Gilles Dauvé explica o capitalismo e sua antítese , o comunismo
O comunismo não é um programa que se coloca em prática ou que se faz outros colocarem em prática, mas um movimento social. Aqueles que desenvolvem ou defendem o comunismo teórico não têm qualquer vantagem sobre os outros, exceto uma clara compreensão e uma expressão mais rigorosa; assim como todos os outros que não estão preocupados com a teoria, eles sentem a necessidade prática do comunismo. Eles não têm nenhum privilégio; não trazem o conhecimento que colocará a revolução em ato. Mas, por outro lado, não têm medo de se tornar “líderes” explicando suas posições. A revolução comunista, como todas as revoluções, é o produto de necessidades e condições de vida reais. O problema é lançar luz sobre um movimento histórico existente.
O comunismo não é um ideal a ser realizado: ele já existe, não como uma sociedade, mas como um esforço, uma obra que se prepara. É o movimento que busca abolir as condições de vida determinadas pelo trabalho assalariado, e as abolirá pela revolução. A discussão do comunismo não é acadêmica. Não é um debate sobre o que será feito amanhã. É parte integrante de toda uma série de tarefas imediatas e distantes, das quais a discussão é somente um aspecto, uma tentativa de adquirir compreensão teórica. Inversamente, as tarefas serão realizadas mais fácil e eficazmente se pudermos responder a questão: aonde estamos indo?
Não contestamos os PC’s, os vários tipos de socialistas, a extrema-esquerda etc. cujos programas meramente modernizam e democratizam todos os aspectos existentes do mundo atual. A questão não é que esses programas não são comunistas, mas que são capitalistas.
As explicações neste texto não se originam do desejo de explicar. Elas não existiriam desta forma e algumas pessoas não teriam se juntado para elaborá-las e publicá-las, se as contradições e as lutas sociais práticas que despedaçam a sociedade contemporânea não mostrassem a nova sociedade se formando no seio da velha, forçando as pessoas a tomar consciência dela.
A) O trabalho assalariado como relação social
Se olharmos a sociedade moderna, é evidente que, para sobreviver, a grande maioria das pessoas é forçada a vender sua força de trabalho. Todas as capacidades físicas e intelectuais dos seres humanos, suas personalidades reais, que poderiam ser acionadas para produzir coisas úteis, só podem ser usadas se elas são vendidas ou trocadas por salários. A força de trabalho é uma mercadoria como as outras. A existência da troca e do trabalho assalariado parece normal, inevitável. Contudo, a introdução do trabalho assalariado exigiu violência e foi acompanhada por conflitos sociais. A separação dos trabalhadores dos meios de produção, que se tornou um fato da vida, aceito como tal, foi o resultado de uma longa evolução e se realizou pela força.
Na Inglaterra, na Holanda, na França, do século XVI em diante, a violência econômica e política expropriou artesãos e camponeses, reprimiu a indigência e a mendicância, impôs o trabalho assalariado ao pobre. No século XX, entre 1930 e 1950, a Rússia decretou um código de trabalho que incluía a pena de morte para organizar a passagem de milhões de camponeses ao trabalho assalariado industrial em poucas décadas. Aparentemente, fatos normais: que um indivíduo nada tem senão sua força de trabalho, que deve vendê-la à uma empresa para ser capaz de sobreviver, que tudo é mercadoria e as relações sociais giram em torno da troca, são o resultado de um longo e violento processo.
Através da instituição escolar, da vida política e ideológica, a sociedade contemporânea esconde a violência passada e presente sobre a qual repousa. Esconde tanto sua origem quanto o mecanismo que lhe permite funcionar. Tudo parece ser o resultado de um livre contrato em que o indivíduo, como vendedor de força de trabalho, se vê na fábrica, na loja ou no escritório. A existência da mercadoria parece ser um fenômeno óbvio e natural. Mas causa maiores ou menores desastres periódicos: mercadorias são destruídas para manter os preços, capacidades instaladas não são utilizadas – no entanto, necessidades elementares não são satisfeitas. Os dois pilares da sociedade moderna, troca e trabalho assalariado, não são somente a fonte de desastres periódicos e constantes, mas também criam as condições que fazem possível outra sociedade. O mais importante é que forçam uma parcela da humanidade a se revoltar contra eles, e a realizar esta possibilidade: o comunismo.
Por definição, toda atividade humana é social. A vida humana somente existe em grupos, através de numerosas formas de associação. A reprodução das condições de vida é uma atividade coletiva desde o início: tanto a reprodução dos seres humanos quanto a reprodução de seus meios de existência. Na verdade, o que caracteriza a sociedade humana é o fato de que ela produz e reproduz as condições materiais de sua existência. Alguns animais usam ferramentas, mas somente o homem faz suas ferramentas. Entre o indivíduo ou grupo e a satisfação das necessidades surge a mediação da produção, da atividade, que continuamente modifica as maneiras de agir e transformar o ambiente. Outras formas de vida - as abelhas, por exemplo - fazem suas próprias condições materiais, mas, ao tanto quanto o homem pôde estudá-las, sua evolução parece estagnada. A atividade humana, pelo contrário, está continuamente mudando a apropriação e assimilação do ambiente humano. A relação entre os homens e a “natureza” é também uma relação entre os homens, e depende de suas relações de produção, assim como as idéias que eles produzem, a maneira como concebem o mundo, dependem de suas relações de produção.
A transformação da atividade acompanha a transformação do contexto social em que ela ocorre, isto é, as relações entre as pessoas. As relações de produção nas quais as pessoas entram são independentes de sua vontade: cada geração se confronta com condições técnicas e sociais deixadas pelas gerações passadas. Mas pode alterá-las, além dos limites permitidos pelo nível das forças produtivas materiais. O que as pessoas chamam de “história” não faz nada: a história é feita pelas pessoas, mas só na medida em que as possibilidades dadas permitem. Isso não significa que cada mudança importante nas forças produtivas é acompanhada automática e imediatamente por uma correspondente mudança nas relações de produção. Se isso fosse verdade, não haveria revoluções. A nova sociedade engendrada pela antiga somente aparecerá e triunfará através de uma revolução, destruindo toda a estrutura política e ideológica que até então permitia a sobrevivência de relações de produção obsoletas.
O trabalho assalariado foi outrora uma forma de desenvolvimento, não é mais. Há bastante tempo tem sido um obstáculo e mesmo uma ameaça para a existência da humanidade.
O que deve ser exposto, por trás dos objetos, das máquinas, as fábricas, dos proletários que nelas trabalham todo dia, das mercadorias que eles produzem, é a relação social que os regula, bem como sua necessária e possível superação.
B) A Comunidade e a destruição da comunidade
No começo, a humanidade vivia em grupos relativamente autônomos e dispersos, em famílias (no sentido mais amplo: a família agrupando todos aqueles do mesmo sangue), em tribos. A produção consistia essencialmente na caça, pesca e coleta. Os bens eram produzidos não para serem consumidos depois da troca, depois de postos num mercado. A produção era diretamente social, sem a mediação da troca. A comunidade distribuía o produto de acordo com regras simples, e todos recebiam diretamente o que ela lhes dava. Não havia produção individual, não existia separação entre os indivíduos, reunidos só depois da produção por um elo intermediário: a troca, isto é, a comparação entre os vários bens produzidos individualmente. As atividades eram impostas ao grupo pela necessidade e realizadas em comum; seus resultados eram repartidos em comum.
Muitas comunidades “primitivas” podiam acumular excedentes, mas simplesmente não se preocupavam. Como M. Sahlins apontou, a era da escassez muitas vezes significou abundância, com grande parte de tempo de ócio - embora aquele “tempo” tenha pouca relevância para o nosso. Viajantes e antropólogos observaram que a busca e armazenamento de comida tomavam uma pequena parte do dia. A “atividade” produtiva era parte de uma relação global do grupo com seu ambiente.
A maioria da humanidade evoluiu da caça-coleta para a agricultura, desenvolvendo excedentes, que as comunidades começaram a trocar. Esta circulação não podia ser realizada somente pela troca, isto é, levando em conta não no pensamento, mas na realidade, o que é comum aos vários bens que serão transferidos de um lugar a outro. Os produtos da atividade humana têm uma coisa em comum: eles são resultado de uma determinada quantidade de energia, tanto individual quanto social. Este é o caráter abstrato do trabalho, que não somente produz uma coisa útil, mas também consome energia, energia social. O valor de um produto, independente de seu uso, é a quantidade de trabalho abstrato que ele contém, ou seja, a quantidade de energia social necessária para produzi-lo. Uma vez que esta quantidade só pode ser mensurada em termos de tempo, o valor de um produto é o tempo socialmente necessário para produzi-lo, ou seja, o tempo social médio num momento dado de sua história.
Com o crescimento de suas atividades e necessidades, a comunidade produz não apenas bens, mas também mercadorias, bens que têm valor de uso e também valor de troca. Inicialmente, o comércio aparece entre comunidades, depois se introduz nas comunidades, fazendo surgir atividades especializadas, negócios, divisão social do trabalho. A natureza do trabalho muda. Com a relação de troca, o trabalho se torna trabalho duplo, produzindo valor de uso e valor de troca. O trabalho não é mais integrado na totalidade da atividade social, mas se torna um campo especializado, separado do restante da vida do indivíduo. O que o indivíduo faz para si e para o grupo é separado do que ele faz para trocar por bens de outras comunidades. A segunda parte de sua atividade significa sacrifício, constrangimento, perda de tempo. A sociedade se diversifica e se separa em vários e diferentes ofícios, e em trabalhadores e não-trabalhadores. Nesse estágio, a comunidade não existe mais.
A comunidade precisa da relação de troca para desenvolver e satisfazer suas crescentes necessidades. Mas a relação de troca destrói a comunidade. Ela faz as pessoas verem umas as outras e a si mesmas somente como fornecedores de bens. O uso do produto que fiz não mais me interessa; só me interessa o uso daquilo que conseguirei em troca. Mas, para o homem que me vende, este segundo uso não lhe importa, ele está apenas interessado no valor de uso do que eu produzi. O que é valor de uso para um é apenas valor de troca para o outro e vice-versa. 1 A comunidade desapareceu no dia em que seus membros se interessaram pelos outros somente na medida em que tinham um interesse material pelos outros. Não que o altruísmo deva ser a força dirigente do comunismo. Num caso, o movimento dos interesses leva os indivíduos a se juntar e agir em comum; no outro, individualiza-os e os força a lutar entre si. Com o nascimento da troca na comunidade, o trabalho não é mais a realização das necessidades pela coletividade, mas o meio de obter dos outros a satisfação das próprias necessidades.
Desenvolvendo-se a troca, a comunidade procura limitá-la. Ela tentou controlar e destruir os excedentes, estabelecendo regras estritas para controlar a circulação dos bens. Mas, enfim, a troca triunfou. Onde isso não aconteceu, a comunidade cessou de ser ativa e foi esmagada pela invasão da sociedade mercantil.
Enquanto os bens não são produzidos separadamente, enquanto não há divisão do trabalho, não se pode comparar os valores de dois bens, uma vez que são distribuídos em comum. O momento da troca, no qual os tempos de trabalho de dois produtos são mensurados e eles são então trocados, ainda não existe. O caráter abstrato do trabalho só aparece quando as relações sociais o exigem. Isso só pode acontecer quando, com o progresso técnico, torna-se necessário para o desenvolvimento das forças produtivas que os homens se especializem em ofícios e troquem seus produtos entre si e também com outros grupos, que se tornaram Estados. Com esses dois pré-requisitos do valor, o tempo de trabalho médio se torna um instrumento de medida. Na raiz deste fenômeno estão as relações práticas entre pessoas cujas necessidades reais se desenvolvem.
O valor não aparece porque é uma medida conveniente. Quando as relações sociais da comunidade primitiva são substituídas por relações mais amplas e diversificadas, o valor aparece como mediação indispensável das atividades humanas. Não surpreende que a média de tempo de trabalho socialmente necessário seja usada como medida, desde que nesse estágio o trabalho é o elemento essencial na produção de riqueza: é um elemento cujos diferentes produtos tem em comum - todos eles agregam uma certa quantidade de força de trabalho humano, sem considerar a maneira particular como essa força é usada. Correspondendo ao caráter abstrato do trabalho, o valor representa sua abstração, seu caráter geral e social, subtraído de todas as diferenças de natureza entre os objetos que o trabalho pode produzir.
C) Mercadorias
O progresso econômico e social aprimora a eficiência da organização humana e sua capacidade de associar os componentes do processo de trabalho - sobretudo a força de trabalho. Então, aparece a diferença (e a oposição) entre trabalhadores e não-trabalhadores, entre aqueles que organizam o trabalho e aqueles que trabalham. As primeiras cidades e os grandes projetos de irrigação surgiram desse incremento da eficiência produtiva. O comércio aparece como uma atividade especial: agora há homens que vivem não através da produção, mas pela mediação entre as atividades de unidades separadas de produção. Uma grande proporção de bens nada mais é do que mercadorias. Para serem usadas, para realizar o seu valor de uso, satisfazer uma necessidade, elas devem ser compradas, devem realizar seu valor de troca. Caso contrário, embora existam como objetos concretos e materiais, elas não existem do ponto de vista da sociedade. Não se tem o direito de usá-las. Este fato revela que a mercadoria não é apenas uma coisa, mas antes e sobretudo uma relação social regulada por uma lógica definida, a lógica da troca, e não a da satisfação das necessidades. O valor de uso é agora apenas o suporte do valor. A produção se torna uma esfera separada do consumo; o trabalho se torna uma esfera separada do não-trabalho. A propriedade é o quadro legal da separação entre as atividades, entre os homens, entre unidades de produção. O escravo é uma mercadoria para o seu proprietário, que compra um homem para o fazer trabalhar.
A existência de uma mediação (troca) no nível da organização da produção faz-se acompanhar pela existência de uma mediação no nível da organização das pessoas: o Estado é indispensável como força unificante dos elementos da sociedade, no interesse da classe dominante. A unificação é necessária pela destruição da coerência da comunidade primitiva. A sociedade é forçada a manter sua coesão criando uma instituição que se nutre dela.
A troca se torna visível e concreta com o nascimento do dinheiro. A abstração, o valor, se materializa no dinheiro, mercadoria que revela sua tendência a se tornar independente, a se destacar do que representa: os valores de uso, os bens reais. Comparado à simples troca: quantidade x do produto A por quantidade y de produto B, o dinheiro permite a universalização pela qual qualquer coisa pode ser adquirida, comprada, enquanto quantidade de tempo de trabalho abstrato. O dinheiro é o tempo de trabalho abstraído do trabalho e expresso numa forma durável, mensurável e transportável. O dinheiro é a manifestação visível, tangível, do elemento comum a todas as mercadorias. O dinheiro permite a seu proprietário comandar o trabalho de outros, a qualquer momento e em qualquer lugar do mundo. Com o dinheiro, é possível escapar dos limites de tempo e espaço. Uma tendência para uma economia universal agia em torno de alguns grandes centros da antigüidade e da idade média, mas ela não se materializou. O recuo dos impérios e sua destruição ilustram essa sucessão de fracassos. Somente o capitalismo cria, a partir do século XVI, mas principalmente nos séculos XIX e XX, a base necessária para uma economia universal duradoura.
D) Capital
O capital é uma relação de produção que estabelece um laço totalmente novo e eficiente entre o trabalho vivo e o trabalho passado (acumulado pelas gerações anteriores). Mas, assim como o da troca, o surgimento do capital não é resultado de uma decisão ou plano, mas a conseqüência de relações sociais reais que levam a um desenvolvimento qualitativamente novo em certos países da Europa Ocidental, depois da idade média.
Os comerciantes acumularam grandes somas de dinheiro e aperfeiçoaram sistemas de banco e crédito. Foi possível usar essas somas: as primeiras máquinas (têxteis) foram inventadas, e massas de pessoas pobres (antigos camponeses e artesãos) perderam seus meios de vida e foram forçados a aceitar a nova relação de produção: o trabalho assalariado. O pré-requisito era o trabalho acumulado, estocado na forma de máquinas (e depois fábricas). Esse trabalho passado seria posto em movimento pelo trabalho vivo daqueles que não tinham sido capazes de realizar semelhante acumulação de matérias primas e meios de produção. Até então, a troca não era nem o motivo nem o regulador da produção. O comércio por si mesmo, a produção mercantil simples (oposta à produção capitalista de mercadorias) não podia fornecer a estabilidade, a durabilidade requerida pela socialização e unificação do mundo. Isto foi realizado pela produção capitalista de mercadorias, e o meio pelo qual o capital realizou isso foi a produção, que ele tomou.
O escravo não vendia sua força de trabalho: o proprietário comprava o escravo e o obrigava a trabalhar. No capitalismo, o trabalho vivo é comprado pelos meios de produção que põe em movimento. O papel do capitalista não é negligenciável, mas totalmente secundário: “o capitalista é somente uma função do capital”, a de conduzir a produção social. O importante é o desenvolvimento do trabalho passado pelo trabalho vivo. Investir e acumular são os motores do capital (a prioridade dada à indústria pesada, nos países ditos socialistas apenas sinaliza o desenvolvimento do capitalismo). Mas o objetivo do capital não é acumular valores de uso. O capital só multiplica fábricas, estradas de ferro etc. para acumular valor. O capital é antes de tudo uma soma de valor, de trabalho abstrato cristalizado sob a forma de dinheiro, capital financeiro, ações, títulos etc., que procura incrementar. Uma soma de valor que deve dar mais valor no fim do ciclo. Para se valorizar, o valor compra força de trabalho.
A mercadoria força de trabalho é muito especial. Seu consumo fornece trabalho, portanto, novo valor; enquanto os meios de produção apenas transferem seu próprio valor. Assim, o uso da força de trabalho produz um valor suplementar. A origem da riqueza burguesa está na mais-valia, na diferença entre o valor criado pelo trabalhador assalariado e o valor necessário para a reprodução de sua força de trabalho. Os salários apenas cobrem as despesas dessa reprodução (os meios de subsistência do proletário e de sua família).
É fácil concluir, pois, que o fato essencial não é a apropriação de mais-valia pelo capitalista enquanto indivíduo. O comunismo não tem nada a ver com a idéia de que os trabalhadores devem recuperar totalmente a mais-valia para si mesmos, por uma simples e óbvia razão: alguns dos recursos devem ser usados para a renovação dos equipamentos, a nova produção etc. O problema não é que um punhado de pessoas toma desproporcionalmente uma grande parte da mais-valia. Se essas pessoas fossem eliminadas e o resto do sistema permanecesse o mesmo, uma parte da mais-valia seria dada aos trabalhadores e a restante seria investida no equipamento social, bem-estar etc.: de fato, este é o programa da esquerda, incluindo os PC’s oficiais. Realmente, a lógica do capitalismo resulta sempre num desenvolvimento da produção para uma valorização máxima. Enquanto a base da sociedade for um mecanismo combinando dois processos – um, de trabalho real; outro, de valorização -, o valor dominará a sociedade. A mudança feita pelo capital foi conquistar a produção e, assim, ter socializado o mundo, desde o século XIX, com plantas industriais, meios de transporte, estoque e rápida transmissão da informação. Mas, no ciclo capitalista, a satisfação das necessidades é somente um subproduto, e não a força dirigente do mecanismo. A valorização é o objetivo: a satisfação das necessidades é no máximo um meio. O que se produz deve ser rentável.
A empresa é o local e o centro da produção capitalista; cada indústria ou empresa agrícola opera como um ponto de reunião duma soma de valores visando a um incremento. A empresa deve produzir lucros. Aqui novamente a lei do lucro não tem nada a ver com a ação de alguns “grandes” capitalistas, e o comunismo não equivale a se livrar dos gordos fumantes de charuto que usam cartola num hipódromo. A questão não está nos lucros individuais dos capitalistas, mas na coação, na orientação imposta à produção e à sociedade pelo capitalismo, que dita como trabalhar e o que consumir. Toda demagogia sobre ricos e pobres confunde a questão. O comunismo não é tomar o dinheiro dos ricos, nem sua distribuição revolucionária aos pobres.
E) Concorrência
A concorrência acontece entre as empresas, lutando para conquistar o mercado. Mostramos como os vários aspectos da atividade humana se separaram. A relação de troca aumenta a divisão da sociedade em ramos, que por sua vez ajuda a desenvolver o sistema mercantil. Contudo - como ainda pode ser observado hoje, mesmo nos países avançados -, nos lugarejos, não há concorrência real entre atividades que são separadas mas fixamente divididas: entre o padeiro, o sapateiro etc. O capitalismo não é somente uma divisão da sociedade em vários ramos, mas sobretudo uma luta permanente entre os vários componentes da indústria. Cada porção de capital existe somente contra as outras. O que uma certa ideologia chama de egoísmo e luta de todos contra todos é o complemento indispensável de um mundo no qual cada um tem de lutar para vender. Assim, a violência econômica, e a conseqüente violência armada, são partes integrantes do sistema capitalista.
A concorrência teve efeitos positivos no passado: rompeu os limites dos regulamentos feudais e a coação das corporações, permitindo ao capital invadir o mundo. Agora, ela se tornou uma fonte de desperdícios, levando ao desenvolvimento da produção inútil e destrutiva, para mais rápida valorização, e/ou impedindo a produção útil, se a oferta e a procura estão em conflito.
A concorrência é a separação de sistemas produtivos em centros autônomos que são pólos rivais, cada um procurando aumentar sua respectiva soma de valor. Nenhuma “organização”, “plano” ou tipo de controle pode acabar com isso. O poder estatal e o “poder popular” são igualmente incapazes de resolver esse problema. A força motriz da concorrência não é a liberdade dos indivíduos, nem mesmo a dos capitalistas, mas a liberdade do capital, que só pode viver se devorando. A forma destrói o conteúdo para sobreviver como forma. O capital destrói seus componentes (trabalho vivo e trabalho passado) para sobreviver como soma de valor que se valoriza.
Cada um dos capitais concorrentes tem uma taxa de lucro. Mas os capitais mudam de ramo, procurando a taxa de lucro mais alta. Mudam-se para os ramos mais lucrativos e negligenciam os outros. Quando os ramos, até então mais lucrativos, ficam saturados de capital, sua lucratividade decresce. Então, o capital se muda para outro ramo (esta dinâmica é modificada, mas não abolida, pelos monopólios). Este processo resulta na estabilização (perequação) da taxa de lucro em torno de uma taxa média, numa dada sociedade e num determinado momento. Cada capital tende a render, não de acordo com a taxa de lucro produzida em sua própria empresa, mas de acordo com a taxa social média, na proporção da soma de valor investida nessa empresa. Assim, não é que cada capital explore apenas seus proletários, mas o capital total explora a totalidade do proletariado. No seu movimento, o capital age e se revela como um poder social, dominando toda sociedade, e dessa forma adquire coerência - apesar da concorrência que o opõe a si mesmo. Ele se unificou e se tornou uma força social. É uma totalidade relativamente homogênea em seus conflitos com o proletariado ou com outras unidades capitalistas (nacionais). Ele organiza as relações e necessidades de toda sociedade de acordo com os seus interesses. Esse mecanismo existe em todos os países: o capital constitui o Estado e a nação contra outros capitais nacionais, mas também (e principalmente) contra o proletariado. A oposição dos estados capitalistas faz da guerra o último meio de resolver os problemas da concorrência entre capitais nacionais.
Nada muda enquanto houver unidades de produção buscando incrementar suas respectivas somas de valor. O que acontece se o Estado (“democrático”, “operário”, “proletário” etc.) toma todas as empresas sob seu controle, enquanto as mantêm como empresas? Também as empresas estatais obedecem à lei do lucro e do valor, e nada muda. Ou, se não a obedecem, tudo vai mal. 2
Dentro da empresa, a organização é racional: o capital impõe seu despotismo sobre os proletários. Fora, no mercado, onde cada empresa encontra as outras, a ordem existe apenas como a supressão periódica e permanente da desordem, acompanhada por crises e destruição. Somente o comunismo pode destruir essa anarquia organizada, suprimindo a empresa como entidade separada.
F) Crise
Por um lado, o capital socializou o mundo. Toda produção tende a ser o resultado da atividade de toda a humanidade. Por outro, o mundo permanece dividido em empresas concorrentes, que tentam produzir o que é lucrativo e vender o máximo. Cada empresa procura valorizar seu capital, nas melhores condições possíveis. Cada uma tende a produzir mais do que o mercado absorve, pretende vender tudo, e espera que somente os seus concorrentes sofram de superprodução. 3
O resultado disso é o incremento de atividades ligadas à promoção de vendas. O número de trabalhadores improdutivos, manuais ou intelectuais, que fazem circular o valor, cresce em relação aos que produzem valor. A circulação não é o movimento físico dos bens. A indústria de transportes agrega valor real, ao mover os bens dum lugar a outro, aumentando seu valor de uso: os bens ficam disponíveis num lugar diferente daquele onde foram fabricados. A circulação se refere ao valor, não ao deslocamento físico. Uma coisa não se move, por exemplo, se seu proprietário muda enquanto ela fica no mesmo armazém. Por esta operação ela é comprada e vendida, mas seu valor de uso não se alterou, não aumentou. É diferente no caso do transporte.
O problema causado pela compra e venda, pela realização do valor do produto no mercado, exige um complexo mecanismo, que inclui crédito, banco, seguro e publicidade. O capital se torna uma espécie de parasita, que absorve uma monstruosa e crescente parcela dos recursos totais da sociedade nos custos da gestão do valor. A contabilidade, que é uma função necessária em qualquer organização social desenvolvida, tornou-se um desastre burocrático que esmaga a sociedade e as reais necessidades em vez de ajudar a satisfazê-las. Ao mesmo tempo, o capital cresce mais concentrado e centralizado: os monopólios tentam evitar a superprodução, mas a longo prazo a agravam. O capital só pode sair dessa situação através de crises periódicas, que temporariamente resolvem o problema reajustando a oferta e a demanda (apenas a demanda solvente, pois o capitalismo conhece uma só maneira de circular os produtos: comprando e vendendo; ele não se preocupa se a demanda real (as necessidades) não são satisfeitas. De fato, o capital gera a subprodução com relação às necessidades reais, que ele não satisfaz).
As crises capitalistas são mais do que crises de mercadorias. São crises que se ligam à produção de valor, assim como a produção é governada pelo valor. Pode-se entender isso comparando-as com algumas crises pré-capitalistas, antes do século XIX. Um decréscimo da produção agrária resultou em más colheitas. Os camponeses compravam menos bens industriais, como roupas, e a indústria, que era ainda muito frágil, passava dificuldades. Essas crises se baseavam num fenômeno natural (climático). Mas os comerciantes especulavam com cereais, estocando-os para fazer subirem seus preços. Eventualmente, houve fome aqui e ali. A própria existência das mercadorias e do dinheiro é a condição para as crises: há uma separação temporal entre as duas operações de compra e venda. Do ponto de vista do mercado e do dinheiro tentando incrementar seu volume, comprar e vender cereais são dois problemas distintos: o período de tempo entre eles é determinado apenas pela quantidade e a taxa de lucro esperada. Pessoas morriam de fome, durante o período que separa a produção e o consumo. Mas, neste caso, o sistema mercantil só agiu como fator agravante numa crise causada por condições naturais. Nesses casos, o contexto social é pré-capitalista, ou de fraco capitalismo, como atualmente na China e Rússia onde as más colheitas ainda têm forte influência na economia.
A crise capitalista, por um lado, é o produto da união forçada entre valor e produção. Tomemos um fabricante de carros. A concorrência o força a elevar a produtividade e obter um rendimento máximo com um mínimo de investimento. A crise surge quando a acumulação não acompanha suficientemente o decréscimo dos custos de produção. Milhares de carros podem sair das linhas de montagem todo dia, e até encontrar compradores, mas sua fabricação e venda não valorizam seu capital de modo suficiente em comparação a outros. Assim, ao tornar a produção mais eficiente, a companhia reduz sua taxa de lucro com a quantidade de carros vendida, garantias para créditos, fusões, intervenção governamental... Eventualmente, produz como se a demanda fosse se expandir para sempre, e perde cada vez mais. A crise reside não no esgotamento dos mercados, nem em generosos aumentos de salário, mas na queda da taxa de lucro (para a qual a luta proletária contribui): como soma de valor, o capital encontra dificuldade crescente para se valorizar na taxa média.
A crise não apenas revela como a ligação entre valor de uso e valor de troca, entre utilidade e intercambialidade de uma mercadoria. Mas explode-a em pedaços, revelando que a lógica do capital é o interesse das empresas, de aumentar seus lucros, e não a da satisfação das necessidades humanas. E isso nada tem a ver com o enriquecimento dos capitalistas, como os críticos vulgares do capitalismo dizem. O importante é a diferença com as crises pré-capitalistas. Estas se originavam duma necessidade inelutável (safra ruim, por exemplo) que as relações mercantis só agravavam. A crise moderna não tem causa natural; é social. Todos os elementos da atividade industrial estão presentes: matérias primas, máquinas, trabalhadores, mas estes não são empregados - ou só o são parcialmente. Eles não são só coisas, objetos materiais, mas uma relação social. Realmente, eles somente existem nesta sociedade se o valor os une. Este fenômeno não é “industrial”; não vem das exigências técnicas da produção. Ele é uma relação social, através da qual todo complexo produtivo e, de fato, toda a estrutura social (tanto quanto o capital conquistou a sociedade) são dominados pela lógica mercantil. O único objetivo do comunismo é destruir a relação mercantil, e assim reorganizar e transformar toda a sociedade (veja abaixo).
A rede de empresas - centros e instrumentos do valor - se torna um poder sobre a sociedade. As necessidades das pessoas (moradia, alimentação, “cultura”) só existem submetidas a este sistema, e são até formadas por ele. 4 A produção não é determinada pelas necessidades, mas as necessidades são determinadas pela produção - para a valorização. Escritórios são construídos mais rápido do que as necessárias moradias. E muitas casas, bem como milhares de apartamentos, ficam vazios por 10 meses em 12 porque os proprietários ou locatário, que compraram a residência ou pagaram o aluguel, são os únicos que podem ocupá-los. A agricultura é negligenciada pelo capital, numa escala mundial, e só é desenvolvida se permite a valorização, enquanto centenas de milhões de pessoas morrem de fome. A indústria automobilística é um ramo desenvolvido além das necessidades das pessoas nos países avançados, porque sua lucratividade se mantém crescente, apesar de toda sua nocividade. Os países retardatários só podem construir fábricas que rendam uma taxa média de lucro. A tendência à superprodução exige uma permanente economia de guerra, em quase todos os países avançados; essas forças destrutivas tornam-se operativas se necessário, como as guerras são ainda outro meio de agir contra a tendência de crise.
O trabalho assalariado é um absurdo, há várias décadas. Ele força a maioria dos proletários a executar um trabalho exaustivo. Uma parcela muito numerosa, em países como os EUA, são proletários do setor improdutivo. A função deste setor é facilitar as vendas e absorver os proletários demitidos pelas novas tecnologias, fornecendo assim uma massa de consumidores e contribuindo para a “gestão da crise”. O capital se apossa de todas as ciências e técnicas: no campo produtivo, orienta recursos para o estudo do que produzirá um lucro máximo; no campo improdutivo, desenvolve a gerência e o marketing. Assim, a humanidade tende a ser dividida em três grupos:
- trabalhadores produtivos, com freqüência destruídos fisicamente por seu trabalho;
- trabalhadores improdutivos, cuja grande maioria é apenas uma fonte de desperdício;
- e a massa dos não-assalariados, alguns nos países desenvolvidos, mas a maioria deles nos países pobres: o capital não pode integrá-los de nenhum modo, e centenas de milhares deles são periodicamente destruídos nas guerras causadas direta ou indiretamente pela organização capitalista-imperialista da economia mundial.
O desenvolvimento de alguns países atrasados, como o Brasil, é real. Mas só se realiza através da destruição total ou parcial de antigas formas de vida. A introdução da economia mercantil priva os camponeses pobres de seus meios de subsistência e os leva à miséria das cidades superpovoadas. Só uma minoria da população tem a “sorte” de trabalhar em fábricas e escritórios; o resto é subempregado ou desempregado.
G) Proletariado e Revolução
O capital cria uma rede de empresas que existe para e pelo lucro. E protegida pelo Estado, que nada mais é do que uma organização anticomunista. Simultaneamente, o capital cria o proletariado - a massa dos indivíduos que serão forçados a se insurgir contra ele. Essa massa não é homogênea, mas se unificará na revolução comunista, ainda que seus componentes não desempenhem o mesmo papel.
Uma revolução é o resultado de necessidades reais, originadas nas condições materiais de vida que se tornaram insuportáveis. Isto também se aplica ao proletariado, que deve sua existência ao capital. Uma grande parte da população mundial é obrigada a vender sua força de trabalho para sobreviver, pois não tem meios de produção. Alguns vendem sua força de trabalho e são produtivos. Outros a vendem e são improdutivos. Ainda há os que não podem vendê-la: o capital só compra trabalho vivo quando espera se valorizar numa taxa razoável (a taxa de lucro média).
Se identificarmos o proletário com o operário de fábrica (ou pior: com o trabalhador manual) ou com os pobres, não veremos o que é subversivo na condição proletária. O proletariado é a negação desta sociedade. Não é o conjunto dos pobres, mas daqueles que estão desesperados, aqueles que não têm reservas (les sans-réserves em francês, ou senza riserve, em italiano), 5 que não têm nada a perder senão suas próprias correntes; aqueles que não são nada, não têm nada e que não podem se libertar sem destruir toda a ordem social.
O proletariado é a dissolução da sociedade atual, desta sociedade que o priva de quase todos os seus aspectos positivos. Mas o proletariado é também sua autodestruição. Todas as teorias (burguesa, fascista, stalinista, de esquerda ou “esquerdistas”) que de algum modo glorificam e exaltam o proletariado, reivindicando o papel positivo do proletariado na defesa dos valores e regeneração da sociedade, são contra-revolucionárias. A exaltação do proletariado tornou-se uma das armas mais eficientes e perigosas do capital. A maioria dos proletários tem salários baixos, uma parte trabalha na produção, mas sua emergência como proletariado deriva não de serem produtores mal pagos, mas de serem alienados, de não terem controle sobre suas vidas ou sobre o que fazem para conseguir sobreviver.
Definir o proletariado tem pouco a ver com a sociologia. Sem a possibilidade do comunismo, as teorias do “proletariado” seriam equivalentes à metafísica. Nosso maior argumento é que, toda as vezes em que interferiu autonomamente no curso da sociedade, o proletariado repetidamente agiu como negação da atual ordem de coisas, não ofereceu valores positivos ou papéis, buscou outra coisa.
Sendo produtor de valor, pode destruir o mundo baseado no valor. O proletariado inclui, por exemplo, os desempregados e muitas donas-de-casa, pois o capitalismo utiliza o trabalho desses últimos para incrementar a massa total de mais-valia.
Os burgueses são a classe dominante, mas não porque são ricos. Ser burguês os faz ricos, não o contrário. Eles são a classe dominante porque controlam a economia - os trabalhadores e as máquinas. A propriedade, estritamente falando, é uma forma de poder de classe e aparece em outras variantes do capitalismo.
O proletariado não é a classe operária, mas a classe da crítica do trabalho. É a sempre presente destruição do velho mundo, mas ainda potencialmente, que só se torna atual num momento de tensão social e revolta, quando é compelido pelo capital a ser agente do comunismo. Ele unicamente se torna a subversão da sociedade estabelecida quando se unifica e se auto-organiza, não para ser a classe dominante, como a burguesia o fez, mas para destruir a sociedade de classes. Neste momento, só há um agente: a humanidade. Mas fora de tal período de conflito e do período que o precede, o proletariado é reduzido à condição de elemento do capital, um parafuso dentro de um mecanismo (e é precisamente este aspecto que é glorificado pelo capital, que exalta o operário como parte do sistema social existente).
Embora não isento de obreirismo (reverso do intelectualismo), o revolucionário nem pensa em elogiar a classe operária ou o trabalho manual como felicidade infinita. Ele vê os operários produtivos como uma parte decisiva (mas não exclusiva) porque seu lugar na produção os coloca na melhor situação para revolucioná-la. Somente neste sentido, os proletários (freqüentemente usando gravata) assumem um papel central, pois sua função social lhes permite realizar diferentes tarefas. Mas, com a generalização do desemprego, do trabalho informal, do aumento da escolarização, dos estágios e do trabalho por tempo parcial, da aposentadoria prematura - estranha mistura de bem-estar e opressão, na qual as pessoas passam da miséria assalariada à pobreza assistida, quando a esmola institucional algumas vezes equivale ao mais baixo salário - é cada vez mais difícil distinguir o trabalho do não-trabalho.
Brevemente, talvez, ingressaremos numa fase semelhante à dissolução que os primeiros escritos de Marx relatam. Em cada período de fortes distúrbios sociais (por exemplo, a década de 1840 ou depois de 1917), o proletariado sofre com o afrouxamento dos limites sociais (seções da classe operária e da classe média decaem na escala social ou temem que isso lhes ocorra) e a fraqueza dos valores tradicionais (a cultura não é mais um unificador). A ideologia da velha sociedade é abolida nas condições dos proletários. Nem os hippies nem os punks, mas o capitalismo moderno matou a ética do trabalho. Propriedade, família, nação, moral, política no sentido burguês tendem a se deteriorar na condição proletária.
H) Formação da comunidade humana
A comunidade primitiva é demasiado pobre e fraca para se aproveitar da potência do trabalho. Ela só conhece o trabalho na sua forma imediata. O trabalho não é cristalizado e acumulado em instrumentos; pouco trabalho passado é estocado. Quando isto se torna mais comum, a troca é necessária: a produção pode ser medida somente pelo trabalho abstrato, pelo tempo de trabalho médio, com a finalidade de circular. O trabalho vivo é o elemento essencial da atividade, e o tempo de trabalho é a medida necessária. O tempo de trabalho é expresso em dinheiro. Daí, a exploração e o agravamento das catástrofes naturais (ver, acima, sobre as crises pré-capitalistas). Daí, a ascensão e a queda dos Estados e impérios, que só podem crescer lutando uns contra os outros. Algumas vezes, as relações de troca desapareceram em partes do mundo civilizado (isto é, mercantil), depois da morte de um ou vários impérios. Semelhante interrupção do desenvolvimento pode durar séculos, durante os quais a economia parece retroceder para condições de mera subsistência.
Nesse período, a humanidade ainda não tem um aparato produtivo capaz de fazer a exploração do trabalho humano ser inútil e mesmo desastrosa. O papel do capitalismo é acumular trabalho passado. A existência do complexo industrial, de todo o capital fixo, revela que o caráter social da atividade humana foi finalmente materializado num instrumento capaz de criar, não um novo paraíso na terra, mas um desenvolvimento que faz o melhor uso possível dos recursos disponíveis para satisfazer as necessidades e produzir novos recursos para satisfazer novas necessidades. Se esse complexo industrial se tornou o elemento essencial da produção, então o papel da lei do valor como regulador, papel que corresponde a um estágio em que o trabalho era o principal fator produtivo, perde todo fundamento. O valor se torna desnecessário à produção. Agora, sua sobrevivência é catastrófica. O valor, expresso em dinheiro sob todas as suas formas, resulta de uma característica geral do trabalho, da energia (tanto individual quanto coletiva) que é produzida e consumida pelo trabalho. O valor se perpetua como mediador necessário enquanto essa energia não cria um sistema produtivo mundialmente unificado: ele se torna um obstáculo. 6
O comunismo é o fim de uma série de mediações que antes eram necessárias (apesar da miséria que acarretavam) para acumular trabalho passado, até que a humanidade se tornasse capaz de fazer essas mediações desaparecerem. O valor é uma dessas mediações. Agora, já é inútil a existência de um elemento externo às atividades sociais para conectá-las e estimulá-las. A infra-estrutura produtiva acumulada só precisa ser transformada e desenvolvida. O comunismo compara valores de uso, para decidir desenvolver uma dada produção mais do que outra. Não reduz os componentes da vida social a um denominador comum (como o tempo de trabalho médio contido neles). O comunismo organiza sua vida material com base no confronto e interação das necessidades - o que não exclui conflitos e mesmo alguma forma de violência. Os homens não se tornarão anjos: por que o fariam?
O comunismo também é o fim de todo e qualquer elemento necessário para a unificação da sociedade: é o fim da política. Não é nem democrático nem ditatorial. É evidente que ele é “democrático” se esta palavra significa que cada um será responsável em todas as atividades sociais. Isso não será assim porque as pessoas desejarão gerir a sociedade, ou por algum princípio democrático, mas porque a organização das atividades só pode ser realizada por aqueles que participarem delas. Contudo, ao contrário do que os democratas dizem, isto será possível unicamente através do comunismo, no qual todos os elementos da vida são parte da comunidade. É quando toda atividade separada e toda produção isolada são abolidas. Isto só pode ser realizado pela destruição do valor. A troca entre empresas exclui toda possibilidade de a coletividade determinar sua vida (sobretudo sua vida material). O objetivo da troca e do valor é radicalmente oposto ao das pessoas - a General Mottors, a Woolworth’s e as centrais eletronucleares nunca funcionarão democraticamente. As empresas tentam se valorizar e não aceitam lideranças, a não ser aquelas que alcançam seus objetivos (é por isso que os capitalistas nada mais são do que funcionários do capital). As empresas gerem seus gestores. A abolição das empresas, a destruição da relação mercantil, que compele cada indivíduo a considerar e tratar os outros como meios para ganhar sua vida, são apenas condições para a auto-organização. Os problemas de gestão são secundários, e é absurdo querer que todos assumam a função rotativa de gestão da sociedade. A contabilidade e a administração serão atividades como todas as outras, sem privilégio; qualquer um poderá participar delas (ou não).
“A democracia é uma contradição nos termos, uma mentira e de fato uma hipocrisia... Na minha opinião, isto se aplica a todas as formas de governo. A liberdade política é uma farsa e a pior escravidão possível. Assim é a igualdade política. Por este motivo, a democracia tem de ser destruída, como qualquer outra forma de governo. Essa forma hipócrita não pode continuar. Sua contradição intrínseca deve ser exposta à luz do dia: ou significa escravidão, o que implica despotismo aberto; ou significa liberdade e igualdade, o que implica comunismo.” 7
No comunismo, é inútil qualquer força exterior para unir os indivíduos. Isto não foi entendido pelos socialistas utópicos. Quase todas as suas sociedades imaginárias, quaisquer que sejam seus méritos ou seu poder visionário, precisam de planos muito estritos e uma organização quase-totalitária. Esses socialistas queriam criar laços que, na prática, se criam sempre que as pessoas se agruparam. Tentando, ao mesmo tempo, evitar a exploração e a anarquia, alguns socialistas utópicos organizaram a vida social em progresso. Outros, os anarquistas, recusam semelhante autoritarismo e querem que a sociedade seja uma permanente criação. Mas o problema não está aí: somente relações sociais baseadas num certo nível de desenvolvimento material da produção, fazem a harmonia entre os indivíduos ser tão possível quanto necessária (o que não exclui conflitos). Então, os indivíduos podem satisfazer suas necessidades, mas através de sua participação, sem serem meras ferramentas do grupo. O comunismo não necessita de unificar o que já não está separado.
Isto é verdade no mundo, numa escala universal. Os Estados e nações foram necessários para o desenvolvimento. Agora, são organizações puramente reacionárias, e as divisões que mantêm impedem o desenvolvimento. A única dimensão possível é a da humanidade.
A oposição entre manual e intelectual, entre natureza e cultura, fazia sentido. A separação entre quem trabalhava e quem organizava o trabalho aumentava a eficiência do trabalho. O atual nível de desenvolvimento não necessita mais disso, e essa divisão é somente um obstáculo, cujo absurdo se revela em todos os aspectos da vida profissional, “cultural” e escolar. O comunismo destrói a divisão entre proletários mutilados pelo trabalho manual e proletários tornados inúteis nos escritórios.
Isto também se aplica à oposição entre o homem e seu ambiente. No passado, o homem só podia socializar o mundo dominando a “natureza”. Hoje em dia, essa dominação é uma ameaça à natureza. O comunismo é a reconciliação entre o homem e a natureza.
O comunismo suprime a economia, campo separado e privilegiado de que tudo depende. Desde a desintegração da comunidade primitiva, o homem (re)produz suas condições de existência. Mas, sob a forma que assume no capitalismo, o trabalho - atividade pela qual o homem se apropria de seu ambiente - se tornou uma compulsão, opondo-se ao descanso, ao lazer, à vida. Historicamente necessário para criar o trabalho passado, esse estágio torna possível a eliminação dessa escravidão. Com o capital, a produção (de mais-valia) governa o mundo. É a ditadura do capital sobre a sociedade.
Quando produzimos, sacrificamos a vida para desfrutá-la posteriormente. Este desfrute é habitualmente desligado da natureza da atividade produtiva, que é um meio para nossa sobrevivência. O comunismo - que dissolve as relações de produção ao integrá-las nas relações sociais - não admite nenhuma atividade separada. A obrigação de fazer o mesmo trabalho por toda a vida, de ser operário manual ou intelectual, desaparece. O trabalho acumulado integra todas as ciências e técnicas, possibilitando que pesquisa e trabalho, reflexão e ação, aprendizado e atuação se tornem uma única atividade. Algumas tarefas podem ser feitas por todos e a generalização da automação transforma profundamente a produção. O comunismo não afirma o desfrute contra o trabalho e nem o não-trabalho contra o trabalho. Estas noções limitadas e parciais são ainda realidades capitalistas. A atividade como produção-reprodução das condições de vida (materiais, afetivas, culturais etc.) é a verdadeira natureza da humanidade.
O homem produz coletivamente seus meios de existência, não os recebe das máquinas, situação em que a humanidade seria como uma criança, que ganha brinquedos sem saber sua origem. Sua origem não lhe interessa: os brinquedos estão aí. Ora, o comunismo não faz da atividade algo perpetuamente agradável e feliz. A vida humana é esforço e prazer. Mesmo a atividade do poeta inclui momentos penosos. O comunismo só abole a separação: entre esforço e prazer, criação e recreação, produção e desfrute.
I) Comunização
O comunismo é a apropriação pela humanidade de sua riqueza, e implica uma inevitável e completa transformação da riqueza. Isso requer a destruição das empresas como unidades separadas e, portanto, da lei do valor: não para socializar o lucro, mas para que haja circulação de bens entre centros industriais sem a mediação do valor. Isso não significa que o comunismo usará o sistema produtivo tal como existe no capitalismo. O problema não é se livrar do lado “mau” do capital (valorização) mantendo o lado “bom” (produção). Como vimos, o valor e a lógica do lucro impõem um tipo de produção, desenvolvem alguns ramos e abandonam outros. O elogio da produção e do crescimento é o canto de glória ao capital.
Por outro lado, para revolucionar a produção e destruir as empresas como tais, a revolução comunista é forçada a usar a produção. Esta é sua “alavanca” essencial, ao menos durante uma fase. O objetivo não é tomar as fábricas e geri-las, mas sair delas, conectá-las sem a troca, o que as destrói como empresas. Este movimento começa quase automaticamente, com a superação da oposição entre cidade e campo e a dissociação entre indústria e outras atividades. Hoje, a indústria está sufocada dentro de seus próprios limites, embora sufoque outros setores.
O capital vive para acumular valor: ele fixa o valor na forma de trabalho estocado, trabalho passado. A acumulação e a produção se tornam fins em si mesmos. Tudo lhes é subordinado: o capital alimenta seus investimentos com trabalho humano. Ao mesmo tempo, desenvolve o trabalho improdutivo, como mostramos. A revolução comunista é uma rebelião contra esse absurdo. É também uma desacumulação, não para retornar a formas de vida perdidas para sempre, mas para a reapropriação do homem: até agora o homem foi sacrificado em nome do investimento; hoje em dia, o reverso é possível. O comunismo é a negação do produtivismo, e, do mesmo modo, se opõe à ilusão do desenvolvimento ecológico dentro da economia atual. O “crescimento zero” é ainda crescimento. Os porta-vozes oficiais da ecologia jamais fizeram uma crítica da ditadura do valor, contentam-se com a hipótese de controlar seus excessos.
O comunismo não é a continuação do capitalismo, numa forma mais racional e moderna ou menos desigual e anárquica. Tampouco utiliza a velha base material, ele a subverte.
O comunismo não é um conjunto de medidas a executar depois da conquista do poder. É um movimento que já existe, não como modo de produção (uma ilha comunista no capitalismo é impossível), mas como tendência que se origina em necessidades reais. O comunismo nem sequer reconhece o valor. A questão não é que, num belo dia, um grande número de pessoas comece a destruir o valor e o lucro. No passado, todos os movimentos revolucionários foram capazes de paralisar a sociedade, esperando por algo para sair da paralisação. O comunismo fará circular bens sem dinheiro, derrubando o muro que isola uma fábrica da vizinhança e fechando outra fábrica onde o trabalho é alienado demais para ser tecnicamente aperfeiçoado, suprimirá a escola como lugar que cerceia o aprendizado do fazer, derrubará os limites que forçam as pessoas a se aprisionar em habitações familiares - em suma, abolirá todas as separações.
O mecanismo da revolução comunista resulta das lutas. Seu desenvolvimento força aqueles que a sociedade deixa sem outra perspectiva a estabelecer novas relações sociais. Se, agora, várias lutas sociais parecem vir do nada, é porque sua única continuação possível é o comunismo, independente do que os que delas participam estejam pensando. Mesmo quando estão apenas reivindicando, os operários chegam, com freqüência, a um ponto em que não há outra solução a não ser um conflito violento com o Estado e seus cúmplices, os sindicatos. Nesse caso, a luta armada e a insurreição exigem a aplicação de um programa social e o uso da economia como arma (veja acima, sobre o proletariado). O aspecto militar, por mais importante que seja, depende do conteúdo da luta. Para derrotar seus inimigos no plano militar, o proletariado - seja qual for a sua consciência – terá de comunizar a sociedade.
“A moderna estratégia equivale à emancipação da burguesia e do campesinato: é a expressão militar dessa emancipação. A emancipação do proletariado também terá sua expressão militar, e uma nova e específica guerra. Isto é claro. Podemos mesmo analisar essa estratégia a partir das condições materiais do proletariado.” 8
Até agora, as lutas não alcançaram o estágio em que seu desenvolvimento militar faz necessário o aparecimento da nova sociedade. Nos mais importantes conflitos sociais, na Alemanha entre 1919 e 1921, o proletariado, apesar da violência da guerra civil, não alcançou esse estágio. A perspectiva comunista estava presente nesses combates, que não fazem sentido se não se tem consciência dela. A burguesia foi capaz de usar a arma da economia, dividindo a classe operária, por exemplo, através do desemprego. O proletariado não soube usar a arma da economia, lutou principalmente com meios militares. Foi longe a ponto de criar um Exército Vermelho no Ruhr, em 1920. Mas não foi capaz de usar a arma que sua própria condição social lhe dá.
Num contexto diferente, as revoltas proletárias nos EUA iniciaram uma transformação social, mas apenas no nível da mercadoria, e não do capital enquanto tal. Esses lutadores eram só uma parte do proletariado e freqüentemente não puderam usar a “arma” da produção, porque tinham sido excluídos dela: estavam fora das fábricas. Portanto, a revolução comunista implica uma ação na empresa, para destruí-la. As rebeliões nos EUA permaneceram no nível do consumo e da distribuição. 9 O comunismo não pode se desenvolver sem atacar o núcleo do problema, o cerne em que a mais-valia é produzida: a produção. Mas ele só usa essa alavanca para destruí-la.
Aqueles que não têm reservas fazem a revolução: são forçados a estabelecer relações sociais que ultrapassam a sociedade atual. Essa ruptura implica uma crise, que pode ser muito diferente daquela de 1929, quando grande parte da economia foi paralisada. Se os que se rebelam contra o trabalho assalariado se unirem, a sociedade sofrerá tal perturbação que não será capaz de isolar cada luta. A revolução comunista não é a soma das lutas atuais, nem o seu transcrescimento pela intervenção da “vanguarda”. É algo que só poderá acontecer em escala mundial, sobretudo nos países avançados.
A principal questão não é a conquista do poder pelo proletariado. Não faz sentido defender a ditadura do proletariado tal como ele é agora. Os proletários, hoje, são incapazes de gerir qualquer coisa: são parte do mecanismo de valorização e subjugados à ditadura do capital. A ditadura do proletariado atual só pode ser a ditadura de seus representantes: os chefes dos sindicatos e partidos operários. É o que ocorre nos países “socialistas”, e o programa social-democrata no restante do mundo.
A revolução tem problemas organizativos, mas não é um problema de organização. Todas as teorias do “governo operário” ou “poder operário” só propõem soluções alternativas para a crise do capital. A revolução é antes de tudo uma transformação da sociedade, isto é, do que constitui as relações entre as pessoas; entre as pessoas e seus meios de vida. Os problemas de organização e “direção” são secundários: dependem do que a revolução realiza. Isto se aplica tanto ao início da revolução quanto ao funcionamento da sociedade que surge dela. A revolução comunista não acontecerá no dia em que 51% dos operários se tornarem revolucionários. E não começará estabelecendo um aparato de tomada de decisões. É precisamente o capitalismo que perpetuamente se preocupa com problemas de gestão e chefia. A forma organizativa da revolução comunista, como a de qualquer movimento social, depende de seu conteúdo. A maneira como o partido, a organização da revolução, se constitui e age depende das tarefas a serem realizadas.
No século XIX, e mesmo durante a primeira guerra mundial, as condições materiais do comunismo ainda não existiam, pelo menos em alguns países (França, Itália, Rússia etc.). Antes, a revolução comunista teria que desenvolver as forças produtivas, obrigar a pequena-burguesia a trabalhar, generalizar o trabalho industrial, com a regra: “Quem não trabalha não come!” (que, é óbvio, só seria aplicada aos capazes de trabalhar). Mas a revolução malogrou, sua fortaleza alemã foi esmagada. Suas tarefas, desde então, têm sido realizadas pelo crescimento econômico capitalista. Agora, a base material do comunismo existe. Não há mais necessidade de enviar os improdutivos para a fábrica. O problema é criar a base de outra “indústria”, totalmente diferente da atual. Muitas fábricas terão de ser fechadas e o trabalho obrigatório está fora de questão: o que queremos é a abolição do trabalho, como atividade separada do resto da vida. Seria sem sentido acabar com a coleta de lixo, uma atividade necessária, se todo o processo de produção e distribuição que gera o lixo não muda ao mesmo tempo.
Os países subdesenvolvidos - para usar uma expressão datada mas não inadequada - não precisarão continuar a industrialização. Em regiões da Ásia, África, América Latina, a exploração do trabalho pelo capital não é uma “subsunção real”. Velhas formas de vida comunitária ainda existem. O comunismo resgatará muitas delas - Marx considerou tal evolução para a comuna camponesa russa - com a ajuda de tecnologia “ocidental” aplicada de maneira diferente. Em muitos aspectos, essas áreas podem ser mais fáceis de comunizar do que as imensas conurbações civilizadas, adaptadas ao automóvel e viciadas em televisão. Em outras palavras, um processo mundial de desacumulação.
J) Os Estados e como se livrar deles
O Estado nasceu da incapacidade dos homens de dirigir suas vidas. É a unidade, simbólica e material, do desunido. Assim que o proletariado se apropria de seus meios de existência, essa mediação começa a perder sua função. Mas destruí-la não é um processo automático. O Estado não desaparecerá aos poucos, com o avanço da esfera não-mercantil. De fato, essa esfera se debilitará se tolerar a existência da máquina estatal, como na Espanha em 1936-37. Pois o Estado não definhará por si mesmo.
Comunizar é, pois, mais do que agir diretamente por comida. O capital será minado pela subversão generalizada que ocorre quando as pessoas decidem suas relações com o mundo. Mas nada de decisivo será feito enquanto o Estado tiver algum poder. A sociedade não é só uma rede capilar: as relações são centralizadas numa força que concentra o poder para preservar esta sociedade. O capitalismo se contentaria de nos ver mudando nossas vidas localmente, enquanto ele se perpetua numa escala global. Como uma força centralizada, o Estado deve ser destruído pela ação centralizada, assim como seu poder deve ser destruído em todos os lugares. O movimento comunista é antipolítico, não é uma política. 10
K) O comunismo como um movimento social atual
O comunismo não é apenas um sistema social, um modo de produção que existirá no futuro, depois da “revolução”. Esta revolução é de fato um encontro entre dois mundos:
1) Por um lado, todos aqueles que são rejeitados, excluídos de todo desfrute real, cuja própria existência é às vezes ameaçada, que são contudo unidos pela necessidade de entrar em contato com outros, de agir, de viver, de sobreviver;
2) Por outro lado, uma economia socializada em escala mundial, unificada num nível técnico, mas dividida em unidades forçadas a se opor umas as outras para obedecer à lógica do valor, que as unifica e procura destruir tudo para sobreviver como tal.
O mundo das mercadorias e do valor, atual quadro das forças produtivas, é movido por uma vida em si mesmo; se constitui como força autônoma, e o mundo das necessidades reais se submete a suas leis. A revolução comunista é a destruição dessa submissão. O comunismo é a luta contra essa submissão desde os primeiros dias do capitalismo. E, mesmo antes, então sem possibilidade de êxito.
A humanidade primeiramente atribuiu às suas idéias, às suas concepções do mundo, uma origem externa, acreditando que a natureza do homem se encontrava, não nas relações sociais, mas em sua ligação com um elemento exterior ao mundo (deus), do qual o homem seria apenas um produto. Do mesmo modo, a humanidade, no esforço de se apropriar e se adaptar ao mundo, primeiramente teve de criar uma rede de forças produtivas, uma economia, um conjunto de objetos que a esmaga e a domina. Hoje, a humanidade pode se apropriar do mundo, adaptando-o pela transformação de acordo com suas necessidades.
A revolução comunista é a continuação e a superação dos atuais movimentos sociais. As discussões do comunismo habitualmente partem de um ponto de vista errôneo: elas o relacionam com o que as pessoas farão depois da revolução e não com o que está acontecendo no momento em que a discussão ocorre. Há uma completa separação: primeiro se faz a revolução e depois, o comunismo. De fato, o comunismo é a continuação das necessidades reais, que estão agindo agora, mas que não podem levar a lugar algum, não podem ser satisfeitas porque a atual situação o impede. Hoje, existem numerosos gestos e atitudes que exprimem não apenas uma recusa do mundo atual, mas, em sua a maioria, um esforço para construir algo novo. Na medida em que não se obtém êxito, só se vêem seus limites, só a tendência e não sua possível continuação (a função dos grupos “extremistas” é apresentar esses limites como objetivos do movimento, e reforçá-los).
Na recusa do trabalho na linha de montagem, nas ocupações, a perspectiva comunista está presente como um esforço para criar “outra coisa”, não com base na mera rejeição do mundo moderno (hippy), mas através do uso e transformação do que é produzido e desperdiçado. Nesses conflitos, as pessoas espontaneamente tentam se apropriar dos bens sem obedecer à lógica da troca. Portanto, eles tratam esses bens como valores de uso. Suas relações com essas coisas, e as relações que estabelecem entre si para realizar tais atos, são subversivas. Até mesmo as pessoas se transformam nesses acontecimentos. A “outra coisa” pela qual essas ações procuram está presente nas ações só potencialmente, seja o que for que aqueles que as organizam podem pensar e querer, e o que quer que os extremistas que participam e teorizam sobre elas podem fazer e dizer. Este movimento será forçado a se tornar consciente de seus atos, a compreender o que se está fazendo, para fazê-lo melhor.
Aqueles que já sentiram a necessidade do comunismo e a discutem não podem interferir nessas lutas para levar o evangelho comunista, não podem propor a essas ações limitadas que se dirijam para a atividade comunista “real”. O que é necessário não são palavras-de-ordem, mas uma explicação do conteúdo e do mecanismo dessas lutas. Deve-se unicamente mostrar o que elas são forçadas a fazer.
- 1Marx, The Economic and Philosophic Manuscripts of 1844 (New York: International Publishers, 1964).
- 2Engels, Selected Writings, pp.217-218: "O Estado moderno... é... a personificação ideal do capital nacional total."
- 3Mattick, em Marx and Keynes (Porter Sargent, 1969) faz uma excelente análise da crise capitalista, apesar de não conseguir apreender a dinâmica do comunismo. (veja adiante, “Leninismo e Extrema Esquerda”).
- 4F. Perlman, The Reproduction of Daily Life, Black & Red, 1969.
- 5O conceito que se refere aos que “não têm reservas” foi formulado pelo comunista italiano Amadeo Bordiga, nos anos que se seguiram à segunda guerra mundial. A proposta de Bordiga não foi criar uma nova definição de proletariado, mas voltar a uma definição geral. O que O Capital descreve pode e deve ser compreendido junto às mais antigas análises do proletariado, como por exemplo, a Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: Introdução (1843).
- 6Ver os manuscritos de 1857-1858, muitas vezes conhecido por seu título em alemão: Grundrisse, Pelican, 1972
- 7Engels, "O progresso da Reforma Social no Continente”, A Nova Ordem Moral, 4-11-1843.
- 8Engels, Condições e Prospectos de uma Guerra da Sagrada Aliança contra uma França Revolucionária em 1852.
- 9Ver The Rise and Fall of the Spectacular Commodity Economy (1965).
- 10Marx (notavelmente no artigo de 1844, O Rei da Prússia e a Reforma Social e outras obras iniciais) desenvolveu a crítica da política e opôs a revolução “social” à “política”: esta reorganizou os laços entre os indivíduos e grupos sem mudar o que eles realmente são, a outra agiu sobre como as pessoas reproduzem seus meios de existência, seu modo de vida, sua condição real, assim, ao mesmo tempo, transformando como eles se relacionam entre si.
Um dos primeiros gestos de rebelião é a revolta contra o controle de nossas vidas, por um professor, um chefe, um policial, um trabalhador assistencial, um líder sindical, um chefe de Estado... Então, vem a política para reduzir as aspirações e desejos a um problema de poder - seja de um partido ou partilhado por alguém. Mas o que nos falta é o poder de produzir nossas próprias vidas. Um mundo em que toda eletricidade vem de gigantescas estações de força (a carvão, óleo combustível ou nuclear) sempre ficará fora de nosso alcance. Só a concepção política pensa que a revolução é primariamente uma questão de conquista de poder e/ou redistribuição.
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