A luta em França não destruiu o poder político e militar da sociedade capitalista. Mas não demonstrou que isso seria impossível: ‒ Numa manifestação em Paris, os estudantes sabiam que não se podiam defender da carga policial, mas alguns estudantes não fugiram da polícia; começaram a construir uma barricada. Foi aquilo a que o Movimento 22 de Março chamou acção exemplar: um grande número de estudantes ganhou coragem, não fugiu da polícia e começou a construir barricadas.
Tudo Pode Acontecer
«Sejamos realistas, exijamos o impossível!»
Este slogan, criado por revolucionários no Maio de 68 em França, desafia o senso comum, especialmente o «senso comum» da propaganda corporativo-militar americana. O que se passou em Maio desafia também o «senso comum» oficial americano. Com efeito, em relação ao «senso comum» americano, muito do que acontece hoje em dia no mundo é impossível. Não pode acontecer. Se de facto acontece, então o «senso comum» oficial é absurdo: é um conjunto de mitos e fantasias. Mas como pode o senso comum ser absurdo? Isso é impossível.
Para demonstrar que tudo é possível, este ensaio irá comparar alguns dos mitos com alguns dos acontecimentos. Irá depois tentar descobrir por que razão alguns mitos são possíveis, ou seja, irá explorar a «base científica» dos mitos. Se for bem sucedido, este ensaio irá depois demonstrar que tudo é possível: é mesmo possível que uma população transforme mitos em senso comum e é possível que os criadores de mitos se convençam da realidade dos seus próprios mitos face à própria realidade.
«Senso Comum» Americano
− É impossível que as pessoas governem a sua própria vida; é por isso que não têm a capacidade de o fazer. As pessoas não têm poder porque não têm a capacidade nem o desejo de controlar as condições materiais e sociais em que vivem e decidir sobre elas.
− As pessoas querem apenas ter poder e privilégios umas sobre as outras. Seria impossível, por exemplo, os estudantes universitários lutarem contra a instituição que lhes assegura uma posição privilegiada. Esses estudantes apenas estudam para ter boas notas, porque com boas notas podem obter empregos bem pagos, o que significa a capacidade de dirigirem e manipularem outras pessoas e a capacidade de consumirem mais bens do que as outras pessoas. Se a aprendizagem não fosse recompensada com boas notas, bons salários, poder sobre os outros e montes de bens de consumo, ninguém quereria aprender; não haveria motivação para aprender.
− Mesmo que os estudantes, os trabalhadores e os agricultores quisessem algo diferente, a verdade é que se encontram claramente satisfeitos com aquilo que estão a fazer, de outra forma não o fariam.
− Seja como for, aqueles que não se encontram satisfeitos podem expressar livremente a sua insatisfação ao comprarem e ao votarem: não têm de comprar as coisas de que não gostam e não têm de votar nos candidatos de que não gostam. Para eles é impossível mudarem a sua situação de qualquer outra forma.
− Mesmo que algumas pessoas tenham tentado mudar a situação de uma outra forma, seria impossível unirem-se; iriam apenas lutar umas contra as outras, porque os trabalhadores brancos são racistas, os nacionalistas negros não gostam de brancos, as feministas são contra todos os homens e os estudantes têm os seus próprios problemas específicos.
− Mesmo que se unissem, seria claramente impossível eles destru- írem o Estado e a força policial e militar de uma poderosa sociedade industrial como os Estados Unidos.
Os Acontecimentos
Milhões de estudantes por todo o mundo – em Tóquio, Turim, Belgrado, Berkeley, Berlim, Roma, Rio de Janeiro, Varsóvia, Nova Iorque, Paris – lutam pelo poder de controlar as condições sociais e materiais em que vivem e decidir sobre elas. Não são travados pela falta de desejo nem pela falta de capacidade; são travados pela polícia. Talvez se inspirem noutros lutadores que se organizaram contra a polícia: os cubanos, os vietnamitas...
Em Turim e Paris, por exemplo, os estudantes ocuparam as suas universidades e formaram assembleias-gerais em que todos os estudantes tomaram todas as decisões. Por outras palavras: os estudantes começaram a gerir as suas próprias universidades. Não para terem melhores notas, porque acabaram com os testes. Não para terem empregos com salários mais altos e mais privilégios, porque começaram a discutir a abolição dos privilégios e dos empregos com salários altos; começaram a discutir o fim de uma sociedade em que tinham de se alienar. E nesse ponto, por vezes pela primeira vez nas suas vidas, começaram a aprender.
Em Paris, jovens trabalhadores, inspirados pelo exemplo dos estudantes, ocuparam uma fábrica de aviões e trancaram o director. Os exemplos multiplicaram-se. Outros trabalhadores começaram a ocupar as suas fábricas. Apesar do facto de durante toda a vida terem dependido de alguém que tomasse as decisões por eles, alguns trabalhadores criaram comités para discutirem a gestão da greve em conformidade com as suas próprias condições e não com as do sindicato, deixando todos os trabalhadores decidirem – e alguns trabalhadores criaram comissões para discutirem a autogestão das fábricas. Uma ideia em que normalmente não faz sentido pensar, porque é absurda e impossível, tinha-se tornado subitamente possível e passou a ser interessante, desafiante, fascinante. Os trabalhadores começaram mesmo a falar da produção de bens simplesmente devido ao facto de as pessoas necessitarem deles. Estes trabalhadores sabiam que era «falso pensar que a população é contra serviços públicos gratuitos, que os agricultores são a favor de um circuito comercial cheio de intermediários, que as pessoas mal pagas estão satisfeitas, que os “gestores” estão orgulhosos dos seus privilégios [...]»1 . Alguns trabalhadores da indústria electrónica entregaram equipamento gratuitamente aos manifestantes que se protegiam da polícia; alguns agricultores entregaram comida gratuitamente aos trabalhadores em greve; e alguns trabalhadores da indústria do armamento falaram em distribuir armas a todos os trabalhadores para que estes se pudessem proteger do exército nacional e da polícia.
Apesar de toda uma vida de propaganda de mercado sobre o quão «satisfeitos» os trabalhadores estão com os carros, casas e outros objectos que recebem em troca da sua energia viva, os trabalhadores expressaram a sua «satisfação» através de uma greve geral que paralisou toda a indústria francesa durante mais de um mês. Depois de terem sido ensinados durante toda a vida a «respeitar a lei e a ordem», os trabalhadores infringiram todas as leis ocupando fábricas que não lhes «pertenciam», porque, como rapidamente ficaram a saber, os polícias existem para garantir que as fábricas continuem a «pertencer» aos proprietários capitalistas. Os trabalhadores ficaram a saber que «a lei e a ordem» é aquilo que os impede de gerir a sua própria actividade produtiva, e que a «lei e a ordem» é aquilo que têm de destruir para poderem governar a sua própria sociedade. Os polícias apareceram logo que os trabalhadores agiram sobre a sua insatisfação. Talvez os trabalhadores sempre tenham sabido que os policias se encontram no pano de fundo; talvez seja por isso que os trabalhadores pareciam tão «satisfeitos». Com uma arma apontada às costas, quase todas as pessoas inteligentes se sentiriam «satisfeitas» ficando de mãos ao ar.
Em Paris e noutros lugares, os trabalhadores começaram a aceitar o convite dos estudantes para irem aos auditórios da Universidade de Paris (na Sorbonne, em Censier, na Halle-aux-vins, nas Belas-Artes, etc.) para falar sobre a abolição das relações monetárias e a transformação das fábricas em serviços sociais geridos por quem faz e por quem usa os produtos. Os trabalhadores começaram a expressar-se. Foi então que os proprietários e os seus administradores ameaçaram com a guerra civil, e que uma enorme maquinaria policial e militar foi implementada para tornar a ameaça real. Com essa flagrante exibição de «forças da lei e da ordem», o rei ficou momentaneamente nu: tornou-se visível para todos a ditadura repressiva da classe capitalista. Perderam-se assim quaisquer ilusões que as pessoas pudessem ter sobre a sua própria «soberania consumidora» ou «poder de voto», quaisquer fantasias que pudessem ter tido sobre a transformação da sociedade capitalista através da compra e do voto. Sabiam que o seu «poder de aquisição» e «poder de voto» significavam simplesmente servidão e consentimento em face de uma enorme violência. A revolta estudantil e a greve geral na França (como a revolta negra nos Estados Unidos, como a luta anti-imperialista em três continentes) tinham simplesmente forçado a violência latente a expor-se; e isso tornou possível que as pessoas avaliassem o inimigo.
Perante a violência do Estado capitalista, estudantes, trabalhadores franceses, trabalhadores estrangeiros, camponeses, os bem pagos e os mal pagos, ficaram a saber que interesses serviam ao policiarem- -se uns aos outros, temendo-se e odiando-se. Perante a violência crua do opressor comum, as divisões entre os oprimidos desapareceram: os estudantes deixaram de lutar por privilégios relativamente aos trabalhadores, juntando-se a estes; os trabalhadores franceses deixaram de lutar por privilégios relativamente aos trabalhadores estrangeiros, juntando-se a estes; os agricultores deixaram de lutar por uma isenção especial, juntando-se às lutas dos trabalhadores e dos estudantes. Juntos começaram a lutar contra um único sistema mundial que oprime e divide entre si os estudantes e os trabalhadores, os trabalhadores qualificados e os não qualificados, os trabalhadores franceses e os espanhóis, os trabalhadores negros e os brancos, os trabalhadores «nativos» e os trabalhadores «nacionais», os camponeses colonizados e toda a população «metropolitana».
A luta em França não destruiu o poder político e militar da sociedade capitalista. Mas não demonstrou que isso seria impossível:
‒ Numa manifestação em Paris, os estudantes sabiam que não se podiam defender da carga policial, mas alguns estudantes não fugiram da polícia; começaram a construir uma barricada. Foi aquilo a que o Movimento 22 de Março chamou «acção exemplar»: um grande nú- mero de estudantes ganhou coragem, não fugiu da polícia e começou a construir barricadas.
‒ Os estudantes sabiam que não podiam, por eles próprios, destruir o Estado e o seu aparelho repressivo, mas ainda assim ocuparam e começaram a gerir as universidades e nas ruas responderam ao gás lacrimogéneo lançado pela polícia com o lançamento de pedras da calçada. Essa também foi uma acção exemplar, porque num grande número de fábricas os trabalhadores ganharam coragem, ocuparam-nas e estavam preparados para as defender dos seus «proprietários».
‒ Os primeiros trabalhadores que ocuparam as suas fábricas para se apoderarem delas e começarem a geri-las sabiam que não podiam destruir o poder da classe capitalista sem que todos os trabalhadores se apoderassem das suas fábricas e as defendessem, destruindo o Estado e o seu poder repressivo; mas ainda assim ocuparam as fábricas. Essa também foi uma acção exemplar, mas estes trabalhadores não conseguiram comunicar esse exemplo aos restantes trabalhadores: o governo, a imprensa e os sindicatos disseram ao resto da população que os trabalhadores que ocupavam as fábricas estavam simplesmente a fazer uma greve tradicional para obterem do Estado e dos proprietários das fábricas salários mais altos e melhores condições laborais.
Impossível? Tudo isso aconteceu no espaço de duas semanas, no final de Maio. Os exemplos eram extremamente contagiosos. Terá alguém realmente a certeza de que os que produzem as armas, os trabalhadores, nomeadamente, ou mesmo os polícias e os soldados, que também são trabalhadores, estão imunes?
«Base Científica» do «Senso Comum»
O «cientista social» é alguém que é pago para defender os mitos desta sociedade. O seu mecanismo de defesa, na sua formulação mais simples, funciona mais ou menos desta forma: começa por presumir que a sociedade do seu espaço e tempo é a única forma possível de sociedade; e, posteriormente, conclui que qualquer outra forma de sociedade é impossível. Infelizmente, o «cientista social» raramente admite as suas suposições; normalmente afirma que não faz quaisquer suposições. E não se pode dizer que esteja a mentir completamente: em geral toma de tal modo as suas suposições como certas que nem se apercebe de que as faz.
O «cientista social» toma como certa a sociedade em que existe uma «divisão do trabalho» bastante desenvolvida, que inclui tanto uma separação das tarefas como uma separação («especialização») das pessoas. Nas tarefas incluem-se coisas tão úteis para a sociedade como produzir comida, roupa e habitação, e também coisas tão desnecessárias como lavar cérebros, manipular e matar pessoas. Para começar, o «cientista» define todas essas actividades como úteis, porque a sua sociedade não poderia funcionar sem elas. De seguida, presume que essas tarefas só podem ser realizadas se uma dada pessoa se encontrar presa a uma dada tarefa para toda a vida, ou seja, se as tarefas especializadas são efectuadas por pessoas especializadas. Ele não presume isso a respeito de tudo. Por exemplo, comer e dormir são actividades necessárias; a sociedade desmoronar-se-ia se elas não se efectuassem. Contudo, o próprio «cientista social» não pensa que uma mão-cheia de pessoas deva dedicar-se a comer tudo enquanto as outras nada comem, ou que uma mão-cheia de pessoas deva dedicar-se a dormir o sono todo enquanto as outras nada dormem. Ele presume a necessidade de uma especialização só nas actividades que são especializadas na sua sociedade particular. Na sociedade corporativo-militar, algumas pessoas têm todo o poder político e as outras não têm nenhum; um punhado de pessoas decide o que se produz e as outras consomem o que é produzido; um punhado de pessoas decide que tipo de habitações se devem construir e as outras vivem nelas; um punhado de pessoas decide o que deve ser ensinado nas salas de aula e as outras têm de engolir isso; um punhado de pessoas cria e as outras ficam passivas; um punhado de pessoas realiza e as outras são espectadoras. Em suma, um punhado de pessoas exerce todo o poder sobre uma determinada actividade e as restantes pessoas não têm poder sobre isso, mesmo quando essa actividade as afecta directamente. E, como é óbvio, as pessoas que não têm poder sobre uma actividade específica não sabem o que fazer com esse poder; nem sequer sabem o que fazer com ele enquanto não o detêm. Daí que o «cientista» conclua que as pessoas não têm a capacidade nem o desejo de deter esse poder, designadamente para controlar as condições sociais e materiais em que vivem e decidir sobre elas. De uma forma simples, o raciocínio é este: as pessoas não têm esse poder nesta sociedade e esta sociedade é a única forma de sociedade; daí que seja impossível as pessoas terem esse poder. E de uma forma ainda mais simples: as pessoas não podem ter esse poder porque não o têm.
A lógica não é muito ensinada nas escolas americanas e este raciocí- nio parece impressionante quando é acompanhado por um enorme aparelho estatístico e desenhos geométricos extremamente complicados. Se alguém criticar insistindo em chamar ao raciocínio simplista e circular, vê-se «apagado» logo que o «cientista» apresenta números calculados em computadores inacessíveis ao público e é posto de parte logo que o «cientista» começa a «comunicar» numa linguagem completamente esotérica cheia de falácias lógicas apenas compreensível para os seus «colegas cientistas».
Conclusões mitológicas baseadas em suposições mitológicas são «provadas» através de estatísticas e gráficos; muita da «ciência social aplicada» consiste em ensinar a pessoas jovens que tipo de «dados» se devem recolher para que obtenham as suas conclusões e muita da «teoria» consiste em ajustar esses dados às fórmulas pré-estabelecidas. Por exemplo, através de numerosas técnicas pode-se «provar» que os trabalhadores preferem trabalhos bem remunerados a trabalhos aprazíveis ou significativos, que as pessoas «gostam» do que ouvem na rádio ou vêem na televisão, que as pessoas são «membros» de um ou outro culto judaico-cristão, que quase toda a gente vota nos democratas ou nos republicanos. Os estudantes são levados a aprender um conjunto de métodos para a obtenção de dados, um segundo conjunto para os organizarem, um terceiro para os apresentarem e «teorias» para os interpretarem. O conteúdo apologético dos «dados» é encoberto pela sua sofisticação estatística. Numa sociedade em que comer depende de sermos pagos e em que fazer um «trabalho significativo» poderá significar não sermos pagos, a preferência do trabalhador por um trabalho bem remunerado em detrimento de trabalhos significativos poderá significar simplesmente que ele prefere comer a não comer. Numa sociedade onde as pessoas não criam nem controlam aquilo que ouvem na rádio ou vêem na televisão, não existe outra escolha senão «gostar» daquilo que ouvem e vêem, ou então desligar o raio do aparelho. As pessoas cientes de que os seus amigos olhariam para elas de forma estranha se fossem ateias, preferem frequentar uma ou outra Igreja, e quase toda a gente ciente de que se encontra numa sociedade onde perderia todos os seus amigos, tal como o seu trabalho, se fosse socialista ou anarquista, obviamente prefere ser democrata ou republicano. Contudo, esses «dados» servem de base para a concepção que o «cientista social» tem das possibilidades e impossibilidades das pessoas e até mesmo da sua «natureza humana».
As entrevistas, inquéritos e demonstrações estatísticas sobre as filiações religiosas das pessoas, o comportamento eleitoral e as preferências de emprego, reduzem as pessoas a dados monótonos. No contexto desta «ciência», as pessoas são coisas, são objectos com inúmeras qualidades – e, surpreendentemente, cada uma dessas qualidades é servida por uma ou outra instituição da sociedade corporativo-militar. Acontece que os «gostos materiais» das pessoas são «satisfeitos» por corporações, que os «anseios físicos» são «satisfeitos» pelos militares, que as suas «tendências espirituais» são «satisfeitas» por cultos e que as suas «preferências políticas» são «satisfeitas» pelo Partido Republicano ou pelo Partido Democrata. Por outras palavras, tudo aquilo que o militarismo-corporativo americano significa, serve às pessoas perfeitamente.
Tudo é classificado, excepto o facto de o trabalhador ser usado como ferramenta, de vender o seu tempo de vida e a sua capacidade criativa em troca de objectos, de não decidir o que faz, nem para quem, nem porquê.
O «cientista social» afirma ser empírico e objectivo; afirma não fazer juízos de valor. Mas, ao reduzir a pessoa a um conjunto de gostos, desejos e preferências a que ela se encontra restringida na sociedade capitalista, o «cientista objectivo» faz a afirmação bizarra de que esse conjunto constitui aquilo que o trabalhador é; e faz o fantástico juízo de valor de que o trabalhador não pode ser outra coisa senão aquilo que é na sociedade capitalista. Segundo as «leis do comportamento humano» desta «ciência», a solidariedade dos estudantes com os trabalhadores, a ocupação de fábricas pelos trabalhadores, o desejo dos trabalhadores de gerirem a sua própria produção, distribuição e coordenação, são tudo coisas impossíveis. Porquê? Porque essas coisas são impossíveis na sociedade capitalista e porque para esses «cientistas», que não fazem juízos de valor, as sociedades existentes são as únicas sociedades possíveis e a sociedade corporativo-militar é a melhor de todas as sociedades possíveis.
Segundo os juízos de valor destes especialistas («que não fazem juízos de valor»), toda a gente na sociedade americana deve estar satisfeita. Para estes «cientistas» sem juízos de valor, a insatisfação é um «juízo de valor» importado do estrangeiro, pois como poderia alguém não estar satisfeito no melhor dos mundos possíveis? A pessoa que não reconhece este mundo como o melhor dos mundos possíveis, tem com certeza «ideias estrangeiras»; se não está satisfeita com ele, deve ser desequilibrada; se a sua insatisfação a leva a desejar agir, deve ser perigosa; e para a constante satisfação do especialista, deve ser despedida do seu trabalho, passar fome, se possível, e ser morta, se necessário.
Para o cientista social americano, a «natureza humana» é aquilo que as pessoas fazem na América corporativo-militar: algumas tomam decisões e o resto cumpre ordens; algumas pensam e as outras executam; algumas compram o trabalho de outras pessoas e as outras vendem o seu próprio trabalho; algumas investem e as outras consomem; algumas são sádicas e as outras masoquistas; algumas têm o desejo de matar e outras têm o desejo de morrer. O «cientista» faz passar tudo isso como «troca», como «reciprocidade», como uma «divisão do trabalho» em que as pessoas se encontram tão divididas quanto as tarefas. Para o «cientista social» é tudo tão natural que pensa que não faz quaisquer juízos de valor ao considerar que tudo é normal. As corporações e os militares até lhe dão bolsas para ele demonstrar que tem sido sempre assim: bolsas para demonstrar que esta «natureza humana» se encontra alojada no início da História e nas profundezas do inconsciente. (Os psicólogos americanos – especialmente os «behavioristas» – dão a ambígua «contribuição» de demonstrar que os animais também têm uma «natureza humana» – os psicólogos levam os ratos à loucura em situações semelhantes à de uma guerra que os próprios psicólogos ajudam a planear, demonstrando depois que os ratos também têm desejo de matar, que têm tendências masoquistas...).
Dada esta concepção da «natureza humana», a força do sistema corporativo-militar não reside na potencial violência do seu exército e polícia, mas no facto de o sistema corporativo-militar ser compatível com a natureza humana.
Segundo aquilo que o «cientista social» americano considera normal, quando os estudantes e os trabalhadores começaram a lutar em França para acabar com as tais «reciprocidade», «troca» e «divisão do trabalho», não estavam a lutar contra a polícia capitalista, mas contra a «natureza humana». E uma vez que isso é obviamente impossível, os acontecimentos que tiveram lugar em Maio de 1968 não tiveram lugar.
O «Senso Comum» Explode
A questão de o que é possível não pode ser respondida em termos de o que é. O facto de a «natureza humana» ser hierárquica numa sociedade hierárquica não significa que uma divisão hierárquica das pessoas entre diferentes tarefas seja necessária para a vida social.
Não são as instituições capitalistas que satisfazem as necessidades humanas. São os trabalhadores da sociedade capitalista que se moldam para se ajustarem às instituições da sociedade capitalista.
Quando algumas pessoas compram trabalho e outras pessoas o vendem, cada uma luta por se vender pelo preço mais alto, cada uma luta para convencer o comprador e para se convencer a si mesma de que a pessoa ao lado vale menos.
Numa sociedade assim, os estudantes que se preparam para se vender como directores e manipuladores bem remunerados devem dizer aos seus compradores e a si mesmos que, como «profissionais», são superiores aos trabalhadores manuais não universitários.
Numa sociedade assim, os trabalhadores WASP2 que se vendem por altos salários e por trabalhos mais fáceis dizem freneticamente a si mesmos e aos seus compradores que são melhores, trabalham mais e merecem mais do que os estrangeiros, católicos, judeus, porto-riquenhos, mexicanos e negros; os «profissionais» negros dizem a si mesmos que são melhores que os trabalhadores manuais negros; todos os brancos dizem a si mesmos que são melhores que todos os negros; e todos os americanos dizem a si mesmos que são melhores que os «indígenas» sul-americanos, asiáticos ou africanos. E como os WASP conseguem sistematicamente vender-se ao melhor preço, todos os que estão abaixo deles tentam tornar-se o mais WASP possível. (Diga-se de passagem que os WASP são tradicionalmente a classe dominante. Se os anões conseguissem sistematicamente os melhores preços, todos os que estão abaixo deles tentariam ser anões).
Para manter os seus privilégios relativos, cada grupo tenta fazer com que os grupos abaixo dele não façam abalar a estrutura.
Daí que, em tempos de «paz», o sistema seja amplamente auto-policiado: os colonizados reprimem os colonizados, os negros reprimem os negros, os brancos reprimem os brancos, os negros e os colonizados. Assim, a população trabalhadora reprime-se a si mesma, a «lei e a ordem» é mantida e a classe governante livra-se de mais gastos com o aparelho repressivo.
Para o «cientista social» e para o propagandista profissional, esta «divisão do trabalho» é tão natural quanto a própria «natureza humana». Para o «cientista social», a unidade entre os diferentes «interesses de grupo» é tão inconcebível como a própria revolução.
Ao afirmar como «cientificamente provado» que os diferentes grupos não se podem unir numa luta anticapitalista, o especialista faz todos os possíveis para impedir essa unidade e os seus colegas concebem armas para o caso de as pessoas se unirem efectivamente contra o sistema capitalista.
Porque por vezes toda a estrutura se desmorona.
O mesmo especialista que define o sistema capitalista como compatível com a «natureza humana», com os gostos, vontades e desejos das pessoas, constrói o arsenal de mitos e armas com que o sistema se defende. Mas o sistema defende-se contra quê? Contra a natureza humana? Se para sobreviver tem de lutar contra a natureza humana, nesse caso, segundo a própria linguagem do especialista, o sistema é extremamente antinatural.
Assim, enquanto alguns especialistas definem a revolta ocorrida em França como impossível por ser antinatural, os seus colegas especialistas concebem os gases incapacitantes com os quais os polícias podem suprimir essas revoltas impossíveis. Porque tudo é possível.
[1968]
- 1 Mouvement du 22 Mars, Ce n´est qu´un début, continuons le combat, Paris, Maspero, 1968
- 2Acrónimo, que podemos traduzir por Protestante Branco Anglo-Saxónico (White Anglo-Saxon Protestant), utilizado para definir uma determinada classe social estadounidense descendente dos colonos britânicos que detém hegemonia política, económica e social nos E.U.A. (N. do t.)
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