caminho: os miliciano ajudavam os camponeses e propagavam ideias revolucionárias. Mas, declara Durruti, “nós não temos senão um objetivo: esmagar os fascistas”. Mas enquanto ele pôde dizer que “essas milícias nunca defenderão a burguesia”, elas também não lutaram contra ela. Duas semanas antes de sua morte, ele declara em um discurso transmitido no rádio em 4 de novembro de 1936:
“Na linha de frente e nas trincheiras, um único pensamento e um único objetivo: esmagar o fascismo.
Nós convocamos o povo catalão a dar um fim à toda luta intestina e a toda manobra, a esquecer todo ressentimento político e a não pensar senão na guerra. Os políticos só sabem fazer truques para assegurar uma vida confortável para eles mesmos. Essa arte pouco invejável deve ser substituída pela arte do trabalho. O povo catalão deve ser digno de seus irmãos que combatem na linha de frente. Se os trabalhadores da Catalunha se encarregaram da tarefa suprema de lutar em muitas frentes, aqueles que permaneceram nas aldeias e cidades devem se mobilizar para os apoiar. Nossos heroicos milicianos, prontos para dar sua vida no campo de batalha, querem estar seguros de sua retaguarda. Eles sabem que ninguém deve se desviar de seu trabalho sob pretexto de reivindicar um aumento salarial ou uma redução de jornada. Hoje, é preciso que todos os trabalhadores, a começar por aqueles da CNT, se preparem para os maiores sacrifícios. Somente assim podemos esperar derrotar o fascismo.
Eu apelo a todas as organizações para que elas enterrem suas discórdias e rancores (...)
A militarização das milícias foi decretada. Se isso foi feito para nos causar medo, impor sobre nós uma disciplina de ferro, foi um engano imenso. Àqueles que assinaram esse decreto, nós desafiamos que venham à linha de frente: verão por si mesmos a nossa moral e disciplina e compararão com a disciplina à retaguarda. Recusamos toda disciplina imposta. Estamos fazendo nosso dever. Venham então à linha de frente ver nossa organização. Um dia seremos nós que iremos a Barcelona avaliar vossa disciplina, vossa organização e vossa administração!
Não há nenhuma desordem na linha de frente, nenhuma falta de disciplina. Todos nós somos conscientes de nossa responsabilidade. Sabemos da confiança que vocês puseram em nós. Vocês podem dormir tranquilos. Mas não esqueçam jamais que nós deixamos Barcelona em vossas mãos, e esperamos também responsabilidade e disciplina de vocês. Mostraremos que somos capazes de evitar que surjam novas dissensões após nossa vitória sobre o fascismo. Aqueles que querem que seu movimento tenha preeminência estão num mau caminho. Contra a tirania, só existe uma única frente possível, uma única organização e uma única forma de disciplina”. 13
Os ouvintes de um tal discurso poderiam deduzir que uma revolução social tinha acontecido, que se esperava apenas que ela fosse completada militarmente: esmagar os fascistas.
Durruti e seus companheiros encarnaram o melhor de uma energia que se lança ao assalto do mundo existente. Mas a capacidade de lutar é insuficiente quando os trabalhadores atacam apenas uma das formas particulares de poder excluindo outras. Aceitar a guerra de frentes, em meados de 1936, significou partir com armas contra Franco deixando, na retaguarda, as armas políticas e sociais nas mãos da burguesia, e, além disso, significou privar a própria ação militar do vigor inicial que ela adquiriu de outro terreno, o único favorável ao proletariado. Como a “esquerda holandesa” escreveu:
“Se os trabalhadores realmente querem formar uma frente de defesa contra os Brancos, eles só podem fazer isso tomando eles mesmos o poder político, ao invés de deixá-lo nas mãos de um governo de frente popular. Isso significa: a defesa da revolução só é possível com base na ditadura do proletariado baseada nos conselhos operários, e não com base na colaboração de todos os partidos antifascistas (...). A destruição do velho aparelho de Estado e o exercício das funções centrais do poder pelos próprios trabalhadores são o eixo da revolução proletária”. (P.I.C., Grupo dos Comunistas Internacionalistas [G.I.C.], Amsterdã, outubro de 1936).
No verão de 1936, longe de terem uma superioridade militar decisiva, os nacionalistas não detêm nenhuma grande cidade. Sua principal força era a Legião Estrangeira e os “Mouros” recrutados no Marrocos, que em 1912 tinha sido dividido entre Espanha e França em dois protetorados, mas que foi por muito tempo rebelde aos sonhos coloniais tanto da Espanha quando da França. O exército real tinha sofrido uma grave derrota em 1921, particularmente devido a deserções de soldados marroquinos. Apesar da cooperação entre França e Espanha, a guerra do Rif (na qual um general chamado Franco se celebrizou) terminou apenas quando Abd el-Krim se rendeu em 1926. Dez anos depois, proclamar a independência imediata e incondicional do Marrocos espanhol teria no mínimo semeado inquietação entre as tropas de choque da reação. A República repudiou evidentemente essa solução, sob a dupla pressão dos meios conservadores e das democracias inglesa e francesa, pouco entusiasmadas para ver seus próprios impérios caírem. No mesmo instante, a Frente Popular francesa, não apenas não garantiu nenhuma reforma digna desse nome para seus assuntos coloniais, mas dissolveu a Etoile Nord-Africaine, um movimento proletário na Argélia.
A política de “não-intervenção” na Espanha, sabe-se, foi uma farsa. Uma semana após o golpe, Londres anunciou sua oposição a todo envio de armamentos ao governo legal espanhol, e sua neutralidade no caso de a França entrar no conflito. Assim, em 1936, a democrática Inglaterra colocava no mesmo nível a República e o fascismo... A França de Blum e Thorez envia alguns aviões, enquanto a Alemanha e a Itália enviam divisões inteiras com suas provisões. Quanto às Brigadas Internacionais, sob controle da URSS e do PC, seu valor militar é pago a um alto preço: a eliminação de toda contestação ao estalinismo nas fileiras operárias. Foi no início de 1937, depois dos primeiros envios de armamentos russos, que a Catalunha removeu Nin de seu posto de conselheiro do ministério da justiça.
Raramente a estreita visão da história como uma lista de batalhas, canhões e estratégias, foi tão inepta para explicar o curso de uma guerra diretamente “social”, determinada como foi pela dinâmica interna do antifascismo. O élan revolucionário inicialmente quebrou o élan dos nacionalistas. E então os operários aceitaram a legalidade: o conflito se perpetuou, se exauriu. Desde o fim de 1936, as colunas empacaram diante de Saragoça. O Estado armou as unidades que ele confiava, isto é, quem não atacava a propriedade. No início de 1937, entre as mal equipadas milícias do POUM que combatiam os franquistas com armas velhas, a posse de um revólver era um luxo. Passando pelas cidades, eles cruzavam com soldados regulares perfeitamente equipados. As linhas de frente empacaram como os proletários de Barcelona face aos policiais. O último sobressalto foi a vitória republicana em Madri. Logo depois, o governo ordenou aos particulares que entregassem suas armas: o decreto teve pouco efeito, mas foi indicativo de uma vontade de desarmar o povo. A decepção e a suspeita minaram a confiança. A guerra se tornou affaire de especialistas. Finalmente, o recuo republicano se acelera à medida que se esvai o conteúdo social e as aparências revolucionárias no campo antifascista.
Reduzir a revolução à uma guerra simplifica e falsifica a questão social na alternativa: ganhar ou perder, ser “o mais forte”, bastando dispor de soldados disciplinados, de uma logística superior, de oficiais competentes, e do apoio de aliados de cuja natureza política faz-se vista grossa o máximo possível. Curiosamente, tudo isso significa também afastar o conflito da vida cotidiana. A guerra tem a particularidade de, mesmo entre aqueles que aderem a ela, ninguém querer perdê-la, mas todos querem que ela acabe. Diferentemente da revolução, exceto em caso de derrota, a guerra não ultrapassa a porta da minha casa. Convertida em confronto militar, a luta antifranquista cessa de ser um engajamento pessoal, perde sua realidade imediata, e se torna mobilização econômica (trabalhar para a linha de frente), ideológica (colar cartazes na rua, reuniões) e humana: a partir de janeiro de 1937, os alistamentos voluntários secam, e a guerra civil, nos dois campos, passa a depender antes de tudo do serviço militar obrigatório. Consequentemente, um miliciano do verão de 1936, um ano depois, ao deixar sua coluna por desgosto com a política republicana, podia ser preso e fuzilado como “desertor”!
Em condições históricas diferentes, a evolução militar do antifranquismo - da insurreição para as milícias e então para um exército regular - lembra a guerrilha anti-napoleônica (a palavra guerrilha se originou do espanhol guerrilla na época) descrita por Marx:
“Se compararmos os três períodos da guerra de guerrilha com a história política da Espanha, constata-se que eles representam os três respectivos graus aos quais o governo contrarrevolucionário pouco a pouco curvou o espírito do povo. No início, toda a população se insurge, a seguir bandos de guerrilha fizeram uma guerra de franco-atiradores cujas reservas eram constituídas por províncias inteiras, e terminou em corpos francos sem coesão, sempre a ponto de se metamorfosear em bandidos ou afundar no nível de regimentos permanentes”.14
Em 1936, como em 1808, a evolução militar não se explica apenas nem principalmente pela arte da guerra, mas decorre da correlação de forças políticas e sociais e de sua modificação em um sentido antirrevolucionário. O compromisso evocado por Durruti, a necessidade de unidade a todo custo, só poderia dar a vitória primeiro ao Estado republicano (sobre o proletariado), e, em seguida, ao Estado franquista (sobre a República).
Houve um início de revolução na Espanha, mas que se converteu em seu contrário a partir do momento em que os proletários, persuadidos de deter o poder efetivo, depositaram sua confiança no Estado para lutar contra Franco. Com base nisso, as iniciativas e medidas subversivas que eles multiplicaram na produção e na vida cotidiana foram condenadas ao fracasso pelo simples e terrível fato de que elas se desdobraram à sombra de uma estrutura estatal que não fora nem minimamente desmantelada, que de início fora posta sob vigilância, mas que a seguir foi revigorada pelas necessidades da guerra antifranquista. Para se consolidar e se estender, as transformações sociais, sem as quais a revolução é uma palavra vazia, devem se colocar como antagônicas ao Estado, claramente identificado como adversário.
Ora, a existência de um duplo poder após julho de 1936 não passou de aparência. Não apenas os órgãos proletários surgidos da insurreição, e aqueles que a seguir fizeram as socializações, toleraram o Estado, mas eles lhe concederam preeminência na luta antifascista, como se tivessem que passar taticamente por ele para derrotar Franco. Em termos de “realismo”, o recurso aos métodos militares tradicionais, aceitos pela extrema-esquerda (POUM e CNT incluídos) em nome da eficácia, se revelarão quase sempre ineficazes. Cinquenta anos depois, ainda se lamenta isso. Mas o Estado democrático é tão pouco adequado à luta armada contra o fascismo quanto para impedir a sua subida pacífica ao poder. É normal que um Estado repudie a guerra social, e tema, ao invés de encorajar, a fraternização. Quando, em março de 1937, em Guadalajara, os antifascistas se endereçaram tanto aos trabalhadores quanto aos soldados italianos enviados por Mussolini, um grupo de italianos desertou. Esse episódio permaneceu uma exceção.
Da batalha por Madri (março de 1937) até a queda final da Catalunha (fevereiro de 1939), o cadáver da revolução abortada se decompunha nos campos de batalha. Pode-se falar de guerra na Espanha, não de revolução. Essa guerra acabou tendo por função primária resolver um problema capitalista: constituir na Espanha um Estado legítimo que desenvolvesse com sucesso seu capital nacional enquanto submete as massas populares. Em fevereiro de 1939, o surrealista (e então trotskista) Benjamin Péret assim analisou a consumação da derrota:
“A classe operária (...) tendo perdido de vista seus próprios objetivos não vê mais qualquer razão urgente para se matar pela defesa do clã burguês democrático contra o clã fascista, quer dizer, no fim das contas, pela defesa do capital anglo-francês contra o imperialismo ítalo-alemão. A guerra civil se tornou cada vez mais uma guerra imperialista” (Clé, nº2)
No mesmo ano, Bruno Rizzi escreveu em seu ensaio sobre “burocratismo coletivo” na URSS:
“As velhas democracias fazem o papel de uma política antifascista para não despertar o gato que dorme. Deve-se manter os proletários tranquilos (...). O tempo todo, as velhas democracias dão de comer antifascismo para a classe trabalhadora. O negócio dessas democracias é que a Espanha se torne um verdadeiro açougue de proletários de todas as nacionalidades a fim de apaziguar os ardores revolucionários e vender os produtos de sua indústria pesada (...). Mais uma vez, os trabalhadores do mundo foram dopados, quando se puseram a lutar contra o fascismo e pela defesa da URSS. O proletariado era precisamente a única classe capaz confrontar o fascismo, mas era preciso um proletariado dirigente e não à reboque da velha carcaça capitalista. Quanto a isso, as experiências na China e na Espanha não estão sujeitas a equívocos, e outras ainda mais duras estão em gestação.” (A URSS: coletivismo burocrático)
É incontestável que o antifranquismo tinha uma composição sociológica e uma significação social muito diferente de seu inimigo. Se a burguesia estava presente nos dois campos, a imensa maioria dos operários e camponeses pobres apoiava a República, enquanto que os estratos arcaicos e reacionários (renda da terra, pequena propriedade, clero) se alinhavam atrás de Franco. Essa polarização de classe deu uma aura progressista ao Estado republicano, mas não revela o sentido histórico do conflito. Não mais do que, por exemplo, a proporção de operários que aderem a organizações estalinistas e social-democratas (por exemplo, SPD, SFIO ou PCF) não nos diz sobre sua natureza. Tais fatos são reais, mas secundários com relação à função social que se trata de discernir. O partido que recruta trabalhadores controla ou combate toda irrupção proletária, amortece as contradições de classe. O exército republicano contava com um grande número de trabalhadores, mas por quê, com quem e sob as ordens de quem eles combatiam? Colocar a questão é respondê-la... a menos que se creia possível lutar contra a burguesia do lado da burguesia.
“A guerra civil é a expressão suprema da luta de classes” (Trotsky, A Nossa Moral e a Deles, 1938). Essa afirmação de Trotsky é correta apenas com a condição de acrescentar que, desde as guerras ditas de religião até as convulsões irlandesas, libanesas e africanas de nossa época, a guerra civil é também, e com mais frequência, a forma de uma luta social impossível ou estrangulada, quando as contradições de classe não podem se afirmar enquanto tais, elas são estilhaçadas em blocos ideológicos ou étnicos, bloqueando de modo intensificado qualquer emancipação humana.
ANARQUISTAS NO GOVERNO?
A social-democracia não “capitulou”, em agosto de 1914, como se fosse um lutador que tivesse jogado a toalha ante uma luta, mas seguiu o curso normal de um movimento internacionalista na retórica e que na realidade se tornou profundamente nacional já há muito tempo antes. O SPD era a principal força eleitoral da Alemanha em 1912, mas ele só podia ter conseguido isso para reformar, no quadro do capitalismo e segundo as suas leis, o que inclui aceitar a guerra se ela se torna a única solução das contradições sociais e políticas.
Do mesmo modo, a integração do anarquismo espanhol no Estado em 1936 só surpreende se esquecermos a sua natureza: a CNT é um sindicato, original certamente, mas um sindicato, e não existe sindicato anti-sindicato. A função transforma o órgão. Quaisquer que sejam seus ideais originais, todo organismo permanente de defesa salarial se metamorfoseia em mediador, e então em conciliador. Mesmo que esteja nas mãos de radicais, mesmo que seja reprimida, a instituição é condenada a escapar de sua base para se tornar instrumento moderador. Sindicato anarquista, a CNT é antes sindicato que anarquista. Um mundo separa o militante de base do dirigente que se senta à mesa dos patrões, mas a CNT, enquanto aparato, difere pouco da UGT: uma e outra operam para modernizar e gerir racionalmente a economia: em outras palavras, socializar o capitalismo. Um mesmo fio conecta o voto pelos créditos de guerra pelos socialistas alemães em agosto de 1914 à participação governamental dos líderes anarquistas na Catalunha (setembro de 1936), e depois na República espanhola (novembro de 1936). Já em 1914, Malatesta qualificava de “anarquistas de governo” aqueles seus companheiros (entre eles Kropotkin) que tinham aceito a defesa nacional.
A CNT era ao mesmo tempo institucionalizada e instrumento de subversão social. A contradição foi resolvida nas eleições legislativas de 1931, quando, renunciando ao antiparlamentarismo, o anarquismo convoca que se vote nos candidatos republicanos. A CNT se torna “um sindicato que aspira à conquista do poder”, o que a “conduziria inevitavelmente a uma ditadura sobre o proletariado.” (P.I.C., Grupo dos Comunistas Internacionalistas, edição alemã, dezembro de 1931).
Do compromisso em compromisso, a CNT renegou o anti-estatismo que era sua raison d'être, inclusive depois que a República e seu aliado russo mostraram sua verdadeira face ao perseguir os radicais em maio de 1937, sem falar de tudo o que se seguiu, nas prisões e porões. Então, como o POUM, a CNT foi efetiva em desarmar os proletários, pedindo que parassem de lutar contra as polícias oficial e estalinista determinadas a ir até o fim contra eles. Em maio de 1937, “a CNT foi um dos principais responsáveis pelo esmagamento da insurreição, porque ela desmoralizou o proletariado no momento em que ele se movia contra a reação democrática.” (Röte-Korrespondenz, publicação do Grupo dos Comunistas Internacionalistas [G.I.C.] holandês, junho de 1937).
Alguns radicais tiveram até a amarga surpresa de ficar em uma prisão administrada por um velho companheiro anarquista desprovido de todo controle real sobre o que acontecia entre seus muros. Em 1938, uma delegação da CNT que foi à URSS solicitar ajuda sequer levantou a questão dos processos de Moscou. Prioridade à luta antifascista... Prioridade aos canhões e fuzis... 15
Porém, alguns dirão, os anarquistas são vacinados por sua própria natureza contra o vírus estatista. O anarquismo não é o arqui-inimigo do Estado? Sim, mas...
Os “marxistas” podem recitar páginas inteiras de Marx, em A Guerra Civil na França, sobre a destruição da máquina do Estado, ou de Lênin, em O Estado e a Revolução, segundo o qual um dia os cozinheiros administrariam a sociedade no lugar dos políticos, e esses “marxistas” não se tornam menos praticantes da estatolatria mais servil, por pouco que vejam no Estado o agente do progresso ou de alguma necessidade histórica. Imaginando a sociedade do porvir como uma socialização capitalista sem capitalistas, um mundo ainda baseado no trabalho assalariado mas igualitário, democrático e planificado, eles dificilmente vêem algum problema em aceitar um Estado (transitório, nem precisa dizer) e nem vêem problema em ir para a guerra sob a direção de um Estado capitalista mau contra outro considerado ainda pior.
O anarquismo, por outro lado, ou superestima o poder do Estado ao considerar a autoridade como o inimigo principal, ou o subestima ao crer que sua destruição pode ser operada nele apenas. Ele não percebe o papel efetivo do Estado, que é garantir mas não criar a relação salarial. Nem motor nem peça central do capital, o Estado é seu representante, seu unificador. Do fato incontestável que as massas estavam em armas, o anarquismo deduz que o Estado perdeu a sua substância. Mas a substância do Estado não reside em formas institucionais, mas na função unificadora. O Estado assegura o elo que os seres humanos não podem ou não ousam criar entre si, e cria uma teia de serviços ao mesmo tempo parasitários e reais. Quando ele parecia abandonado na Espanha republicana do verão de 1936, ele subsistia como esqueleto capaz de reunir os pedaços da sociedade capitalista, ele ainda vivia, ele hibernava. Depois, ele é despertado, se fortalecendo a partir do momento em que as relações sociais esboçadas pela subversão se rasgam e se desmantelam. Ele reanima seus órgãos, e, se a ocasião permitir, assume o controle dos órgãos que a contestação tinha criado. O que era visto como uma concha vazia se revela não apenas capaz de reviver, mas de esvaziar o conteúdo das formas de poder paralelo que a revolução pensava ser sua melhor expressão.
A justificação suprema da CNT se resume à ideia de que, na realidade, o governo legal não detinha mais o poder, porque o movimento operário tinha conquistado o poder de fato.
“(...) o governo cessou de ser uma força de opressão contra a classe operária, tal como o Estado não é mais o organismo que divide a sociedade em classes. E tanto é verdadeiro que os dois [governo e Estado] cessaram de oprimir o povo, que os membros da CNT trabalham em seu seio.” (Solidaridad Obrera, 4 de novembro de 1936)
Tanto quanto o “marxismo”, o anarquismo fetichiza o Estado, imaginando que ele é encarnado em algum lugar. Já Blanqui, lançava sua pequena tropa ao assalto de prefeituras ou quartéis, mas pelo menos ele não pretendia basear sua ação no movimento proletário, apenas numa minoria que despertaria o povo. Um século depois, a CNT decreta que o Estado espanhol é um fantoche face à realidade tangível das “organizações sociais” (entenda-se: milícia, sindicatos, etc.). Mas a existência do Estado, sua razão de ser, é paliar as deficiências da sociedade “civil” com um sistema de relações, de concentrações de força, uma rede administrativa, jurídica e militar, que fica em “stand-by” em tempos de crise, em reserva, esperando a hora em que a investigação policial vai sondar os arquivos do serviço social. A revolução não tem nenhuma Bastilha a “assaltar”, nem delegacia e nem palácio de governo: sua tarefa é antes de tudo minar e destruir as condições das quais essas coisas extraem sua força.
ASCENSÃO E QUEDA DAS COLETIVIZAÇÕES
A magnitude das socializações industriais e agrícolas após junho de 1936 não foi um acaso histórico. Marx notou a tradição espanhola de autonomia popular, e o fosso entre o povo e o Estado, tornado manifesto na guerra antinapoleônica, e depois nas revoluções do século XIX, que renovaram a secular resistência comunal ao poder dinástico. A monarquia absoluta, ele observou, não abalou os estratos sociais para forjar um Estado moderno, mas deixou intactas as forças vivas do país. Napoleão pôde ver na Espanha “um cadáver”: “mas se o Estado espanhol estava de fato morto, a sociedade espanhola estava cheia de vida”, e “o que nós chamamos de Estado no sentido moderno da palavra só se materializa realmente no exército, por efeito da vida exclusivamente ´provinciana´ do povo.” 16
Na Espanha de 1936, a revolução burguesa fora feita, e era em vão que se sonhava com cenários similares a 1917, menos ainda a 1848 ou 1789. Mas se a burguesia dominou politicamente, e o capital dominou economicamente, eles estavam longe de terem criado um mercado interno unificado e um aparelho de Estado moderno e que tivesse submetido toda a sociedade e reduzido a vida local e seus particularismos. Para Marx, em 1854, um governo “despótico” coexistia com uma falta de unidade que ia até o ponto de existirem diferentes moedas e distintos sistemas fiscais: esta observação continuou em parte válida oitenta anos depois. O Estado não conseguiu nem impulsionar a indústria, nem realizar uma reforma agrária, nem extrair da agricultura os lucros necessários à acumulação do capital, nem unificar as regiões, e, sobretudo, nem manter submetidos os proletários das cidades e dos campos.
Foi quase que naturalmente que o choque de julho de 1936 fez surgir, à margem do poder político, um movimento social cujas realizações potencialmente comunistas serão reabsorvidas por um Estado que ele deixou que continuasse intacto. Os primeiros meses de uma revolução já em refluxo, mas cuja extensão ainda ocultava seu fracasso, oferece a imagem de um despedaçamento onde cada região, comuna, empresa e coletividade escapa à autoridade central. O anarquismo, e mesmo o regionalismo do POUM, exprimem no interior do movimento operário essa originalidade espanhola, que é mal compreendida quando se olha apenas para o lado negativo desse capitalismo “atrasado”. Mesmo o refluxo de 1937 não deu fim ao élan de centenas de milhares de trabalhadores e camponeses que tinham tomado as terras, fábricas, bairros e cidades, atacando portanto a propriedade, socializando a produção, com uma autonomia, uma solidariedade cotidiana, uma fraternidade que surpreendia tanto os observadores quanto os próprios participantes. 17
Infelizmente, se esses inumeráveis feitos e atos, algumas vezes se estendendo por vários anos (como a seu modo também foram as experiências russa e alemã) exprimem a existência de um movimento comunista transformando toda a sociedade, e suas formidáveis capacidades subversivas quando emerge em larga escala, tudo isso não impediu que ele já estivesse condenado desde o verão de 1936. A guerra civil espanhola provou ao mesmo tempo tanto o vigor revolucionário dos elos e formas comunitárias penetradas mas ainda não reproduzidas diretamente pelo capital, quanto sua impotência em assegurar por si só uma revolução. Na ausência de um assalto contra o Estado e da instauração de relações diferentes na escala de todo o país, eles se voltaram a uma autogestão parcelar que conservou o conteúdo e até as formas do capitalismo, especialmente o dinheiro e a divisão entre empresas. Qualquer persistência do trabalho assalariado perpetua a hierarquia de funções e rendas. 18
Medidas comunistas poderiam minar as bases dos dois Estados (o republicano e o nacionalista), pelo menos começando a resolver a questão agrária: nos anos 1930, mais da metade da população vivia subnutrida. Uma força subversiva irrompeu, levando adiante os estratos mais oprimidos, os mais distantes da “vida política” (por exemplo, as mulheres), mas não pôde ir até o fim e tomar as coisas em suas raízes.
Na época, o movimento operário dos grandes países industriais correspondia às regiões socializadas por um capital que dominou toda a sociedade, onde o comunismo era ao mesmo tempo mais próximo devido a essa socialização e mais distante devido à dissolução progressiva de todas as relações na forma mercadoria. O novo mundo, nesses países, era mais frequentemente concebido como um mundo operário, ou até industrial.
Os proletários espanhóis, pelo contrário, permaneceram sob efeito de uma penetração mais quantitativa do que qualitativa do capital na sociedade, e disso extraíram tanto sua força como sua fraqueza, como atestam a tradição e a reivindicação de autonomia representada pelo anarquismo.
“Nos últimos séculos, não houve na Andaluzia uma única sublevação que não resultasse na criação de comunas, na partilha das terras, na abolição da moeda e numa declaração de independência (...) o anarquismo dos trabalhadores não é muito diferente. Eles também reivindicam, antes de tudo, a possibilidade de gerir eles mesmos sua comunidade industrial ou seu sindicato, depois a redução das horas de trabalho e uma diminuição do esforço de cada um (...).” 19
Um ponto crucial foi a atitude diante do dinheiro. A “desaparição do dinheiro” só faz sentido se ela é mais que a substituição de um instrumento de contagem de valores por um outro (bônus de trabalho, por exemplo). Ora, seguindo nisso a maior parte dos grupos radicais, quer se reclamem do marxismo ou do anarquismo, os proletários espanhóis não costumavam ver no dinheiro a expressão, a abstração de relações reais, mas como uma ferramenta de medida, uma meio contábil, reduzindo assim o socialismo a uma gestão diferente das mesmas categorias e componentes fundamentais do capitalismo. 20
O fracasso das tentativas antimercantis não se deveu ao poder do sindicato socialista UGT (hostil às coletivizações) sobre os bancos. O fechamento dos bancos privados e do Banco Central daria um fim às relações mercantis apenas se a produção e a vida fossem organizadas sem a mediação da mercadoria, e se essa vida e produção comunais gradualmente tomassem o conjunto das relações sociais. O dinheiro não é o “mal” oposto à uma produção que seria o “bem”, mas a manifestação (hoje cada vez mais imaterial) do caráter de mercadoria de todos os aspectos da vida. Isso não pode ser destruído eliminando os símbolos, mas ao fazer desaparecer a troca enquanto tal como relação social.
De fato, apenas as coletividades agrícolas conseguiram funcionar sem dinheiro, muitas vezes conseguiram isso com ajuda de moedas locais, e os bônus serviam frequentemente de “moeda interna”. Às vezes, o dinheiro era retornado ao coletivo de trabalhadores. Às vezes, os trabalhadores recebiam bônus em proporção não ao trabalho fornecido, mas ao tamanho de sua família (“A cada um segundo suas necessidades”). Outras vezes, o dinheiro era ignorado, e os recursos eram compartilhados sem nenhum cômputo. Um espírito igualitário predominava, frequentemente ligado a um desprezo pelo “luxo”. 21 Porém, incapazes de estender uma produção não-mercantil além de zonas autônomas justapostas sem ação global, os sovietes, coletivos e cidades libertadas foram se transformando em comunidades precárias, mais cedo ou mais tarde destruídas desde seu interior ou senão aniquiladas pelas armas tanto fascistas quanto republicanas. Em Aragão, a coluna do estalinista Lister fez disso sua especialidade. Entrando na cidade de Calanda, seu primeiro gesto foi escrever em um muro: “A coletivização é um roubo”.
COLETIVIZAR OU COMUNIZAR?
Depois da AIT [Associação Internacional dos Trabalhadores, ou 1ª Internacional], o anarquismo contrapôs à estatização social-democrata a apropriação coletiva dos meios de produção. As duas visões, porém, compartilham o mesmo ponto de partida: a necessidade de que a gestão seja coletiva - mas para gerir o quê? É claro, o que a socialdemocracia realizava do alto, burocraticamente, os proletários espanhóis praticavam da base, armados, cada um sendo responsável diante de todos, tomando assim a terra e as fábricas de uma minoria especializada em organizar e explorar os outros. O oposto, em suma, da co-gestão das minas de carvão pelos sindicatos socialistas ou estalinistas. No entanto, o fato de uma coletividade, e não o Estado ou uma burocracia, assumir a produção de sua vida material não suprime por si só o seu caráter capitalista.
O trabalho assalariado é a passagem de uma atividade - qualquer que seja, arar um campo ou imprimir um jornal - pela forma dinheiro, que, tornando-a possível, se expande. Equalizar os salários, decidir tudo coletivamente, substituir a moeda por bônus, tudo isso nunca bastou para fazer desaparecer a relação salarial. O que o dinheiro conecta não pode ser livre, e mais cedo ou mais tarde o dinheiro se torna o senhor.
Substituir a concorrência pela associação numa base local é uma receita garantida para a ruína. Pois se a coletividade abole em seu interior a propriedade privada, ela própria se constitui em uma unidade distinta, em elemento particular coexistindo ao lado de outros na economia global, e, portanto em uma coletividade privada, obrigada a comprar e vender, a comerciar com o exterior, se tornando por seu turno uma empresa condenada a participar, goste ou não, na concorrência regional, nacional, mundial - se não quiser desaparecer.
Não podemos senão nos deleitar pelo fato de uma parte da Espanha ter implodido: isso que a opinião oficial chama de “anarquia” é uma condição necessária para a revolução, como Marx escreveu em sua época. Mas esses movimentos extraiam seu impacto subversivo de uma força centrífuga que alimentava também o localismo. Os laços comunitários reanimados prendiam cada um a sua aldeia, seu barrio, como se a questão fosse recuperar um mundo perdido, uma humanidade degradada, opor o bairro operário à metrópole, a comuna autogerida ao vasto domínio latifundiário, a terra do povo à cidade comercial, em outras palavras, o pobre ao rico, o pequeno ao grande ou o local ao internacional, esquecendo que a cooperativa é muitas vezes a estrada mais longa ao capitalismo.
Não há revolução sem destruição do Estado, essa é a “lição” espanhola. Por isso, a revolução não é uma revolta política, mas um movimento em que a destruição do Estado e a comunização se impulsionam mutuamente. Não queremos “o poder”, mas o poder de mudar a vida como um todo. Como se trata de um processo histórico que dura gerações, faz sentido imaginar todo esse tempo continuando a receber salários e pagar por alimentos e moradia? Se a revolução tivesse que ser primeiro política e depois social, ela teria que criar um aparato cuja única função é lutar contra os apoiadores do velho mundo, isto é, uma função negativa, de repressão, sistema de controle que sem qualquer conteúdo que não seu “programa”, sua vontade de realizar o comunismo no dia em que as condições enfim permitirem. É assim que a revolução se ideologiza e legitima o nascimento de um estrato de especialistas encarregados de gerir a maturação e a espera de um futuro cada vez mais radiante. A essência da política é não poder nem querer mudar nada: ela reúne o que é separado sem ir além. O poder está ali, ele gere, administra, supervisiona, garante, reprime: ele é.
A dominação política (na qual toda uma escola de pensamento vê o problema número um) decorre da incapacidade dos seres humanos de tomar em suas mãos sua vida, a sua atividade, de organizá-la. Essa dominação persiste apenas pela despossessão radical que caracteriza o proletário. Quando todos participarem na produção de sua existência, as capacidades de pressão e opressão que o Estado hoje dispõe se tornarão inoperantes. É porque a sociedade salarial nos priva dos meios de vida, dos meios de produzir e de se comunicar, pervadindo até o espaço outrora privado, nos fazendo abandonar até a expressão autônoma de nossa vida emocional, que o Estado é todo poderoso. A melhor garantia contra a reaparição de uma nova estrutura de poder acima de nós é a mais profunda apropriação das condições de existência, em todos os níveis. Por exemplo, se parece impossível que todos possam produzir sua energia em seu porão, a dominação do Leviatã vem também de que nossa energia (termo significativo, que em inglês se diz power) nos faça dependentes de complexos industriais que, nuclerares ou não, permanecem necessariamente exteriores à nós e escapam de todo controle.
Conceber a estrutura do Estado como luta armada contra a polícia e as forças militares é tomar a parte pelo todo. O comunismo é antes de tudo atividade. Um modo de vida em que homens e mulheres que produzem sua existência social paralisam ou reabsorvem a emergência de poderes separados.
A alternativa posta por Bordiga (“Tomar a fábrica ou tomar o poder?”, Il Soviet, 20 de fevereiro de 1920) hoje pode ser superada. Não dizemos: pouco importa que um diretor ou um conselho administrem a produção desde que se produza sem passar pelo valor. Dizemos: enquanto a produção para o valor continua, enquanto produzir permanece separado do resto da vida, enquanto a humanidade não produz coletivamente seus meios e formas de existência, enquanto subsiste uma “economia”, o conselho, por mais esclarecido que seja, é condenado a perder seu poder em favor de um diretor. É nessa questão que diferimos tanto dos “conselhistas” quanto dos “bordiguistas”, e arrisca de sermos qualificados de bordiguistas pelos primeiros e de conselhistas pelos segundos.
BALANÇO
A derrota na Espanha de 1936-1937 é simétrica à derrota russa de 1917-1921. Os trabalhadores russos souberam arrancar o poder, não iniciar uma transformação comunista. O atraso, a ruína econômica e o isolamento internacional não explicam toda a involução. A perspectiva traçada por Marx, e talvez aplicável de uma outra maneira após 1917, sobre o renascimento sob novas formas das estruturas agrárias comunitárias, não era então sequer cogitada. Sem falar do elogio do taylorismo por Lênin, e da justificação do trabalho militarizado por Trotsky, pela quase totalidade dos bolcheviques e pela imensa maioria da Terceira Internacional, inclusive a esquerda comunista, o socialismo significava a socialização capitalista mais os sovietes, e a agricultura do futuro se parecia a grandes domínios geridos democraticamente. (A diferença - que é grande - entre a esquerda germano-holandesa e a Comintern sobre esse assunto é que a esquerda levava à sério os sovietes enquanto os russos - sua prática o prova - não viam neles senão fórmulas táticas.)
Os bolchevismo oferece a melhor ilustração do que acontece a um poder que é apenas poder, e deve “detê-lo” sem mudar grande coisa das condições reais.
O que distingue a revolução da reforma não é a violência, mas que a insurreição comuniza o que subverte. A guerra civil russa foi ganha em 1919, mas selou o destino da revolução, pois a vitória sobre os Brancos, conseguida sem comunização, desembocou em um novo poder estatal. No livro Fascisme brun, fascisme rouge, Otto Rühle aponta que a revolução francesa dera nascimento a uma organização e estratégia militares adequadas a seu conteúdo social, unificando a burguesia e o povo. Inversamente, o élan insurrecional dos proletários russos se reduzia cada vez mais à defesa de um território e do poder político ali estabelecido. A visão bolchevique do revolucionário como bom administrador e dos proletários como bons administrados (“trabalho, ordem e disciplina”, anunciava Trotsky desde 1918) muito contribuiu para isso. O exército vermelho derrotado na Polônia em 1920 já tinha perdido o essencial de sua dimensão revolucionária.
Muito logicamente e de início com toda boa fé, o Estado dos sovietes se perpetuou a todo custo, inicialmente com a perspectiva da revolução mundial, e depois para si mesmo, e logo não encontrou outra solução que não a coerção, a prioridade absoluta de preservar a unidade de uma sociedade que se despedaçava. Daí, por um lado, as concessões à pequena propriedade camponesa, seguida por requisições, as duas coisas tornando ainda mais distantes uma produção e uma vida comunais. Daí, por outro lado, a repressão anti-operária, e contra a oposição no seio do partido.
Em janeiro de 1921, o círculo se fechou. A onda revolucionária nascida em 1917 de motins e reivindicações elementares acaba de morrer como começou - exceto que dessa vez os proletários estavam sendo reprimidos por um Estado “proletário”. Um poder que chega ao ponto de massacrar os amotinados de Kronstadt em nome de um socialismo que não se realizou, e além disso se justifica com calúnias, mostra apenas que perdeu todo caráter comunista. Lênin morre em 1924, mas o revolucionário Lênin já tinha morrido chefe de Estado desde 1921, senão antes. Nada restou aos dirigentes bolcheviques exceto se tornarem gestores do capitalismo.
Hipertrofia da política obstinada em eliminar os obstáculos que ela era impotente para subverter, a Revolução de Outubro também se afundou numa guerra civil autodevoradora. Seu drama é o de um poder que, incapaz de transformar a sociedade, degenera em órgão contrarrevolucionário. Na tragédia espanhola, os proletários, por terem abandonado seu próprio terreno, acabaram prisioneiros de um conflito no qual a burguesia e seu Estado estão presentes de um lado a outro das linhas de frente. Em 1936-1937, o proletariado da Espanha não estava mais lutando apenas contra Franco, mas também contra os países fascistas, contra as democracias e a farsa da “não-intervenção”, contra seu próprio Estado, contra a URSS que não fornecia armamentos a não ser com o objetivo de desarmar os revolucionários, contra...
As esquerdas comunistas “italiana” e “germano-holandesa”, e inclusive Paul Mattick nos EUA, estavam entre os poucos a entender o período pós-1933 como profundamente anti-revolucionário, enquanto inúmeros grupos (os trotskistas por exemplo) prediziam potencialidades subversivas na França, Espanha, América, etc.
1936-1937 fechou o momento histórico aberto por 1917. Depois disso, o capital não aceita mais qualquer comunidade que não a dele, tornando impossível, exceto em período de ruptura social, a existência de grupos de proletários radicais, por pouco numerosos e ativos que sejam. A morte do POUM foi o canto fúnebre do movimento operário.
Em um período revolucionário futuro, os mais sofisticados e mais perigosos defensores do capitalismo não serão aqueles que gritam slogans pró-capitalistas nem pró-estatistas, mas aqueles que terão entendido o ponto de ruptura possível. Longe de exaltar a publicidade ou a obediência, eles proporão tudo mudar... mas, para atingir esse fim, convocam a edificar antes um verdadeiro poder democrático. Se tiverem sucesso em dominar a situação, a instauração dessa nova forma política engolirá as energias, usará as aspirações radicais e, com o meio se tornando fim, outra vez farão da revolução uma ideologia. Contra eles, e evidentemente contra a reação abertamente capitalista, o único caminho para o êxito será a multiplicação e generalização coordenada das iniciativas comunistas concretas, que serão naturalmente denunciadas como antidemocráticas ou mesmo... “fascistas”. A luta por criar os lugares e momentos de deliberação e de decisão, única garantia de autonomia do movimento, é inseparável das medidas práticas que buscam transformar a vida.
"(...) Em todas as revoluções anteriores, permanecia inalterado o modo de atividade e procedia-se apenas a uma nova distribuição dessa atividade, a uma nova repartição do trabalho entre outras pessoas; a revolução comunista é, pelo contrário, dirigida contra o modo de atividade anterior - suprime o trabalho e acaba com a dominação de todas as classes pela supressão das próprias classes - pois é realizada pela classe que, no âmbito da atual sociedade, já não é considerada como uma classe dentro dessa sociedade e constitui a expressão da dissolução de todas as classes, de todas as nacionalidades." (Karl Marx e F. Engels - A Ideologia Alemã, 1845-1846)
- 1[Nota do autor: Este texto é uma versão inteiramente reformulada, revista e ampliada do prefácio de Gilles Dauvé (publicado então sob o pseudônimo Jean Barrot) para a coletânea Bilan / Contre-révolution en Espagne 1936-39, 10/18, UGE, 1979, prefácio que ficou conhecido com o título Fascismo & Antifascismo.]
- 2Marx & Engels, prefácio da edição russa do Manifesto Comunista, 1882.
- 3 D.Guérin, Fascisme et grand capital, La Découverte, et Front Populaire, Révolution manquée, Actes Sud.
- 4 T. Thomas, Les racines du fascisme, Albatroz, 1996. Crève la peste !, 1997, et Démocratie et fascisme, suplemento do n°7 de Mouvement Communiste, 1998. Para uma visão histórica sintética, P.Milza, Les Fascismes, Imprimerie Nationale.
- 5 Angelo Tasca, Naissance du fascisme, Gallimard. Communisme et fascisme, Programme Communiste. Ph.Bourrinet, La Gauche Communiste d'Italie, Courant Communiste International. M.Burnier, FIAT: conseils ouvriers et syndicats, Ed.Ouvrières.
- 6 Citado em Le Prolétaire, n°206.
- 7 Sobre a “revolução conservadora", muitos elementos em "Pensée, révolution, réaction et catastrophes", prefácio em 4 partes de Textes du mouvement ouvrier révolutionnaire, Invariance, maio, junho, setembro et outubro de 1996.
- 8 D.Authier, J.Barrot, La Gauche Communiste en Allemagne (1914-21), Payot. Sobre o anti-semitismo no SPD, M.Berlau, The German Social-Democratic Party (1914-21), New York, 1949: uma passagem é reproduzida em (Dis)Continuité, n°7, 1999. Veja também Serge Bricianer, Anton Pannekoek and the Workers’ Councils (Telos 1978) e Phillip Bourrinet, The German/Dutch Left (NZW 2003).
- 9 Numerosos artigos de Bilan apareceram na Revue Internationale do CCI e em Invariance, que também publicou uma coletânea de textos de Ottorino Perrone, um dos animadores de Bilan. Sobre a Espanha: Brenan, Le Labyrinthe espagnol, Champ Libre. V.Richards, Enseignements de la guerre d'Espagne, Acratie.
Broué, Staline et la Révolution. Le cas espagnol, Fayard, et Histoire de l'I.C., Fayard. (Para Broué, o defeito do antifascismo foi ter sido pervertido pelo estalinismo.) Ver também Chazé, Chroniques de la révolution espagnole, Spartacus (artigos da União Comunista, 1933-39, grupo em desacordo tanto com o trotskismo como com Bilan). Todas as nossas citações da “esquerda holandesa” foram extraídas do estudo de sont Philippe Bourrinet, publicado pela CCI.
- 10 Victor Alba, Histoire du POUM, Champ Libre. Ou, em inglês, Victor Alba, Spanish Marxism versus Soviet Communism: a History of the POUM (Transaction Press, 1988).
- 11 George Orwell, Homage to Catalonia, publicado em abril de 1938.
- 12 O título deste capítulo foi tomado de empréstimo do título do livro de H.Paechter, Espagne 1936-37. La guerre dévore la révolution, Spartacus, 1986 (1ère éd.: 1938).
- 13 Boletín de Información (em inglês), CNT-ait-FAI, Via Layetana, 32 y 34, Barcelona, November 11, 1936.
- 14 Oeuvres politiques, Costes, t.VIII. Uma seleção de textos de Marx sobre a Espanha está disponível em Oeuvres, Gallimard, Pléiade, t.IV. Em inglês: Marx, Revolutionary Spain, 1854 (MECW 13), p. 422.
- 15 Helmut Wagner, L'Anarchisme et la révolution espagnole, A.D.E.L., 1997 (1ère éd.: 1937).
- 16 Citado por Marie Laffranque, Marx et l’Espagne, Cahiers de l'ISEA, série S, n°15.
- 17 Orwell. M.Low, J.Brea, Carnets de la guerre d'Espagne, Verticales, 1997. Em inglês: Red Spanish Notebook, (City Lights, 1979). M.Etchebéhère, Ma Guerre d'Espagne à moi, Actes-Sud.
- 18 Sobre as coletivizações, F.Mintz, L'Autogestion dans l'Espagne révolutionnaire, Bélibaste.
- 19 Gerald Brenan, Le Labyrinthe espagnol, Champ Libre. V. Em inglês: The Spanish Labyrinth (Cambridge, 1990). Veja também o capítulo sobre o anarquismo andaluz em Y.Delhoysie, G.Lapierre, L'Incendie millénariste, Os Cangaceiros, 1987.
- 20 Marx, entre outras obras, Pléiade, t.II, pp.195 sq.
- 21 Franz Borkenau, The Spanish Cockpit (Faber & Faber, 1937).
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