O «renegado» Kautsky e seu discípulo Lênin - Jean Barrot

Karl Kautsky
Karl Kautsky

Este artigo descreve como as teorias de Lênin e, portanto, o leninismo e o trotskismo, são prolongamentos da teoria de Kautsky sobre a questão da relação entre a classe operária e a teoria revolucionária. É mostrado que a resposta que Kautsky dá à questão constitui o fundamento teórico da prática e da organização de todas as variedades de leninismo.

Submitted by Joaos on November 15, 2015

(Nota de publicação:
Este artigo foi originalmente publicado em francês em abril de 1977 por edições Spartacus (serie B No.78) como posfácio ao artigo de Karl Kautsky "Les trois fontes du Marxisme" (As três fontes do marxismo). Foi traduzido e publicado separadamente pelo Grupo Autonomia no website Biblioteca Virtual Revolucionária em dezembro de 2007 a partir da versão original em francês encontrada no website A.D.E.L, que pode ser acessada em http://www.oocities.org/adel0/daukaut.html
)

As três fontes do marxismo: a obra histórica de Marx apresenta um interesse histórico evidente. Kautsky era inegavelmente o mestre do pensamento da IIª Internacional e de seu partido mais potente: o partido social-democrata alemão. Guardião da «ortodoxia», Kautsky era quase universalmente considerado como o melhor conhecedor da obra de Marx e Engels, e como seu intérprete privilegiado. As posições de Kautsky são, portanto, testemunho de toda uma época do movimento operário, e merecem ser conhecidas, ainda que seja só por isto. Esta conferência trata precisamente de uma questão central para o movimento proletário: a relação entre a classe operária e a teoria revolucionária. A resposta que Kautsky dá à questão constitui o fundamento teórico da prática e da organização de todos os partidos que constituíam a IIª Internacional, e, portanto, do partido social-democrata russo e de sua fração bolchevique, membro «ortodoxo» da IIª Internacional até 1914, ou seja, até seu desmoronamento frente à primeira guerra mundial.

Mas as teses desenvolvidas por Kautsky nessa brochura não «desmoronaram» ao mesmo tempo que a IIª Internacional. Muito pelo contrário, sobreviveram e constituíram igualmente o fundamento da IIIª Internacional, por meio do «leninismo» e de seus avatares stalinistas e trotskistas.

O leninismo, subproduto russo do kautskismo! Eis o que surpreenderá àqueles que não conhecem de Kautsky mais do que os anátemas lançados contra ele pelo bolchevismo – em particular, a brochura de Lênin: A bancarrota da IIª Internacional e o renegado Kautsky – e que só conhecem de Lênin o que é bom conhecer dele nas diferentes igrejas, capelas ou sacristias que freqüentam.

Não obstante, o próprio título da brochura de Lênin define exatamente sua relação com Kautsky. Se Lênin chama Kautsky de renegado, é certamente porque o considerava antes um adepto da verdadeira fé, de que ele se considera agora o único defensor qualificado. Longe de criticar o «kautskismo», que se considera incapaz de identificar, Lênin se contenta de fato com acusar seu antigo mestre de trair sua própria doutrina. Sob qualquer ponto de vista, a ruptura de Lênin foi tardia e superficial. Tardia porque Lênin manteve as maiores ilusões acerca da social-democracia alemã, e só percebeu depois que a traição havia sido consumada. Superficial porque Lênin se limitou a romper sobre os problemas do imperialismo e da guerra, sem remontar às causas profundas da traição social-democrata de agosto de 1914, ligada à natureza mesma desses partidos e de suas relações, tanto com a sociedade capitalista como com o proletariado. Estas relações devem ser levadas, por sua vez, ao movimento do capital e da classe operária, e compreendidas como fase do desenvolvimento do proletariado, não como uma coisa suscetível de ser modificada pela vontade de uma minoria, nem sequer de uma direção revolucionária, por muito consciente que seja.

Daí deriva a importância atual das teses que Kautsky desenvolve nessa brochura de modo particularmente coerente, e que constitui o próprio tecido de seu pensamento ao longo de sua vida, e que Lênin recolhe e desenvolve desde 1900, em Os objetivos imediatos de nosso movimento, e, em 1902, no Que Fazer? – no qual, aliás, cita longa e elogiosamente Kautsky. Em 1913, Lênin recuperará novamente estas concepções em As três fontes e as três partes constituintes do Marxismo, no qual desenvolve os mesmos temas repetindo às vezes, palavra por palavra, o texto de Kautsky.

Estas teses, baseadas numa análise histórica superficial e sumária das relações de Marx e Engels, tanto com o movimento intelectual de sua época como com o movimento operário, podem se resumir em poucas palavras, e algumas citações bastarão para esclarecer sua sustância:

«Um movimento operário espontâneo e desprovido de toda teoria que emerge, nas classes trabalhadoras contra o capitalismo crescente, é incapaz de realizar (...) o trabalho revolucionário.»

Portanto, é necessário realizar o que Kautsky chama de A união do movimento operário e do socialismo.

Ora: «a consciência socialista hoje (?!) só pode surgir com base num profundo conhecimento científico... O portador da ciência não é o proletariado, mas os intelectuais burgueses... assim, pois, a consciência socialista é um elemento importado de fora na luta de classe do proletariado e não algo que surge espontaneamente.» Estas palavras de Kautsky são , segundo Lênin, «profundamente justas».

É óbvio que essa união tão desejada do movimento operário e do socialismo não podia se realizar da mesma maneira nas condições alemãs e nas condições russas. Mas é importante ver que as divergências profundas do bolchevismo no terreno organizativo não resultam de concepções diferentes, mas da aplicação dos mesmos princípios em situações políticas, econômicas e sociais diferentes.

De fato, longe de alcançar uma união cada vez maior do movimento operário e do socialismo, a social-democracia conseguirá uma união cada vez maior com o capital e com a burguesia. Quanto ao bolchevismo, depois de ter estado na revolução russa como um peixe na água («os revolucionários estão na revolução como a água na água») e, dado o fracasso da revolução, ocorrerá uma fusão quase completa com o capital estatal administrado por uma burocracia totalitária.

Contudo, o “leninismo” continua atormentando a consciência de muitos revolucionários mais ou menos benevolentes, na busca de uma receita suscetível de funcionar. Persuadidos de serem «vanguarda» – porque têm a «consciência», mas o que possuem nada mais é do que uma teoria falsa – militam para unir esses dois monstros metafísicos que são «um movimento operário espontâneo, despojado de toda teoria» e uma consciência socialista desencarnada.

Esta atitude é simplesmente voluntarista. Ora, se como disse Lênin, «a ironia e a paciência são as principais qualidades do revolucionário», «a impaciência é a principal fonte do oportunismo» (Trotsky). O intelectual, o teórico revolucionário não tem de se preocupar sobre como se ligar às massas, pois, se sua teoria é revolucionária, já está ligado às massas. Não tem que “escolher o campo do proletariado” (não é Sartre quem utiliza este vocábulo, é Lênin) porque, falando apropriadamente, ele não tem escolha. A crítica «teórica e prática» de que é portador está determinada pela relação que mantém com a sociedade. Não pode se libertar dessa paixão senão submetendo-se a ela (Marx). Se “tem escolha” já não é revolucionário, e sua crítica está cheirando a podre. O problema da penetração das idéias revolucionárias que compartilha no ambiente operário é, por isso mesmo, inteiramente transformado: quando as condições históricas, a relação de forças entre as classes em luta, principalmente determinada pelo movimento autonomizado do capital, proíbem toda irrupção revolucionária do proletariado na cena da historia, o intelectual faz como o operário: o que pode. Estuda, escreve, divulga seus trabalhos o melhor possível, geralmente muito mal. Quando estudava no Museu Britânico, Marx, produto do movimento histórico do proletariado, estava ligado, se não aos trabalhadores, pelo menos ao movimento histórico do proletariado. Não estava mais isolado dos trabalhadores do que qualquer trabalhador está dos outros, na medida em que as condições do momento limitam suas relações àquelas que o capitalismo permite.

Em contrapartida, quando o proletariado se constitui em classe e declara, duma maneira ou outra, guerra ao capital (e não tem nenhuma necessidade de que lhe forneçam O SABER para fazê-lo, pois ele mesmo, nas relações de produção capitalista, nada mais sendo do que capital variável, basta-lhe querer mudar mesmo que seja só um pouco sua condição, para estar imediatamente em pleno coração do problema que o intelectual terá dificuldade para entender), o revolucionário não está nem mais nem menos ligado ao proletariado do que já estava. Então, a crítica teórica se funde com a crítica prática, não porque tenha sido fornecida desde o exterior, mas porque ambas são uma só e a mesma coisa.

Se, no período precedente, o intelectual teve a fraqueza de crer que o proletariado permanecia passivo porque lhe faltava a «consciência» e se chegou a crer-se «de vanguarda» a ponto de querer dirigir o proletariado, agora lhe estão reservadas amargas decepções.

Esta é, no entanto, a concepção que constitui o essencial do leninismo, e é o que mostra a história ambígua do bolchevismo. Estas concepções só puderam se manter finalmente porque a revolução russa fracassou, ou seja, porque a relação de forças, na escala internacional, entre o capital e o proletariado não permitiu que este último fizesse sua crítica prática e teórica.

É o que vamos tentar demonstrar, analisando sumariamente o que se passou na Rússia e o papel real do bolchevismo.

Acreditando ver nos círculos revolucionários russos o fruto «da união do movimento operário e do socialismo», Lênin se equivocava gravemente. Os revolucionários organizados nos grupos social-democratas não levavam nenhuma «consciência» ao proletariado. Bem entendido, uma exposição ou um artigo teórico sobre o marxismo era muito útil aos operários: não servia para dar a consciência, o conhecimento da luta de classes, mas somente para precisar as coisas, para fazer refletir melhor. Lênin não compreendia esta realidade. Não só queria levar à classe operária o conhecimento da necessidade do socialismo em geral, mas queria também oferecer-lhe palavras de ordem imperativas que expressassem o que deve fazer num momento preciso. Aliás, era normal, posto que o partido de Lênin, depositário da consciência de classe, é “o único capaz de discernir o interesse geral da classe operária acima de todas as suas divisões em camadas diversas”, e “o único capaz de analisar permanentemente a situação e formular palavras de ordem adequadas”. Ora, a revolução de 1905 devia mostrar a incapacidade prática do partido bolchevique para dirigir a classe operária e revelar o atraso do partido de vanguarda.

Todos os historiadores, inclusive os favoráveis aos bolcheviques, reconhecem que em 1905 o partido bolchevique não havia compreendido nada dos sovietes. A aparição de formas de organização novas suscita a desconfiança dos bolcheviques: Lênin afirma que os sovietes não eram «nem um parlamento operário nem um órgão de autogoverno proletário». O importante é ver que os operários russos não sabiam que iam constituir os sovietes. Uma minoria muito pequena dentre eles conhecia a experiência da Comuna de Paris, e no entanto eles criaram um embrião de Estado operário, apesar de que ninguém os havia educado. A tese kautskista-leninista nega de fato todo poder de criação original à classe operária, a partir do momento em que não é guiada pelo partido, fusão do “movimento operário” e do “socialismo”. Ora, vê-se que, em 1905, para retomar a frase das Teses de Feuerbach, «que o educador necessita de ser educado»...

Porém, Lênin realizou um trabalho revolucionário (sua posição sobre a guerra etc.), ao contrário de Kautsky. Mas, na realidade, Lênin só foi revolucionário apesar de sua teoria da consciência de classe. Tomemos o caso de sua ação entre fevereiro e outubro de 1917. Lênin havia trabalhado mais de 15 anos (desde 1900) para criar uma organização de vanguarda que realizasse a união do «socialismo» e do «movimento operário», agrupando os «chefes políticos», os «representantes de vanguarda capazes de organizar o movimento e dirigi-lo». Pois bem, em 1917, como em 1905, esta direção política, representada pelo comitê central do partido bolchevique, se mostra incompetente para as tarefas do momento, atrasada em relação com a atividade revolucionária do proletariado. Todos os historiadores, incluídos os historiadores stalinistas e trotskistas, registram que Lênin teve uma longa e difícil luta contra a direção de sua própria organização para fazer triunfar suas teses. E só pode triunfar se apoiando nos operários do partido, sobre a verdadeira vanguarda organizada nas fábricas, no interior ou em volta dos círculos social-democratas. Dir-se-á que tudo isto teria sido impossível sem a atividade desenvolvida durante anos pelos bolcheviques, tanto ao nível das lutas cotidianas dos operários como na defesa e propaganda de as idéias revolucionarias. Efetivamente, a grande maioria dos bolcheviques, e em primeiro lugar Lênin, contribuiu com sua propaganda e sua agitação incessantes para o levantamento de outubro de 1917. Enquanto militantes revolucionários, desempenharam um papel eficaz. Mas, enquanto «direção da classe», «vanguarda consciente», estavam atrasados com relação ao proletariado. A revolução russa se desenvolveu contra as idéias de Que Fazer?. E, na medida em que estas idéias foram aplicadas (criação de um órgão que dirige a classe operária, mas separado dela), revelaram-se um freio e um obstáculo à revolução. Em 1905, Lênin está atrasado com relação à história porque se aferra às teses de Que Fazer?. Em 1917, Lênin participa no movimento real das massas russas e, ao fazer isso, rechaça – na prática – a concepção desenvolvida emQue Fazer?.

Se aplicarmos a Kautsky e a Lênin o tratamento inverso ao que eles fizeram a Marx, se ligarmos suas concepções à luta de classes em vez de separá-las dela, o kautskismo-leninismo aparece como característica de todo um período da historia do movimento operário dominado em primeiro lugar pela IIª Internacional. Depois de ter se desenvolvido e organizado, mal ou bem, o proletariado se encontra, desde o final do século XIX, numa situação contraditória. Possui diversas organizações cujo fim é fazer a revolução e ao mesmo tempo é incapaz de fazê-la, pois as condições não estão ainda maduras. O kautskismo-leninismo é a expressão e a solução desta contradição. Ao postular que o proletariado deve passar pelo desvio do conhecimento científico para ser revolucionário, consagra e justifica a existência de organizações que enquadram, dirigem e controlam o proletariado.

Como temos assinalado, o caso de Lênin é mais complexo que o de Kautsky, na medida em que Lênin foi, durante uma parte de sua vida, revolucionário – apesar do kautskismo-leninismo. Ademais, a situação da Rússia era totalmente diferente da situação da Alemanha, que possuía quase um regime de democracia burguesa e onde existia um movimento operário fortemente desenvolvido e integrado ao sistema. Na Rússia, ao contrario, era preciso construir tudo, e não se tratava de participar em atividades parlamentares burguesas e sindicais reformistas que não existiam. Nestas condições, Lênin podia adotar uma posição revolucionária apesar de suas idéias kautskistas. Não obstante, há que assinalar que ele considerou, até o começo da guerra mundial, a social-democracia alemã como um modelo.

Em suas histórias revistas e corrigidas do leninismo, os stalinistas e os trotskistas nos mostram um Lênin lúcido que compreende bem e denuncia, antes de 1914, a «traição» da social-democracia e da Internacional. Isto é pura lenda e seria necessário estudar bem a verdadeira história da IIª Internacional para mostrar que não só Lênin não denunciava, mas que não havia compreendido nada, antes da guerra, sobre o fenômeno da degeneração social-democrata. Antes de 1914, Lênin inclusive elogia o partido social-democrata alemão por ter sabido reunir o «movimento operário » e o «socialismo» (ver Que Fazer?).

Citemos somente estas linhas extraídas do artigo necrológico «Augusto Bebel» (que contém, aliás, vários erros de detalhe e de fundo sobre a vida deste «dirigente», este «modelo de chefe operário» e sobre a história da IIª Internacional).

«As bases da tática parlamentar da social-democracia alemã (e internacional), que não cede um milímetro aos inimigos, que não deixa escapar a menor possibilidade de obter uma vantagem, por menor que seja, para os operários, que se mostra ao mesmo tempo intransigente no plano dos princípios e se orienta sempre para a realização do objetivo final, as bases desta tática foram aperfeiçoadas por Bebel, ...»

Lênin dirigia essas lisonjas à “tática parlamentar da social-democracia alemã (e internacional)”, “intransigente no plano dos princípios” (!) em agosto de 1913! Quando, um ano mais tarde, acreditou que o número do Vorwärts (órgão do partido social-democrata alemão), anunciando o voto dos créditos de guerra pelos deputados social-democratas, era uma falsificação fabricada pelo estado-maior alemão, somente revelava as ilusões que havia mantido durante longo tempo – de fato desde 1900-1902, desde Que Fazer? – sobre a Internacional em geral e a social-democracia alemã em particular. (Não examinamos aqui a atitude de outros revolucionários diante dessas questões – Rosa Luxemburgo, por exemplo. Este problema mereceria de fato um estudo detalhado).

Vimos como Lênin tinha abandonado na prática as teses de Que Fazer?, em 1917. Mas a imaturidade da luta de classes a escala mundial e, em particular, a ausência de revolução na Europa, acarreta a derrota da revolução russa. Os bolcheviques se encontram no poder com a tarefa de «administrar a Rússia» (Lênin), de realizar as tarefas da revolução burguesa que não foram concluídas. Ou seja: de fato, assegurar o desenvolvimento da economia russa, não podendo ser este desenvolvimento mais do que capitalista. Enquadrar a classe operária – e as oposições dentro do partido – se torna um objetivo essencial. Lênin – que não havia rechaçado Que Fazer? explicitamente em 1917 – retoma em seguida as concepções «leninistas» que são as únicas a permitir o enquadramento «necessário» dos operários. Os centralistas-democratas, a Oposição Operária e o Grupo Operário são esmagados por terem negado «o papel dirigente do partido». A teoria leninista do partido é igualmente imposta à Internacional.

Depois da morte de Lênin, Zinoviev, Stalin e tantos outros deviam desenvolvê-la insistindo cada vez mais na disciplina de ferro, «a unidade de pensamento e a unidade de ação»: agora que o princípio sobre o qual repousava a Internacional stalinizada era o mesmo que cimentava os partidos socialistas reformistas (o partido, separado dos trabalhadores, levando-lhes a consciência de si mesmos), qualquer um que rechaçasse a teoria leninista-stalinista caía no «pântano oportunista, social-democrata, menchevique, ...». De sua parte, os trotskistas se agarravam ao pensamento de Lênin e recitavam Que Fazer?. A crise da humanidade nada mais é do que «uma crise de direção», dizia Trotski: era preciso criar, portanto, a qualquer preço, uma direção. Supremo idealismo, a história do mundo era explicada pela crise de sua consciência.

Enfim, o stalinismo só triunfaria nos países em que o desenvolvimento do capitalismo não podia ser assegurado pela burguesia, sem que estivessem reunidas as condições para que o movimento operário pudesse destruí-lo. Na Europa do leste, na China, em Cuba, formou-se um grupo dirigente novo, composto de quadros do movimento operário burocratizado, de antigos especialistas ou técnicos burgueses, às vezes de quadros do exército ou antigos estudantes incorporados à nova ordem social como na China. Em última análise, tal processo não era possível senão em conseqüência da fraqueza do movimento operário. Na China, por exemplo, a camada social motriz da revolução foi o campesinato, incapaz de dirigir a si mesmo, só podia ser dirigido pelo «partido». Antes da tomada do poder, esse grupo organizado no partido dirige as massas e as «regiões liberadas» se existem. Depois, toma em suas mãos o conjunto da vida social do país. Em toda a parte, as teses de Lênin foram um potente fator burocrático. Para Lênin, a função de direção do movimento operário era uma função específica assegurada por «chefes» organizados separadamente do movimento e cujo único papel é esse. Na medida em que preconizava um corpo separado de revolucionários profissionais guiando as massas, o leninismo serviu de justificação ideológica para a formação de direções separadas dos trabalhadores. Nesta fase, o leninismo, desviado de seu contexto original, já não é mais do que uma técnica de enquadramento das massas e uma ideologia que justifica a burocracia e sustenta o capitalismo: sua recuperação era uma necessidade histórica para o desenvolvimento destas novas formações sociais que reapresentam por sua vez uma necessidade histórica para o desenvolvimento do capital.  À medida em que o capitalismo se estende e domina o planeta inteiro, as condições de possibilidade da revolução amadurecem. A ideologia leninista começa ser ultrapassada, em todos os sentidos da palavra.

É impossível examinar o problema do partido sem o ligar às condições históricas nas quais este debate nasceu: em todos os casos, mesmo sob formas diferentes, o desenvolvimento da ideologia leninista foi devido à impossibilidade da revolução proletária. Se a história deu razão ao kautskismo-leninismo, se seus adversários jamais puderam organizar-se duravelmente e nem sequer apresentar uma crítica coerente dele, não foi por acaso: o êxito do kautskismo-leninismo é um produto de nossa época e os primeiros ataques sérios – práticos – contra ele marcam o fim de todo um período histórico. Para isso, era necessário que o modo de produção capitalista se desenvolvesse amplamente à escala do mundo inteiro. A revolução húngara de 1956 fez dobrar os sinos por todo um período de contra-revolução, mas também de maturação revolucionária. Ninguém sabe quando esse período será definitivamente superado, mas é certo que a crítica das teses de Kautsky e de Lênin, produtos dessa época, se fez desde então possível e necessária. Por esta razão, temos nos empenhado em reeditar As três fontes do marxismo: a obra histórica de Marx, para melhor fazer conhecer e compreender o que foi, o que ainda é, a ideologia dominante de todo um período. Longe de querer dissimular as idéias que condenamos e combatemos, queremos, ao contrário, difundi-las amplamente a fim de mostrar ao mesmo tempo sua necessidade e seu limite históricos.

As condições que permitiram o desenvolvimento e o sucesso de organizações de tipo social-democrata ou bolchevique estão hoje superadas. Quanto à ideologia leninista, além de sua utilização pelos burocratas no poder, longe de servir os grupos revolucionários que reivindicam a união do socialismo e do movimento operário, só pode servir desde agora para cimentar provisoriamente a união de intelectuais medíocres e de trabalhadores mediocremente revolucionários.

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