Apêndice 2: Notas sobre Trotsky, Pannekoek, Bordiga

Apêndice 2 do livro Eclipse e Reemergência do Movimento Comunista.

Submitted by Joaos on September 21, 2015

Notas sobre Trotsky, Pannekoek, Bordiga

Pode ser interessante examinar esses três homens, não enquanto indivíduos, mas como pontos de vista, porque na opinião de muitas pessoas que tentam compreender algo hoje em dia, eles representam três diferentes situações e análises.

I

Se voltarmos à querela de Trotsky com Lênin, em 1903-4 e nos anos seguintes, no período "menchevique" de sua vida, devemos admitir que ele corretamente viu o erro na concepção (de Kautsky & Lênin) de que a "consciência de classe" é introduzida no movimento operário pelo "partido". Isso foi explicitado em Nossas Tarefas Políticas, ainda que consideravelmente obscurecido por muitas outras idéias. Mas Trotsky refuta a concepção de Lênin de um ponto de vista democrático: ele não vê o comunismo como abolição da mercadoria e criação de um novo mundo, mas como domínio dos operários sobre a sociedade. Portanto, ele critica Lênin por substituir o proletariado pelo partido. Mas a teoria de Lênin deve ser refutada por outro ângulo: Lênin não viu o que Marx havia tentado mostrar. Transformado numa mercadoria e tendo todos os aspectos de sua vida reduzidos a mercadorias, o proletariado, quando o capital o força à revolta (por exemplo, depois de uma crise), não pode evitar a destruição da economia e todas as suas conseqüências sobre o trabalho, as relações pessoais, a vida afetiva, o uso do espaço e da natureza, a representação etc. Lênin, como os militantes da Segunda Internacional, não viu que o programa comunista era imanente ao proletariado. Essas pessoas ignoraram a dinâmica do capital, e o que o comunismo realmente é. Todas as contribuições para a discussão da crise - de Luxemburgo, Hilferding etc, a maioria das quais tinha uma concepção puramente econômica – focavam o problema do ponto de vista do capital: porque ele não podia funcionar. E não do ponto de vista do proletariado: como a revolta dos operários cria novas relações sociais. Isso não significa dizer que o comunismo surge apenas da ação dos proletários. Pelo contrário, eles só atacam o capital porque o capital os ataca devido a seus problemas internos - a queda da taxa de lucro etc. Mas isso não basta para entender as crises econômicas; é necessário compreender também o que elas implicam para o proletariado.

Porém, isso não foi compreendido naquela época, devido a estabilidade e prosperidade geral, que levou os revolucionários a cometerem uma série de erros. Um deles foi a incompreensão de que o movimento operário naquela época só podia ser reformista, e também que o movimento social-democrata poderia apenas ser gradualista (com poucas exceções). Em 1914, o colapso da Segunda Internacional lhes mostrou o que os partidos social-democratas realmente pretendiam.

A concepção de Trotsky, sobre a revolução permanente na Rússia, só pode ser entendida nesse contexto. Ele pensava que, depois da revolução democrática (que só poderia ser feita pelos operários e camponeses, pois a burguesia era muito fraca, e Lênin concordava com isso), os operários não podiam deixar de avançar e de tomar o poder, imediatamente - com o apoio dos camponeses pobres - para implantar o socialismo. Foi aí que Lênin não concordou. Agora, é óbvio que o comunismo - como Marx e a teoria comunista o definem - era impossível naquele estágio na Rússia, devido ao enorme setor pré-capitalista. Trotsky não se preocupava com isso, para ele o socialismo equivalia ao poder dos operários. Isto é o que tenho a dizer sobre sua concepção democrática da revolução. Entretanto, o comunismo é uma transformação da vida social, e não apenas sua gestão pelas massas.

Apesar ou, melhor, por causa dessa concepção, Trotsky desempenhou um papel mais importante na revolução de 1905 (porque estava muito mais próximo dos operários) do que Lênin, cuja posição centralista e rígida na cisão do partido social-democrata, em 1903, o havia alienado de muitos proletários atuantes. Lênin desconfiava dos movimentos espontâneos. É possível que os eventos de 1905 o tenham ajudado a modificar sua posição e a se tornar mais eficiente no período de 1906 à 1914.

Durante a guerra, o internacionalismo de Trotsky, assim como o de Rosa Luxemburgo, não era tão radical quanto a posição expressa por Lênin em seu slogan: transformar a guerra imperialista em guerra civil.

Depois que se juntou aos bolcheviques, Trotsky não compreendia muito bem o que estava acontecendo. Antes, ele havia identificado o socialismo com o poder dos operários; agora, identificava o poder dos operários com o poder do partido. Logo, ele concluiu que a Rússia estava construindo o socialismo. Em Comunismo e Terrorismo, ele afirmou que o dever dos operários era obedecer ao Estado (operário) e que o socialismo significava disciplina e alta produtividade do trabalho. Lênin agiu da mesma forma, mas ele pelo menos tinha alguma noção de comunismo. Ele mais ou menos compreendeu que a Rússia não era e só poderia ser socialista com a vitória do proletariado na Europa.

Devemos ser muito cuidadosos nesta questão. Trotsky realmente acreditava que o capitalismo poderia ser evitado na Rússia, mesmo sem uma revolução na Europa. É verdade que ele não foi tão longe a ponto de acreditar que a Rússia era completamente socialista. Este é o motivo pelo qual ele inventou um estágio intermediário, nem capitalista nem socialista, e uma fantástica teoria do bonapartismo.

Trotsky participou ativamente na supressão de toda oposição que tivesse algum conteúdo comunista. Sua própria oposição era oportunista (aliou-se com Zinoviev, em 1926) e temia ameaçar o Estado. Ele organizou sua própria derrota. Quantas pessoas sabem hoje que ele se absteve de toda atividade política durante um ano e meio, entre 1925-1926? Não há necessidade de insistir nesse assunto.

A nível internacional, ele foi incapaz de compreender os esforços das minorias comunistas e apoiou a Terceira Internacional em todos os seus erros (atividade nos sindicatos e parlamentos, partidos de "massa", slogan de governo operário etc). Depois de ser expulso da Rússia, ele foi totalmente incapaz de estabelecer qualquer espécie de contato útil com os grupos revolucionários. Ele se recusou a discutir a validade dos notórios "quatro primeiros congressos da Internacional Comunista." Foi sectário e oportunista, tinha uma visão burocrática da revolução. Na França, por exemplo, ele apoiou pessoas que não tinham ligações com proletários nem aptidões revolucionárias, mas eram intelectuais de esquerda. Uma lista de todas as suas asneiras políticas seria assombrosa. Em busca de uma massa de seguidores, ele exortou seus adeptos a se filiarem aos partidos socialistas. Ele fundou uma Internacional que tinha programa mas não proletários. Estava sempre procurando novos truques para ir às massas, mas sempre fracassou. De fato, Trotsky não tinha programa. Deve ser reconhecido como um ativo militante, cheio de atividade e habilidade, mas carente de base teórica comunista. Ele foi excelente no ascenso do movimento insurrecional, em 1905, mas equivocou-se completamente no declínio. Então, ele poderia se tornar o pior dos burocratas se estivesse no poder; ou um causador de problemas, se não tivesse poder algum. É discutível que ele sempre teve uma teoria própria, excetuada a teoria da revolução permanente - e ninguém sabe exatamente o papel de Parvus na criação dessa teoria.

Trotsky tornou-se uma figura importante, como um símbolo da revolução russa. Depois da derrota do movimento revolucionário, ele permaneceu importante apenas por causa da fraqueza da minoria comunista.

II

Pannekoek (1873-1960) não é muito conhecido no ocidente. Há poucos anos somente um punhado de militantes e especialistas universitários haviam escutado falar dele. Suas idéias e seu passado estão retornando, porque o período atual está recriando as condições de seu tempo - mas com importantes diferenças que nos forçam a corrigir suas concepções.

Pannekoek era holandês, mas a maior parte de sua atividade ocorreu na Alemanha. Ele foi um dos poucos socialistas que manteve viva a tradição revolucionária anterior a 1914. Mas ele só assumiu posições radicais durante e após a guerra. Seu texto de 1920, Revolução Mundial e Tática Comunista, é uma das melhores obras desse período. Pannekoek viu que o fracasso da Segunda Internacional não era devido a uma falha de sua estratégia, mas que a própria estratégia se enraizava na função e na forma da Segunda Internacional, que se adaptara a um estágio preciso do capitalismo no qual os operários reivindicavam reformas econômicas e políticas. Para fazer a revolução, o proletariado teve que criar órgãos de um novo tipo, que ultrapassavam a velha dicotomia partido/sindicato. Neste ponto, ele não pôde evitar uma ruptura com a Internacional Comunista. Primeiro, porque os russos jamais compreenderam o que a velha Internacional tinha sido, e acreditavam ser possível organizar os operários de cima, sem ver a conexão entre a "consciência socialista" (segundo Kautsky, introduzida nas massas) e a posição contra-revolucionária de Kautsky; segundo, porque o Estado russo estimulava os partidos de massa na Europa, capazes de pressionar seus governos para negociar com a Rússia. Pannekoek expressou o elemento comunista real na Alemanha. Rapidamente, porém, ele foi derrotado e vários partidos comunistas de massa apareceram no ocidente. Então, a esquerda comunista foi reduzida a pequenos grupos, divididos em diferentes frações.

No início dos anos 30, Pannekoek e outros tentaram definir o comunismo. Dez anos antes, no início dos anos 20, já tinham denunciado a Rússia como capitalista. Agora, voltaram à análise de Marx sobre o valor. Eles afirmavam que o capitalismo é produção para a acumulação de valor, enquanto o comunismo é produção de valor de uso, para a satisfação das necessidades das pessoas. Mas algum planejamento é necessário: sem a mediação do dinheiro, a sociedade terá de organizar um rigoroso sistema de contabilidade, para se manter informada sobre a quantidade de tempo de trabalho contida em cada bem produzido. Uma contabilidade precisa cuidará para que nada seja desperdiçado. Pannekoek e seus amigos estavam certos em voltar ao valor e suas aplicações. Mas se equivocavam ao procurar um sistema de contabilidade racional baseado no tempo de trabalho. De fato, o que eles propõem é o domínio do valor (porque o valor nada mais é do que a quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário para produzir um bem) sem a intervenção do dinheiro. Deve-se acrescentar que isso foi atacado por Marx em 1857, no início dos Grundrisse. Mas a esquerda comunista alemã (e holandesa) pelo menos enfatizou a essência da teoria comunista.

Na guerra civil alemã, de 1919 a 1923, os proletários mais ativos criaram novas formas de organização, principalmente o que eles chamaram "uniões operárias" 1 e às vezes "conselhos". No entanto, a maioria dos conselhos operários era reformista. Pannekoek desenvolveu a idéia de que essas formas eram importantes, de fato vitais para o movimento, enquanto opostas à tradicional forma partidária. Foi neste ponto que o comunismo de conselhos atacou o comunismo de partido. Pannekoek desenvolveria isso plenamente. Até o fim da segunda guerra mundial, ele publicou Os Conselhos Operários, elaborando uma ideologia puramente conselhista, na qual a revolução se torna um processo democrático, decidido e controlado pelos operários durante todo o tempo. O socialismo é reduzido à gestão operária; os revolucionários devem apenas se corresponder, divulgar a teoria, fazer circular a informação e descrever o que os proletários estão fazendo. Mas não devem se organizar como grupo político permanente, tentar definir uma estratégia, ou agir conseqüentemente, evitando assim se tornarem os novos líderes do proletariado e mais tarde a nova classe dominante. Tentei mostrar o quanto isso é errado no capítulo "Leninismo e a Extrema Esquerda", publicado em 1969 como panfleto.

Da análise da Rússia, enquanto capitalista de Estado, Pannekoek voltou-se à análise daqueles que, no países ocidentais, agem como representantes dos operários no capitalismo, sobretudo os sindicatos.

Pannekoek estava familiarizado com as formas diretas de resistência do proletariado contra o capital, e compreendeu o triunfo da contra-revolução. Mas não entendeu o contexto geral do movimento comunista: sua base (transformação do operário numa mercadoria), sua luta (ação centralizada contra o Estado e o movimento operário existente), seu objetivo (criação de novas relações sociais, nas quais não há economia enquanto tal). Ele assumiu um importante papel na reforma do movimento revolucionário. Devemos ver os limites de sua contribuição, e então integrá-la numa reformulação geral da teoria comunista.

III

Bordiga (1889-1970) viveu numa situação diferente. Como Pannekoek, que havia lutado contra o reformismo antes da guerra e abandonou o partido socialista holandês para criar um novo, Bordiga pertenceu à esquerda de seu partido. Mas não foi tão longe quanto Pannekoek. Durante a primeira guerra mundial, o partido italiano tinha uma imagem radical, e não havia possibilidade de cisão. O partido inclusive se opôs à guerra, ainda que de uma forma mais ou menos passiva.

Quando o partido comunista italiano foi fundado, em 1921, rompeu com a direita e o centro do partido socialista. Este fato desagradou a Internacional Comunista. Bordiga dirigiu o partido. Ele se recusou participar nas eleições, não como questão de princípio, mas de tática. A atividade parlamentar poderia às vezes ser usada, mas nunca quando a burguesia pode utilizá-la para distrair os operários da luta de classes. Mais tarde, Bordiga escreveu que não era contra o uso do parlamento como uma tribuna quando isso fosse possível. Por exemplo, no início do fascismo, fazia sentido tentar usá-lo como uma tribuna. Mas em 1919, no meio de um movimento revolucionário, quando a insurreição e sua preparação estavam na ordem do dia, tomar parte nas eleições significava reforçar as mentiras burguesas e as concepções equivocadas sobre a possibilidade de uma mudança através do parlamento. Esse foi um tema importante para Bordiga, cujo grupo no partido socialista havia sido chamado de "fração abstencionista". A Internacional Comunista não concordou com isso. Considerando um problema de tática e não de estratégia, Bordiga decidiu obedecer à I.C., porque pensava que a disciplina era necessária em tal movimento, mas manteve sua posição.

As táticas de frente única foram o pomo da discórdia. Pareceu a Bordiga que o simples fato de convidar os partidos socialistas para uma ação comum confundiria as massas e camuflaria a oposição inconciliável desses partidos contra-revolucionários ao comunismo. E também ajudaria alguns partidos comunistas, que não haviam realmente rompido com o reformismo, a desenvolver tendências oportunistas.

Bordiga se opôs ao slogan de governo operário, que só criou confusão na teoria e na prática. Para ele, a ditadura do proletariado era uma parte necessária do programa revolucionário. Hoje, podemos ver que ele estava certo nessas duas questões. Entretanto, diferente de Pannekoek, recusou-se a explicar essas posições em termos da degeneração do partido e Estado Russos. Ele sentiu que a I.C. estava equivocada, porém acreditava que ela ainda fosse comunista.

Diferentemente da Internacional Comunista, Bordiga adotou uma clara posição sobre o fascismo. Ele não apenas considerou o fascismo uma forma de dominação burguesa, como a democracia; mas também acreditou que não havia que escolher entre elas. Esta questão tem sido debatida freqüentemente. A posição da esquerda italiana é geralmente distorcida. Os historiadores costumam considerar Bordiga como responsável pela subida de Mussolini ao poder. Ele é até mesmo acusado de não se preocupar com o sofrimento do povo sob o fascismo. Porém, na visão de Bordiga, não é verdade que o fascismo é pior do que a democracia, ou que a democracia cria melhores condições para a luta da classe proletária. Mesmo se a democracia fosse considerada como um mal menor do que o fascismo, seria estúpido e inútil apoiar a democracia para evitar o fascismo: a experiência italiana (e, depois, a alemã) mostrou que a democracia não havia sido apenas impotente perante o fascismo, mas que havia chamado o fascismo em seu socorro. Com medo do proletariado, a democracia realmente engendra o fascismo. A única alternativa ao fascismo era, portanto, a ditadura do proletariado.

Outro argumento foi defendido mais tarde pela esquerda - pelos trotskistas, por exemplo - para apoiar a política antifascista. O capital necessita do fascismo: ele não pode ser democrático. Portanto, se lutamos pela democracia, nós estamos na verdade lutando pelo socialismo. Foi assim que a maioria das pessoas da esquerda (de fato, quase todas elas) justificou sua atitude durante a segunda guerra mundial. Mas se a democracia cria o fascismo, o fascismo cria a democracia. A história tem demonstrado que o que Bordiga afirmou em teoria se realiza na prática: o capitalismo substitui um pelo outro; democracia e fascismo sucedem-se um ao outro. Ambas as formas têm se misturado e interpenetrado, desde 1945.

É claro que a Internacional Comunista não podia tolerar a oposição de Bordiga, e, entre 1923 e 1926, ele perdeu o controle do Partido Comunista Italiano 2 . Apesar de não concordar totalmente com Trotsky, ele o apoiou contra Stálin. No Comitê Executivo da Internacional Comunista, em 1926, ele atacou os líderes russos: esta foi provavelmente a última vez que alguém atacou publicamente a I.C., de dentro e num nível tão alto. Ainda aqui, é importante notar que Bordiga não analisou a Rússia como capitalista e a I.C. como degenerada. Ele só rompeu realmente com o stalinismo alguns anos depois.

Bordiga esteve preso de 1926 a 1930. Durante os anos 30, ele permaneceu afastado da intensa política dos emigrados. Mas sua influência foi grande e seus companheiros foram muito ativos na produção teórica.

Os anos 30 foram dominados pelo antifascismo e pelas frentes populares, que conduziram as preparações para uma nova guerra mundial. A minúscula esquerda italiana emigrante argumentava que a próxima guerra só poderia ser imperialista. A luta contra o fascismo através do apoio à democracia foi vista como uma preparação material e ideológica para essa guerra.

Depois do início da guerra, havia pouca oportunidade para a ação comunista. As esquerdas italiana e alemã adotaram uma posição internacionalista. Enquanto isso, o trotskismo escolheu apoiar os aliados contra o eixo. Naquela época, Bordiga ainda se recusava a definir a Rússia como capitalista, mas ele nunca defendeu - como o fez Trotsky - apoiar qualquer lado com que a União Soviética se aliasse. Ele jamais concordou com a defesa do "Estado Operário". É bom lembrar que, quando a Rússia, junto com a Alemanha, invadiu e dividiu a Polônia em 1939, Trotsky disse que isso era positivo, porque alteraria as relações sociais polonesas de um modo socialista!

Em 1943, a Itália mudou de lado e a República foi criada, dando oportunidades para ação. A esquerda italiana criou um partido. Eles sentiam que o fim da guerra levaria a lutas de classe similares em natureza àquelas do fim da primeira guerra. Bordiga realmente acreditava nisso? Ele aparentemente compreendeu que a situação era muito diferente. A classe operária estava nessa época totalmente sob controle do capital, que havia conseguido manobrá-la sob a bandeira da democracia. Quanto aos perdedores (Alemanha e Japão), foram ocupados e portanto controlados pelos vencedores. Mas Bordiga não se opôs de fato às opiniões da parte otimista de seu grupo, e manteve essa atitude até sua morte. Ele tendia a se manter afastado da atividade (e do ativismo) de seu "partido", e estava mais interessado na compreensão e explanação teórica. Portanto, ele ajudou a criar e perpetuar ilusões com as quais discordava. Seu partido perdeu a maioria de seus membros em poucos anos. No fim de 1940, estava reduzido a um pequeno grupo, como antes da guerra.

A maior parte da obra de Bordiga foi teórica. Uma parte considerável tratava da Rússia. Ele mostrou que a Rússia era capitalista e que seu capitalismo não era diferente em natureza do ocidental. A esquerda alemã (ou extrema esquerda) estava equivocada nessa questão. Para Bordiga, a coisa importante não era a burocracia, mas as leis econômicas essenciais que a burocracia devia obedecer. Essas leis foram as mesmas descritas em O Capital: acumulação de valor, troca de mercadorias, declínio da taxa de lucro etc. Na verdade, a economia russa não sofreu devido à superprodução, mas somente por causa de seu atraso. A extrema esquerda acreditava que a Rússia havia alterado as leis básicas descritas por Marx. Ela insistia no controle da economia pela burocracia, à qual opunha o slogan da gestão operária. Bordiga disse que não havia necessidade de um novo programa; a gestão operária é um problema secundário; os operários somente serão capazes de gerir a produção se as relações mercantis forem abolidas. É claro que esse debate ultrapassou o quadro da análise da Rússia.

Essa concepção tornou-se clara, no final dos anos 50. Bordiga escreveu alguns estudos sobre os textos mais importantes de Marx. Em 1960, ele afirmou que toda a obra de Marx era uma descrição do comunismo. Este é, indubitavelmente, o comentário mais profundo feito sobre Marx. Assim como Pannekoek havia voltado à análise do valor por volta de 1930, Bordiga voltou a ela trinta anos depois. Mas o que Bordiga desenvolveu foi uma concepção geral do processo e dinâmica da troca, de sua origem à sua morte no comunismo.

Entretanto, Bordiga engavetava sua teoria do movimento revolucionário, que incluía uma compreensão errada da dinâmica interna do proletariado. Ele pensou que os operários primeiramente se uniriam num nível econômico e alterariam a natureza dos sindicatos; eles então alcançariam o nível político, graças à intervenção da vanguarda revolucionária. É fácil ver aqui a influência de Lênin. O pequeno partido de Bordiga participou de sindicatos (controlados pelo partido stalinista) na França e Itália, sem resultado algum. Ainda que mais ou menos desaprovasse isso, ele não assumiu uma posição pública contra tal atividade desastrosa.

Bordiga manteve vivo o núcleo da teoria comunista. Mas não pôde se livrar das ilusões de Lênin, ou seja, as da Segunda Internacional. Portanto, sua ação e suas idéias tinham de ser contraditórias. Mas hoje não é difícil compreender aquilo que foi - e ainda é - válido em seu trabalho.

IV

Existem muitas lendas sobre os que tentaram resistir e manter viva a tradição revolucionária durante a longa contra-revolução que vivenciamos desde o início dos anos 20. Como a teoria é parte necessária e indispensável da subversão (todo movimento social quer compreender o que está fazendo), e já que a tradição marxista é a mais precisa e, de fato, a única válida, seria útil conhecer as tendências representadas por Trotsky, Pannekoek e Bordiga.

A primeira coisa a saber é o que eles realmente representam. Trotsky liderou uma facção no Estado Russo, e só se tornou oposicionista porque foi expulso do círculo interno dos líderes russos. Ele sempre se considerou um cidadão da União Soviética, cujos interesses eram mais importantes para ele do que os do proletariado. Na Rússia, ele foi contra qualquer oposição que tivesse um real conteúdo proletário, quaisquer que fossem as suas deficiências - como a Oposição Operária (1920-1921), o Grupo Operário (1921-1922) e até mesmo os centralistas democratas. Fora da Rússia, ele nunca tentou ver o que os comunistas de esquerda europeus (na Itália, Alemanha e outros países) realmente foram. Morreu sem ter aprendido nada. É difícil encontrar em sua obra alguma coisa que possa ser útil, hoje em dia. Muitas pessoas foram atraídas por seu prestígio e ainda o são. Mas quem procura algo verdadeiramente radical e tenta formular questões fundamentais deve ir além dele. Trotsky foi um excelente revolucionário, numa parte de sua vida. Mas pertence ao passado.Pannekoek e Bordiga são essencialmente diferentes. Eles são produtos dos melhores elementos da onda revolucionária na Europa, depois da primeira guerra mundial. Seguramente, devem existir militantes similares em outras partes do mundo, no mínimo nos países altamente desenvolvidos - no Japão por exemplo. Talvez seja instrutivo examinar isso.

Pannekoek entendeu e expressou a resistência do proletariado à contra-revolução, num nível imediato. Viu os sindicatos como um monopólio do capital variável, similar aos monopólios que concentram o capital constante. Descreveu a revolução como apropriação da vida pelas massas, contra o produtivismo, a hierarquia e a visão nacionalista do "socialismo" stalinista e social-democrata (compartilhada pelo trotskismo, e agora pelo maoísmo). Mas não apreendeu a natureza do capital, ou a natureza da mudança que o comunismo acarretaria. Em sua forma extrema, desenvolvida por Pannekoek no fim de sua vida, o comunismo de conselhos se torna um sistema de organização no qual os conselhos assumem o mesmo papel que o "partido" desempenha na visão leninista. Mas seria um erro grave identificar Pannekoek com seu pior período. Do mesmo modo, não se pode aceitar a teoria da gestão operária, especialmente numa época em que o capital procura novas maneiras de integrar os proletários, oferecendo-lhes a participação em sua gestão.

Este é precisamente o motivo pelo qual Bordiga é importante: porque ele considerou toda a obra de Marx como uma tentativa de descrever o comunismo. O comunismo existe potencialmente no proletariado. O proletariado é a negação desta sociedade. Ele irá eventualmente se revoltar contra a produção de mercadorias, nem que seja apenas para sobreviver, porque a produção de mercadorias o destrói, até mesmo fisicamente. A revolução não é uma questão de consciência, tampouco um problema de gestão. Isso faz Bordiga ser muito diferente da Segunda Internacional, de Lênin, e da Internacional Comunista oficial. Mas ele nunca tentou traçar uma linha entre o presente e o passado. 3 Agora, nós podemos fazê-lo.

Janeiro, 1973

  • 1Nesse contexto, a palavra alemã não tem nada a ver com a palavra trade-unions = sindicatos (que são chamados de Gewerkschaften em alemão). As "uniões operárias" ("unions") lutavam contra as trade-unions.
  • 2Quando tinha a maioria, ele renunciou em favor de Gramsci, contrariando as normas.
  • 3Veja, por exemplo, The Fundamentals of Revolucionary Communism, Partido comunista Internacional, Paris, 1972 (em inglês).

Comments