Apêndice 3: Carta sobre o uso da violência

Apêndice 3 do livro Eclipse e Reemergência do Movimento Comunista.

Submitted by Joaos on September 21, 2015

Carta Sobre o Uso da Violência

02 de Maio de 1973

Queridos companheiros,

A abordagem "marxista" usual é claramente não-revolucionária (quero dizer: pseudo-marxista). A maioria dos militantes da extrema esquerda diz apoiar completamente a necessidade de uma ação armada e uma guerra civil no futuro. Para eles isso é um mero princípio.

Deve-se não apenas dizer: Se você quer a paz prepare-se para revolução. Mas também: Se você quer a revolução, prepare-se para a guerra – isto é, a guerra civil.

Ë tão fácil delirar que ninguém consegue ser cuidadoso tratando deste assunto. Por outro lado, a atitude da maioria dos grupos políticos que se recusam a assumir seriamente o problema deve ser denunciada.

Sinto que na maioria das vezes os apelos revolucionários se referem à violência sob um ponto de vista puramente político, no sentido em que Marx atacou a política enquanto tal: por exemplo, no seu artigo de 1844 sobre o rei da Prússia e a reforma social. O objetivo da política é mudar o sistema de governo, e não as bases da sociedade; mudar a gestão do sistema, não o sistema em si. Se examinarmos os grupos de esquerda, sejam trotskistas, maoístas ou mesmo anarquistas, veremos que o quadro que pintam de uma sociedade futura não é muito diferente da realidade atual. Quem faz realmente avançar o programa comunista? Qual deles fala realmente sobre a abolição da produção mercantil, da supressão da teoria e da prática econômicas enquanto campos separados? O que eles querem é um capitalismo democraticamente controlado, no qual os trabalhadores seriam aparentemente a nova classe dominante... por meio de seus representantes - eles, os grupos de esquerda, é claro. Raramente, um desses grupos revolucionários entende a revolução como a emergência de novas relações, cujas bases materiais já existem. Aqueles que apóiam tais visões geralmente as interpretam no sentido de que tal mudança é possível agora e deve começar já. Isto é, na prática, um rechaço total da revolução que pode ser rotulado de contra-cultura e ser encontrado em qualquer lugar.

Talvez soe um pouco confuso, mas é importante compreender que o uso da violência - na revolução e também antes - depende do programa social da revolução. Basicamente, o conteúdo do movimento é o mesmo, mas a maneira de conduzi-lo será diferente. No tempo de Marx, o proletariado ainda tinha de desenvolver as forças produtivas; hoje em dia, ele terá apenas de transformá-las - comunizá-las, digamos assim. No tempo de Marx, como em 1920, ainda existia uma importante parcela pequeno-burguesa da população, mesmo em países como a Alemanha. O partido era apenas um corpo separado, uma organização formal. Sua tarefa era: primeiro derrotar o Estado e seu exército, e só então começar a transformar a sociedade. Hoje, a comunização da sociedade pode começar logo e é, na verdade, parte da ação puramente militar. Podemos e devemos fazer com que a burguesia e o Estado, ou seja, os órgãos da economia capitalista se tornem completamente inúteis, destruindo a economia e implantando o comunismo. Do nosso ponto de vista, a ação militar emprega agora armas sociais que não existiam há 50 anos atrás - ou que existiam num grau muito menor. Por outro lado, do ponto de vista do capital, o Estado se tornou muito mais eficiente. Talvez fosse interessante conhecer War Without End (Vintage Books, 1972), de M. Klare. Embora focalize principalmente as guerras em "áreas subdesenvolvidas", este livro fornece informações úteis sobre a estratégia preparatória para a guerra civil dos estados capitalistas do "mundo desenvolvido" (é claro que isso inclui a Rússia e a China: a maneira como a China reagiu à insurreição do Ceilão foi típica). O Estado sabe o que os esquerdistas ignoram, isto é, que a comunização é possível e é um perigo real para sua existência. Ele tentará isolar os revolucionários com a ajuda das organizações oficiais (sindicatos, partidos "comunistas", socialistas e trabalhistas, e a maioria dos grupos esquerdistas). Provavelmente, sua estratégia consistirá em isolar as áreas revolucionárias. E suas táticas, para evitar que evoluam para o comunismo, incluirão a destruição sistemática de suas condições materiais: indústria, poder, transporte etc. Se necessário, com os mesmos métodos que utilizou na segunda guerra mundial (que foi imperialista, exatamente como a primeira). Mas, antes de alcançar esse estágio, tentará esmagar o movimento revolucionário usando tropas de elite. Considerada sob um enfoque puramente material, a superioridade do capital é notável: nossa única esperança está numa subversão geral e coerente, que combata o Estado em todos os lugares.

Acredito que não se devam fazer tais generalizações. Todavia, muita coisa pode ser feita, neste momento. Se observarmos os Tupamaros ou Baader-Meinhof , parece que optaram pela luta armada para fornecer uma espécie de impulso à sociedade e também porque não queriam utilizar os métodos tradicionais. Este segundo motivo não é um "erro": apenas, não podiam fazer diferente. Estavam fartos e desgostosos deste mundo. Não os condeno por esse elemento "irracional". Mas devemos admitir que tal atitude está próxima da loucura. Nada tenho contra a loucura: o que nós chamamos de "louco" é apenas um indivíduo produzido pela sociedade. Esta sociedade também se livra dos elementos subversivos tornando-os loucos.

Mas eles começaram a luta armada pretendendo colocar o proletariado em movimento. Eles esperavam acordá-lo. Isso foi pura ilusão, típica da política. A mente politizada sempre tenta agir sobre as outras, para organizá-las ou forçá-las a fazer algo, enquanto se mantém fora do movimento social. Nossa tarefa também é política, mas somente quando lida com a destruição do poder político. A tarefa principal dos comunistas não é juntar-se a outros. Eles se juntam com outros para executar as tarefas decorrentes de suas próprias necessidades: pessoais e sociais, imediatas e teóricas.

Isto é, infelizmente, muito mal expressado. Quero ressaltar que nosso objetivo principal não é agir sobre as consciências das pessoas para que elas mudem. Isto é uma ilusão com a eficiência da propaganda, seja ela feita por textos ou por ações. Nós não "convencemos" ninguém. Podemos apenas expressar o que está acontecendo. Não podemos criar um movimento na sociedade. Podemos apenas atuar num movimento ao qual já pertençamos.

Tratando da questão militar, o mesmo princípio é válido. Claro, é necessário explicar o programa militar da revolução - por meio de textos, panfletos etc. Na prática, existem muitas coisas para fazer. Mas elas também têm em vista algo que já está sendo feito de uma maneira ou de outra, que esteja mal entendido ou no qual existe uma contradição ativa, por menor que seja. Darei um exemplo. Se alguma pessoa tem sido particularmente nociva para os operários (um capitalista, um militar), isto não significa que se deva necessariamente atacar essa pessoa, como se ela fosse um símbolo. Tal ato pode ser útil ou não, segundo o contexto. É ingênuo crer que o proletariado compreenderá o significado desse ato e mudará sua atitude. Seria o caso, se o proletariado já estivesse engajado numa ação violenta. De outra forma, tal ataque fortalecerá o Estado.

Por outro lado, se uma minoria organiza uma ação contra o exército, contra um aspecto decisivo de sua função e seu papel contra-revolucionário, isto pode ter um impacto, ainda que nenhuma força social pareça estar atuando contra o exército em "nosso" país neste momento. Tal atividade ajuda a mostrar - mesmo para poucas pessoas - que os revolucionários já estão em guerra contra o exército. Mas isso exige que tenhamos habilidade para explicar o significado de nossos atos, o que requer no mínimo alguma capacidade de expressão.

Uma das forças do capital é que o povo - mesmo o proletariado - nem imagina o que o Estado é capaz de fazer numa guerra civil. Talvez se surpreendam, depois. É muito útil frisar agora os aspectos importantes da futura guerra civil. Supostamente, deveríamos contatar elementos radicais (e mesmo "liberais") do próprio exército. Mas tais ações parecem estar totalmente fora da realidade do movimento social. Além disso, já há muitos operários radicais examinando a questão militar.

Não digo que a Angry Brigade, Baader e outros estejam "errados". Digo que foram vítimas de uma espécie de delírio, no qual a lógica da violência e do isolamento social gera mais violência e isolamento social. Expressei apenas visões parciais. Entretanto, nada de bom pode ser feito se não conectarmos nossa atividade agora com o que já sabemos sobre a revolução no futuro. Rejeito a autodestruição. Qualquer tolerância neste assunto é irresponsável e criminosa.

Você deve ter ouvido falar da agitação que se desenvolveu na França em torno da questão do serviço militar obrigatório, nas escolas e universidades. Mas dificilmente você poderia imaginar a ideologia dos grupos trotskistas e maoístas (o partido "comunista" é nacionalista desde 1934). Há poucos dias, li um texto maoísta que pregava o controle popular do exército! Os esquerdistas se recusam a dizer: "Abaixo o serviço militar!", porque acreditam que o exército tal como existe é um pouco mais democrático e popular do que um exército de voluntários. Alguns, pretensamente mais radicais, ousaram dizer: "Abaixo o exército!". Mas ninguém disse uma palavra sobre a guerra civil. Por este motivo, fizemos um panfleto altamente dogmático: no mínimo para estabelecer o princípio de que a questão militar é parte necessária da revolução. Mas é espantoso ver que mesmo revolucionários genuínos adotam uma atitude tão simplória nestes assuntos.

Por favor, encarem essa carta apenas como uma carta, e não como um "texto" propriamente dito.

Fraternalmente,

Jean Barrot

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