Texto que levanta a questão de se os seres humanos são capazes de superar a sociedade capitalista, uma vez que o capital revoluciona constantemente as condições de existência dos seres humanos, domesticando-os para transformá-los em pressuposições do processo de valorização do capital, tornando-os mistificados e incapacitados.
[Texto traduzido e publicado pelo Grupo Autonomia em março de 2005 no site Biblioteca Virtual Revolucionária. Foi traduzido da versão em inglês (traduzida por Fredy Perman) do texto originalmente publicado em Invariance (Anne 6, série II No. 3, 1973) ]
Muitas vezes se pensou e escreveu que o comunismo floresceria após a destruição do modo de produção capitalista, o qual seria minado por contradições tais que seu fim seria inevitável. Mas inúmeros eventos deste século infelizmente trouxeram outras possibilidades à vista: o retorno à “barbárie”, analisado por Rosa Luxemburgo e toda a ala esquerda do movimento operário alemão, por Adorno e a Escola de Frankfurt; a destruição da espécie humana, como se evidencia a cada dia que passa; enfim, um estado de estagnação no qual o modo de produção capitalista sobrevive ao se adaptar a uma humanidade degenerada desprovida do poder de destruí-lo. Para compreender o colapso de um futuro que se pensava inevitável, devemos levar em conta a domesticação dos seres humanos, implementada por todas as sociedades de classes e principalmente pelo capital, e analisar a autonomização do capital.
Não pretendemos tratar exaustivamente desses desvios históricos nestas poucas páginas. Comentando uma passagem dos Grundisse de Marx, podemos mostrar que é possível compreender a autonomização do capital com base na obra de Marx, e também podemos ver as contradições do pensamento marxista e sua incapacidade para resolver o problema. A passagem é do capítulo sobre o processo de circulação. Para compreendê-lo, devemos ter em mente o que Marx diz logo antes desta passagem:
“O tempo de circulação, assim, aparece como uma barreira para a produtividade do trabalho = um aumento do trabalho necessário = uma diminuição do tempo de sobretrabalho = uma diminuição da mais-valia, um obstáculo, uma barreira ao processo de auto-realização [Selbstverwertungsprozess] do capital.” 1
Aqui Marx faz uma digressão extremamente importante:
“Aparece aqui a tendência universalizante do capital, que o diferencia de todas as formas anteriores de produção, se convertendo assim em pressuposição de um novo modo de produção, fundado não no desenvolvimento das forças produtivas com o propósito de reproduzir ou mesmo expandir uma dada condição, mas no qual o livre, desobstruído, progressivo e universal desenvolvimento das forças produtivas é em si mesmo a pressuposição da sociedade e, portanto, de sua reprodução; no qual a superação do ponto de partida é a única pressuposição.” 2
O que torna o capital uma barreira não é afirmado aqui, embora o aspecto revolucionário, positivo, seja enfatizado (este aspecto é enfatizado em muitas outras páginas dos Grundisse e do Capital): a tendência para o desenvolvimento universal das forças produtivas. Porém, e é isso que nos interessa aqui, o capital não pode realizar isso. Será tarefa de outro modo de produção, superior. O futuro da sociedade aqui toma a forma de um movimento indefinido, acumulativo.
“Essa tendência – inerente ao capital mas que, ao mesmo tempo, visto que o capital é uma forma limitada de produção, o contradiz e assim o conduz à dissolução – diferencia o capital de todos os modos de produção anteriores, e ao mesmo tempo, contém esse elemento, pelo qual o capital é posto como um mero ponto de transição.” 3
Conseqüentemente, o capital é conduzido para a dissolução mediante essa contradição. É uma pena que Marx não explicite o significado de “forma limitada de produção”, o que não nos permite “ver” claramente o que ele entende por contradição neste caso específico. Isto condiciona a compreensão da afirmação de que o modo de produção capitalista é uma forma de produção transitória. Mesmo sem uma explicação da contradição, podemos compreendê-la assim: o modo de produção capitalista não é eterno – polêmico argumento de Marx contra os ideólogos burgueses. Este é o conteúdo de suas principais afirmações. Mas um outro argumento está embutido no precedente: o modo de produção capitalista é revolucionário e torna possível a passagem a outra forma social, superior, na qual os seres humanos não serão mais dominados pela necessidade (esfera da produção da vida material) e na qual a alienação deixará de existir.
Hoje, depois que o marxismo surgiu como uma teoria do desenvolvimento, outra parte dessa sentença parece básica: há um continuum entre os dois períodos. O que é uma transição, se não o oposto de uma ruptura? Este continuum consiste no desenvolvimento das forças produtivas. Do qual decorre a vergonhosa, mas real, relação: Marx-Lênin-Stalin! Mas nosso assunto não é este. Nossa finalidade é determinar o que constitui as forças produtivas e para quem elas existem - segundo Marx, nos Grundisse.
“Todas as formas anteriores de sociedade – ou o que é o mesmo, das forças de produção social – se arruinaram com o desenvolvimento da riqueza.”4
A riqueza reside nas forças produtivas e nos resultados de sua ação. Há uma contradição aqui que, segundo Marx, caracteriza a totalidade da história da humanidade: a riqueza é necessária e portanto procurada, mas ela destrói as sociedades. Conseqüentemente, as sociedades devem se opor ao seu desenvolvimento. Não é assim no modo de produção capitalista (que, por conseguinte, destrói todas as outras formações sociais), que exalta as forças produtivas. Mas exalta para quem?
“Os pensadores da antiguidade tinham consciência disso e, portanto, denunciavam diretamente a riqueza como dissolução da comunidade [Gemeinwesen]. O sistema feudal, por exemplo, sucumbiu à indústria urbana, ao comércio e à agricultura moderna (até mesmo como resultado de invenções individuais como a pólvora e a máquina de impressão). Com o desenvolvimento da riqueza – e também de novas forças e a expansão da troca por parte dos indivíduos –, as condições econômicas nas quais a comunidade [Gemeinwesen] se baseava foram dissolvidas, juntamente com as relações políticas dos vários constituintes da comunidade que correspondiam àquelas condições: a religião, em que eram vistas de forma idealizada (e ambos [religião e relações políticas] se baseavam, por sua vez, numa determinada relação com a natureza, na qual todas as forças produtivas se resolviam); o caráter, a visão etc. dos indivíduos. O desenvolvimento da ciência - em si mesmo, produto e produtor da riqueza – era suficiente para dissolver essas comunidades. Mas o desenvolvimento da ciência, esta riqueza ao mesmo tempo ideal e prática, é apenas um aspecto, uma forma pela qual o desenvolvimento das forças produtivas humanas, ou seja, a riqueza, aparece. Considerada idealmente, a dissolução de uma determinada forma de consciência bastou para matar toda uma época. Na realidade, essa barreira para a consciência corresponde a um grau definido de desenvolvimento das forças de produção material e, por conseguinte, da riqueza. É certo que havia não apenas um desenvolvimento sobre a antiga base, mas também um desenvolvimento desta base em si mesma.”5
Para Marx, as forças produtivas são humanas (do ser humano) e para o ser humano, para o indivíduo. A ciência como força produtiva (assim também a riqueza, como já tinha sido mostrado nos Manuscritos de 1844 e na Ideologia Alemã) é determinada pelo desenvolvimento dessas forças e corresponde ao aparecimento de um grande número de externalizações, uma possibilidade maior de apropriar a natureza. Inclusive quando adquire uma forma ambígua, o florescimento do ser humano é possível; é o momento em que, no desenvolvimento da classe dominante, os indivíduos podem encontrar um modelo de uma vida plena. Para Marx, o modo de produção capitalista, impulsionando o desenvolvimento das forças produtivas, torna possível uma autonomização libertadora do indivíduo. Este é seu aspecto revolucionário mais importante.
“o máximo desenvolvimento dessa base (a flor em que ela transforma a si mesma; mas é sempre essa base, essa planta como flor; consequentemente, murcha depois da floração e como consequência da floração) é o ponto em que ele é enquanto tal acabado, desenvolvido, numa forma compatível com o máximo desenvolvimento das forças de produção e portanto também ao mais rico desenvolvimento dos indivíduos. A partir deste ponto, o desenvolvimento aparece como declínio, e o novo desenvolvimento começa de uma nova base.”6
Há declínio porque o desenvolvimento dos indivíduos é bloqueado. Não é possível usar esta sentença para defender a teoria do declínio do modo de produção capitalista 7 . Antes, porém, ela deve significar que o declínio começou, não no início deste século, mas, no mínimo, na metade do século XIX; ou então deve ser demonstrado que o declínio dos indivíduos é simultâneo ao declínio do capital, impossibilitando sua observação. Entretanto, o próprio Marx explicou, repetidamente, que o desenvolvimento do capital foi acompanhado pela destruição dos seres humanos e da natureza.
Quando foi que o desenvolvimento das forças produtivas acompanhou o desenvolvimento dos indivíduos, em diferentes sociedades? Quando o modo de produção capitalista foi revolucionário para si mesmo e para os seres humanos? As forças produtivas avançam continuamente, apesar dos momentos em que os indivíduos declinam? Marx disse: “...a partir deste ponto, o desenvolvimento aparece como declínio...”. As forças produtivas estagnam? O modo de produção capitalista declina? 8
O restante da digressão de Marx confirma que o declínio se refere aos seres humanos. Os indivíduos florescem quando as forças produtivas permitem que eles se desenvolvam, quando sua evolução acompanha a evolução delas. Mediante uma comparação com o período pré-capitalista, Marx mostra que o capital não é hostil à riqueza mas, pelo contrário, impulsiona sua produção. Deste modo, ele impulsiona o desenvolvimento das forças produtivas. Anteriormente, o desenvolvimento dos seres humanos, de sua comunidade, era oposto ao desenvolvimento da riqueza; agora, há uma espécie de simbiose entre eles. Para isso acontecer, foi necessária uma determinada mutação: o capital teve que destruir o caráter limitado do indivíduo; este é outro aspecto de seu caráter revolucionário.
“Já dissemos que a propriedade nas condições de produção foi posta como idêntica à uma forma de comunidade [gemeinwesen] definida e limitada, e portanto do indivíduo com as características – desenvolvimento e características limitados de suas forças produtivas – exigidas por essa comunidade [gemeinwesen]. Esta pressuposição era, por sua vez, o resultado de um limitado estágio histórico do desenvolvimento das forças produtivas, da riqueza bem como do modo de criá-la. O propósito da comunidade [gemeinwesen] e do indivíduo – tanto quanto a condição da produção – é a reprodução dessas específicas condições de produção e dos indivíduos, tanto isoladamente quanto em seus agrupamentos e relações sociais – como suportes vivos dessas condições. O capital põe a produção de riqueza enquanto tal e, conseqüentemente, o desenvolvimento universal das forças produtivas, a constante destruição de seus pressupostos como pressuposto de sua reprodução. O valor [de troca] não exclui nenhum valor de uso, isto é, não exige como condição absoluta nenhum tipo particular de consumo etc., de troca etc. E, do mesmo modo, cada grau de desenvolvimento das forças sociais de produção, de troca, de conhecimento etc., aparece-lhe somente como um obstáculo que ele procura superar.”9
Esta passagem tem conseqüências notáveis. Não há referência ao proletariado; é o papel revolucionário do capital destruir todas as suas pressuposições. Marx já tinha dito isto, de uma maneira ainda mais impressionante:
“É destruindo tudo isso, revolucionarizando constantemente, ultrapassando todas as barreiras ao desenvolvimento das forças produtivas, à expansão das necessidades, ao desenvolvimento diversificado da produção, à exploração e à troca das forças naturais e mentais.” 10
Temos que fazer uma nova abordagem da maneira como Marx situou o proletariado no contexto da contínua revolucionarização efetuada pelo modo de produção capitalista. De imediato, evidencia-se que o modo de produção capitalista é revolucionário com relação à destruição das antigas relações sociais, e que o proletariado é definido como revolucionário com relação ao capital. Mas é aí que o problema começa: o capitalismo é revolucionário porque desenvolve as forças produtivas; o proletariado não pode ser revolucionário se, após sua revolução, desenvolve ou permite um novo desenvolvimento das forças produtivas. Como distinguir, efetivamente, o papel revolucionário de um e o do outro? Como justificar a destruição do modo de produção capitalista pelo proletariado? Isto não pode ser feito num contexto estritamente econômico. Marx nunca se defrontou com este problema, porque ele estava absolutamente certo de que o proletariado se levantaria contra o capital. Mas devemos enfrentar este problema, se quisermos sair do impasse criado pela aceitação da teoria segundo a qual as relações de produção entram em conflito com o desenvolvimento das forças produtivas (forças cujo postulado era existir para os seres humanos, já que, se fosse assim, por que os seres humanos se rebelariam?). Se as forças produtivas não existem para os seres humanos, mas para o capital, e se elas conflitam com as relações de produção, então isto significa que essas relações não fornecem a estrutura apropriada ao modo de produção capitalista, e que, portanto, pode haver uma revolução que não é para os seres humanos (por exemplo, o fenômeno geral que é chamado de fascismo). Conseqüentemente, o capital escapa. Na passagem que estamos examinando, Marx faz uma extraordinária afirmação sobre a dominação do capital:
“Sua própria pressuposição – o valor – é posta como produto, e não como uma arrogante pressuposição que flutua sobre a produção.” 11
O capital domina o valor. Dado que o trabalho é a substância do valor, a conclusão é que o capital domina os seres humanos [enquanto trabalhadores]. Marx só indiretamente se refere à pressuposição também como um produto: o trabalho assalariado, isto é, a existência da força de trabalho que torna a valorização possível:
“A barreira ao capital está em que todo esse desenvolvimento ocorre de um modo contraditório, e a realização das forças produtivas, da riqueza geral etc., do conhecimento etc., aparece de tal maneira que o trabalhador individual se aliena [sich entaussert]; relaciona-se com as condições extraídas dele por seu trabalho como condições que não lhe são próprias, mas de uma riqueza alienada e de sua própria pobreza.” 12
De que maneira isso pode limitar o capital? É possível supor que o subconsumo dos trabalhadores causa as crises, e a crise final. Esta é uma possibilidade; no mínimo, é assim que acontece em certas épocas. Marx sempre se recusou a fundamentar uma teoria da crise a partir disso, o que não impediu que ele mencionasse o subconsumo. Para Marx, o capital tem uma barreira porque espolia o trabalhador individual. Devemos ter em mente que Marx está argumentando contra os apologistas do capital, afirmando que o modo de produção capitalista não é eterno e não produz a emancipação humana. No curso dessa análise, ele aponta a possibilidade de o capital se livrar das condições humanas. Percebemos que não são as forças produtivas que se tornam autônomas, mas o capital, posto que, num determinado momento, as forças produtivas se tornam “uma barreira que ele procura superar”. Isso ocorre assim: as forças produtivas não são mais forças dos seres humanos, mas do capital e para o capital 13 .
O despojamento (alienação) do trabalhador individual não pode ser uma barreira para o capital, a menos que Marx use o termo barreira no sentido de uma debilidade que faria o capitalismo inferior aos outros modos de produção, particularmente quando contrasta essa debilidade ao enorme desenvolvimento das forças produtivas que ele impulsiona. A obra de Marx é ambígua quanto ao sujeito a que as forças produtivas se referem: elas são para os seres humanos ou para o capital? Esta ambigüidade permite duas interpretações de Marx. A interpretação ética (veja principalmente em Rubel) enfatiza a extensão em que Marx denuncia a destruição do ser humano pelo capital, e insiste vigorosamente que o modo de produção capitalista só pode ser um estágio transitório. A interpretação de Althusser e sua escola é a de que Marx não consegue eliminar o ser humano de sua análise econômica, o que reflete sua incapacidade de abandonar o discurso ideológico. Daí o problema de Althusser: situar corretamente o corte epistemológico.
É possível sair dessa ambigüidade. Se ultrapassar essa barreira, o capital alcançará a total autonomia. Eis porque Marx afirma que o capital deve abolir a si mesmo. Esta abolição decorre do fato de que ele não pode desenvolver as forças produtivas para os seres humanos, embora torne possível um desenvolvimento universal e variado que só pode ser realizado por um modo de produção superior. Há aqui uma contradição: o capital foge à compreensão dos seres humanos, mas ele deve perecer porque não pode desenvolver as forças produtivas humanas. Isto também contradiz a assertiva de Marx, da destruição dos seres humanos pelo capital. Como podem se rebelar os seres humanos destruídos? É possível, ignorando tais contradições, considerar Marx um profeta do declínio do capital, mas isso dificultaria a compreensão de sua obra e da situação atual. O final da digressão de Marx esclarece essas contradições.
“Mas essa forma antitética é, ela mesma, transitória, e produz as condições reais de sua própria supressão. Resultado: o tendencial, geral e potencial desenvolvimento das forças de produção – da riqueza enquanto tal – como uma base; do mesmo modo, a universalidade da troca e, portanto, o mercado mundial como base. A base como possibilidade de desenvolvimento universal do indivíduo, e o desenvolvimento real dos indivíduos a partir dessa base como constante suspensão de sua barreira, reconhecida como tal, não como um limite sagrado. Não uma universalidade ideal ou imaginária do indivíduo, mas a universalidade de suas relações reais e ideais. Portanto, também, a tomada de sua própria história enquanto processo e o reconhecimento da natureza (presente do mesmo modo como um poder prático sobre a natureza) como seu corpo real. O desenvolvimento é posto e reconhecido como a pressuposição do mesmo. Para isso, no entanto, é sobretudo necessário que o pleno desenvolvimento das forças de produção tenha se tornado a condição de produção; e não que condições de produção específicas sejam postas como um limite ao desenvolvimento das forças produtivas.” 14
Se esse processo deve concernir aos indivíduos, o capital deve ser destruído e as forças produtivas devem ser para os seres humanos. No artigo “Le KAPD et le mouvement proletarien” 15 , nos referimos a esta passagem para indicar que o ser humano é uma possibilidade, dando fundamento à afirmação: a revolução deve ser humana. Isto não é de modo algum um discurso sobre o ser humano concebido como invariante em cada atributo, uma concepção que seria uma mera reafirmação da imutabilidade da natureza humana. Mas isso ainda é insuficiente, visto que o desenvolvimento das forças produtivas, que, de acordo com Marx, ocorrerá num modo de produção superior, é precisamente o mesmo desenvolvimento efetuado atualmente pelo capital. O limite de Marx é que ele concebe o comunismo como um novo modo de produção, no qual as forças produtivas florescem. Estas forças são indubitavelmente importantes, porém sua existência num certo nível não define adequadamente o comunismo.
Para Marx, o capital supera suas contradições assimilando-as e mistificando a realidade. Só aparentemente ele supera sua natureza limitada, sua base estreita que é a troca de capital-dinheiro por força de trabalho. Inevitavelmente, o capital deve entrar em conflito com esta pressuposição; assim Marx fala da oposição entre apropriação privada e socialização da produção. Apropriação privada de que? De mais-valia, que pressupõe o proletário, e conseqüentemente a relação assalariada. Mas todo o desenvolvimento do capital (e as explicações de Marx são uma valiosa ajuda para compreender isso) torna a mistificação efetiva, fazendo o capital independente dos seres humanos, capacitando-o assim a evitar o conflito com sua pressuposição. Pode-se dizer que, apesar disso, o conflito persiste, como resultado do processo total: socialização. Isto é verdade. Mas a socialização da produção e da atividade humana, o desenvolvimento universal das forças produtivas e conseqüentemente a destruição do caráter limitado do ser humano – tudo isso era somente um fundamento possívelpara o comunismo, não põe o comunismo automaticamente. Além disso, a ação do capital tende constantemente a destruir o comunismo, ou pelo menos a inibir sua emergência e realização. Para transformar esta possibilidade em realidade, é necessária a intervenção humana. Porém, o próprio Marx mostrou que a produção capitalista integra o proletariado. Como a destruição dos seres humanos e da natureza deixaria de ter repercussões na capacidade humana para resistir ao capital e, a fortiori, se rebelar?
Alguns pensarão que estamos atribuindo a Marx uma posição que nos é conveniente. Citaremos uma passagem extraordinária:
“O que diferencia precisamente o capital da relação senhor-servo é que o trabalhador confronta [o capital] como consumidor e possuidor de valores de troca, e que, na forma de possuidor de dinheiro, na forma de dinheiro, ele se torna um simples centro de circulação – um de seus infinitamente múltiplos centros, nos quais sua especificidade como trabalhador se extinguiu.” 16
Uma das maneiras de reabsorver a força revolucionária do proletariado tem sido exaltar seu aspecto de consumidor, capturando-o assim na teia do capital. O proletariado deixa de ser uma classe que nega. Então, a composição da classe operária se dissolve no corpo social. Marx antecipa os gurus da “sociedade de consumo” e, como em outros casos, explica um fenômeno que só seria observado depois e, então, dissimuladamente, só nos termos do nome que se deu a ele.
A observação precedente não leva a uma concepção fatalista (desta vez, negativa) do tipo: independentemente do que fizermos, não há saída; é tarde demais; ou qualquer outro derrotismo insensato que geraria um mórbido reformismo. Antes de tudo, temos que extrair a lição. O capital se desvencilha dos obstáculos naturais e humanos. Os seres humanos têm sido domesticados: esta é sua decadência. A solução revolucionária não pode ser encontrada no contexto da dialética das forças produtivas, no qual o indivíduo seria um elemento da contradição. As atuais análises científicas do capital proclamam uma completa indiferença com os seres humanos, que, para alguns, nada mais são do que um resíduo sem consistência. Isto significa que o discurso da ciência é o discurso do capital, ou que a ciência é possível somente depois da destruição dos seres humanos; ela é um discurso sobre a patologia do ser humano. Portanto, é insensato fundar a esperança de libertação na ciência. A posição mais estúpida de todas é aquela que, semelhante a de Althusser, não pode fazer sua própria ruptura, liquidar sua “arqueologia”, visto que permanece fiel a um proletariado – um proletariado que nessa concepção é meramente um objeto do capital, um elemento da estrutura. Mas este incapaz e destruído ser humano é o indivíduo produzido pelas sociedades de classes. E sobre isto concordamos: o ser humano está morto. A única possibilidade de outro ser humano aparecer está na luta contra nossa domesticação, nossa emergência dela. Humanismo e cientificismo(os seguidores da “ciência ética” a la Monod são os mais absolutos escravos do capital) são duas expressões da domesticação da humanidade. Todos aqueles que nutrem a ilusão da decadência do capital revivem as antigas concepções humanistas ou originam novos mitos científicos. Eles permanecem impermeáveis ao fenômeno revolucionário que está acontecendo através do nosso mundo.
Até agora, todos os lados tem argumentado como se os seres humanos permanecessem inalterados nas diversas sociedades de classes e sob a dominação do capital. É por isso que o papel do contexto social foi enfatizado (o homem, que era fundamentalmente bom, seria modificado positivamente ou negativamente pelo contexto social) pelos filósofos materialistas do século XVIII, enquanto que os marxistas enfatizavam o papel de um ambiente condicionado pelo desenvolvimento das forças produtivas. A mudança não era negada e, depois de Marx, repetia-se que a história é uma contínua transformação da natureza humana. Não obstante, sustentava-se explícita ou implicitamente que um elemento irredutível permitiria aos seres humanos se revoltar contra a opressão do capital. E o capitalismo era descrito de forma maniqueísta: de um lado, o pólo positivo, o proletariado, a classe libertadora; de outro, o pólo negativo, o capital. O capital, afirmado como necessário e como tendo revolucionarizado a vida dos seres humanos, era descrito como um mal absoluto em relação ao bem, o proletariado. No mínimo, o fenômeno que hoje emerge não desfaz a avaliação negativa do capital, mas nos força a generaliza-la à classe que outrora o antagonizou e era portadora de todos os elementos positivos do desenvolvimento humano, e à própria humanidade. Este fenômeno é a recomposição de uma comunidade e dos seres humanos pelo capital, refletindo a comunidade como um espelho. A teoria da visão do espelho só pode surgir quando o ser humano se tornou uma tautologia, um reflexo do capital. No mundo do despotismo do capital (é assim que a sociedade aparece hoje), não se pode distinguir nem o bem e nem o mal. Tudo pode ser condenado. A forças negadoras só podem emergir fora do capital. Dado que o capital absorveu todas as antigas contradições, o movimento revolucionário deve rejeitar a totalidade do produto do desenvolvimento da sociedade de classes. Este é o elemento crucial de sua luta contra a domesticação, contra a decadência da espécie humana. Este é o momento essencial do processo de formação de revolucionários, absolutamente necessário para produzir a revolução.
Jacques Camatte - Maio, 1973
[Nota do grupo Autonomia: Este ensaio foi originalmente publicado em Invariance (Anne 6, série II No. 3, 1973) com o título “DECLIN DU MODE DE PRODUCTION CAPITALISTE OU DECLIN DE L’HUMANITÉ ?”
Posteriormente, foi traduzido para o inglês por Fredy Perlman, assistido por Camatte, e publicado por Black & Red (Detroit) em 1973. Foi reimpresso em Autonomedia anthology Against Domestication, em 1995.
O texto que serviu de base para esta tradução pode ser encontrado na Internet: www.geocities.com/~johngray/camwan06.htm]
- 1Marx, Grundrisse, Londres : Pelican, 1973, p. 539.
- 2Ibid., p. 540.
- 3Ibid.
- 4Ibid.
- 5 Ibid., pp. 540-541.
- 6Ibid., p. 541.
- 7Como é feito por Victor, em Revolution Internationale No. 7, série 1, p. 4 do artigo “Volontarisme et confusion”.
- 8Vários autores têm falado de estagnação e declínio da produção entre as duas guerras mundiais. Bordiga sempre rejeitou a teoria do declínio do modo de produção capitalista, afirmando que é uma deformação gradualista da teoria de Marx (ver “Le renversement de la praxis dans la théorie marxista”, em Invariance No 4, série 1).
- 9Marx, Grundrisse, p. 541.
- 10Ibid., p. 410.
- 11Ibid., P. 541.
- 12Ibid.
- 13É isso que Marx demonstra, quando analisa o capital fixo nos Grundisse e também no livro I do Capital, “onde ele analisa a transformação do processo de trabalho em processo de produção do capital” (ver também Un chapitre inédit du Capital, paris: Ed. 10/18, 1971).
- 14Marx, Grundrisse, pp. 541-542.
- 15Invariance, Série II, No. 1.
- 16Marx, Grundrisse, pp. 420-421.
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