Texto de 1920 que analisa a cultura na sociedade capitalista. Analisa como a arte se separou da atividade produtiva cotidiana dos seres humanos sob a forma de produtos que não são mais produzidos e avaliados em razão de seu valor intrínseco (por exemplo, valor ético, valor artístico, valor humano, alegria), mas pelo seu valor de troca no mercado; de como isso aparece como "modas"; e de como, no comunismo, com o fim da economia, os seres humanos, suas atividades, seus produtos e seus desfrutes se tornam fins válidos por si sós.
[Texto traduzido e publicado pelo Grupo Autonomia em dezembro de 1999 no site Biblioteca Virtual Revolucionária.]
[Nota do grupo autonomia: publicado originalmente em 1920 na revista Kommunismus, nº 43. A presente tradução para o português tem por base a publicação deste texto em espanhol no livro Revolución y Antiparlamentarismo (Ediciones Pasado y Presente, México, 1978).]
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O desenvolvimento da sociedade é um processo unitário. Isto significa que não se pode determinar uma certa fase do desenvolvimento num aspecto da vida social sem que seus efeitos repercutam sobre todos os outros. É devido a essa unitariedade que é possível apreender o próprio processo do ponto de vista de uma como de outra manifestação social, e chegar entretanto a sua compreensão. Por esse motivo, pode-se falar da cultura [Kultur], em seu aparente isolamento das outras manifestações sociais. Efetivamente, se nós compreendemos corretamente a cultura de uma época, compreendemos em suas raízes o desenvolvimento do conjunto dessa época, como se tivéssemos partido da análise de suas relações econômicas.
A burguesia, que teme a bancarrota da organização social capitalista, lamenta por isso sobretudo a decadência da cultura. As preocupações pelos interesses de classe são assim apresentadas como se sua motivação tivesse nascido de preocupações acerca dos valores eternos da cultura. Pelo contrário, o ponto de chegada dos pensamentos que se seguirão é a consideração de que a cultura da época capitalista já havia intimamente desaparecido antes mesmo de sua bancarrota econômica e política; e que então, em oposição a todas as preocupações que temos ouvido copiosamente justamente no interesse da cultura, seria de urgente necessidade pôr finalmente termo à larga agonia da organização social capitalista, e abrir com isso o caminho à nova cultura.
Quando se considera a cultura de duas épocas do ponto de vista científico, emerge antes de tudo a questão: quais são as condições econômicas e sociológicas para o afirmar-se da cultura? E de tal contexto surge por si a resposta à pergunta da qual se deveria ter partido: o que é exatamente a cultura? Em poucas palavras: o conceito de cultura (em oposição a civilização [Zivilisation]) compreende o conjunto das atividades e dos produtos dotados de valor que são supérfluos em relação ao sustento imediato. Por exemplo, a beleza interna de uma casa pertence ao conceito de cultura; não sua solidez, nem sua calefação, etc. Se então nos perguntamos: em que consiste a possibilidade social da cultura? devemos responder que ela é oferecida pela sociedade na qual as necessidades primárias foram satisfeitas de tal maneira que não se requer um trabalho tão pesado que esgote por completo as forças vitais. isto é, onde existem energias disponíveis para a cultura.
A velha cultura era então a cultura das classes dominantes. Só as classes dominantes estavam em condições de pôr a serviço da cultura suas atividades dotadas de valor, desvinculadas de toda preocupação com o sustento imediato. Ainda aqui, como em todos os lugares, o capitalismo revolucionou integralmente a organização social. Ao suprimir os privilégios de casta o capitalismo eliminou também os privilégios culturais da sociedade de castas. Isto é, o capitalismo colocou a classe dominante, a burguesia, à serviço da produção 1 . O traço característico que distingue o capitalismo das organizações sociais anteriores é que nele a mesma classe exploradora está submetida ao processo produtivo; está obrigada a dar suas próprias forças à luta pelo lucro, da mesma maneira que o proletariado está obrigado para se manter com vida. (Por exemplo, o diretor de fábrica e, em oposição a ele, o senhor nos tempos da escravidão da gleba). Aparentemente essa tese parece contraditória pela grande quantidade de ociosos que a mesma classe capitalista criou de seu seio. Mas, também aqui, nossa atenção não deve se deixar desviar por aparências superficiais. Com relação a cultura, sempre se submeteu a exame somente as melhores forças das classes dominantes. Na época pré-capitalista estas forças se achavam em uma situação tal que lhes permitia colocar suas próprias atividades a serviço da cultura, enquanto o capitalismo as tornou escravas da produção do mesmo modo que fez com os trabalhadores, mesmo que concedendo um valor material bem distinto à sua escravidão.
A libertação do capitalismo significa a libertação do domínio da economia. A civilização cria, assim, o domínio humano sobre a natureza; mas, como conseqüência, o homem cai sob o domínio desses meios que haviam lhe dado a possibilidade de dominar a natureza. O capitalismo assinala o ponto culminante desse domínio. No capitalismo não existe classe que, por sua posição produtiva, esteja voltada a criação da cultura. A destruição do capitalismo, a sociedade comunista, altera a questão justamente neste ponto. Ela quer criar uma organização social na qual se destina a cada um esse modo de vida que na época pré-capitalista somente as classes dominantes podiam levar. Com isso começa a história da humanidade. Da mesma maneira que a história, no seu velho significado, que começou com a civilização e a luta do homem com a natureza, pertence à época "pré-histórica", assim o historiador do futuro começará a verdadeira história da humanidade com o comunismo desenvolvido. O domínio da civilização significará então a segunda época "pré-histórica".
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A característica principal da organização social capitalista deveria ser buscada então no fato de que a vida econômica deixou de ser um instrumento para a função vital da sociedade e se colocou no centro: se converteu em fim em si mesmo, o objetivo de toda a atividade social. A primeira conseqüência, e a mais importante, é a transformação da vida social em uma grande relação de troca; a sociedade em seu conjunto tomou a forma de mercado. Nas distintas funções da vida, tal situação se expressa no fato de que cada produto da época capitalista, como também todas as energias dos produtores e dos criadores, reveste a forma de mercadoria. Cada coisa deixou de valer em virtude de seu valor intrínseco (por exemplo, valor ético, valor artístico): tem valor unicamente como coisa vendável ou adquirível no mercado. Tudo o que este realizou destrutivamente sobre toda a cultura - expressando-se esta seja em atos, em criações de obras de arte, ou em instituições - é algo que não exige análises ulteriores. Da mesma maneira que a independência dos homens das preocupações de sustento e a livre utilização de suas próprias forças como fim em si são a condição humana e social preliminar da cultura, assim também tudo o que a cultura produz só pode ter valor cultural autêntico quando tem valor por si só. No momento em que assume o caráter de mercadoria e entra no sistema de relações que o transforma em mercadoria, cessa ainda sua autonomia, a possibilidade da cultura.
Mas em outro ponto o capitalismo corroeu nas raízes a possibilidade social da cultura. Este ponto está constituído por sua relação com a fabricação dos produtos culturais. Já vimos: do ponto de vista do produto, a cultura é impossível quando os produtos não levam em si seu fim. Do ponto de vista das relações entre produto e produtor, a cultura é possível só onde o surgimento do produto constitui - com relação a seu criador - um processo unitário, em si acabado. Ou seja, um processo cujas condições dependem da possibilidade e das ações humanas do criador. O exemplo característico para um processo de tal caráter é a obra de arte, onde o nascimento da obra é, definitivamente, em sua integridade, resultado da atividade do artista e onde a peculiaridade da obra está determinada pelas qualidades individuais do artista. Nas épocas pré-capitalistas este espírito artístico dominou toda indústria. A impressão do livro era em essência tão pouco distinta de escrevê-lo como a pintura de um quadro o era da fabricação de uma mesa (em relação ao caráter humano do produto). Pelo contrário, a produção capitalista não só tira do trabalhador a propriedade do meio mas também, por conseqüência da divisão do trabalho, mais fortemente especializado, fragmenta o processo de fabricação em partes, nenhuma das quais é tal que origine algo significativo, em si e por si acabado. Não existe trabalho singular que não esteja em ligação imediata e perceptível com o produto terminado; esse processo tem um sentido somente para o cálculo abstrato do capitalista; só enquanto mercadoria está dotado de sentido. Ao se estender a indústria, intensifica-se mais ainda a desumanidade dessa relação. Na divisão do trabalho que existe dentro da manufatura, mesmo sendo o processo de fabricação sumamente fragmentado e despedaçado, a qualidade das partes singulares do produto dependia sem dúvida das atitudes físicas e espirituais do trabalhador; enquanto que na indústria desenvolvida toda relação entre produto e produtor foi suprimida. Nela, então, o processo produtivo depende definitivamente das possibilidades das máquinas; o homem serve a máquina, se adapta a ela; a produção se torna completamente independente das possibilidades e atitudes humanas do trabalhador.2
Junto a essas forças que destróem a cultura e que nós consideramos até aqui do ponto de vista do produto e do produtor singular e isolado, no capitalismo atuam ainda outras similares às primeiras. Podemos observar a mais importante quando consideramos o nexo recíproco dos produtos. A cultura das épocas pré-capitalistas era possível graças à relação de continuidade em que se encontravam os produtos culturais singulares: um produto levava adiante o problema colocado por outro, e assim sucessivamente. A cultura em seu conjunto delineava portanto uma determinada continuidade de desenvolvimento lento e orgânico. Assim era possível que em cada campo se afirmasse uma cultura coerente, unívoca e entretanto original; uma cultura cujo nível superava também em muito o nível mais alto alcançável através de atos individuais, isolados. Enquanto revolucionava o processo produtivo, enquanto tornava permanente este caráter revolucionário através do caos da produção, o capitalismo suprimia a continuidade e a organicidade da velha cultura. Por um lado, a revulocionarização da produção significa, para a cultura, que o processo produtivo se origina de contínuos momentos que influem de maneira decisiva a marcha e o modo da produção, sem que isso se ligue logo de maneira alguma com a essência do produto - uma obra como fim em si - (é assim que na indústria, na arquitetura desaparece a autenticidade do material). Por outro lado, como conseqüência do produzir-para-o-mercado (sem o qual a revolução constante da produção seria inimaginável), vem à luz na fabricação do produto tudo o que é mera novidade, o elemento sensacional e caduco, sem consideração alguma pelo problema da contribuição ou perda do autêntico, íntimo valor do produto. O reflexo cultural desse caráter revolucionário é o fenômeno que habitualmente chamamos moda. Moda e cultura configuram por suas essências conceitos que se excluem reciprocamente. O domínio da moda significa que a forma e a qualidade dos produtos postos no mercado mudam a breve prazo, independentemente da relação com a beleza e a finalidade. A essência desse mercado contém o fato de que dentro de determinados períodos devem ser fabricados novos objetos, de modo que possam diferenciar-se radicalmente dos precedentes; de forma que, ao produzi-los, seja impossível se basear sobre experiências recolhidas na produção precedente. Da rapidez do desenvolvimento resulta a impossibilidade de recolhê-las e senti-las; ou ninguém quer mais se basear nelas, pois a essência mesma da moda requer justamente o oposto ao velho. Assim desaparece lentamente todo desenvolvimento orgânico: aparece uma oscilação sem meta e um diletantismo vazio e ruidoso.
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Mas a crise da cultura capitalista tem raízes ainda mais profundas que os fenômenos até aqui esboçados. O fundamento de sua crise permanente e de sua queda interior consiste no fato de que a ideologia se acha em oposição insolúvel com a organização produtiva, com a organização social. A classe burguesa dominante ou que luta pelo domínio podia ter - como conseqüência necessária do caos da produção capitalista - uma só ideologia: a da liberdade individual. A crise da cultura capitalista devia então se manifestar no momento em que entrava em oposição com a organização social burguesa. Durante todo o tempo em que a classe burguesa em ascenso - como no século dezoito - dirigiu essa ideologia contra os vínculos da sociedade de castas, essa ideologia era a expressão adequada da situação dada da luta de classes. A burguesia de então podia ter de fato uma cultura autêntica. Mas quando a burguesia chegou ao poder (isto é, já na grande revolução francesa) se revelou a impossibilidade de fazer avançar seriamente essa ideologia, de estendê-la à sociedade inteira, sem a auto-supressão daquela organização social da qual a liberdade individual era a ideologia. Em poucas palavras: era impossível à classe burguesa estender também ao proletariado suas próprias idéias de liberdade. Se segue então uma desarmonia insuperável: a burguesia ou devia renunciar a essa ideologia ou então utilizá-la como máscara de uma ação oposta a ela. No primeiro caso fez emergir o vazio absoluto das idéias, um caos moral, porque, dada sua posição produtiva, a burguesia não estava em condições de criar uma outra ideologia que substituísse a ideologia da liberdade individual. No segundo caso, a burguesia se achava diante da crise moral da mentira interior; estava obrigada a atuar contra sua própria ideologia.
Mas esta crise se tornaria mais aguda porque o princípio de liberdade devia, ainda economicamente, envolver-se em uma contradição insuperável. Não é nosso objetivo aqui entrar numa análise da época do capital financeiro. Basta assinalar a oposição inconciliável entre as gigantescas organizações produtivas que surgiram com base nele (cartéis, trusts) e a idéia dominante da organização social do capitalismo primitivo, a livre concorrência. Mas com isso desaparecia também o terreno da ideologia que se conectava com ele. Quando os altos extratos da burguesia - pela própria essência do capital financeiro - se tornaram aliados naturais de seus outrora inimigos, as classes agrário-feudais, a nova ideologia devia ser buscada entre os novos aliados. Mas mesmo essa tentativa de harmonizar a ideologia com sua organização produtiva estava destinada à bancarrota desde o momento em que os fundamentos reais da ideologia conservadora - a estrutura feudal de castas e a organização produtiva que lhe expressava - foram radicalmente extirpados da sociedade através da revolucionarização capitalista da produção, que alcançou seu próprio cume na época do capitalismo financeiro. É certo que o feudalismo teve num tempo uma cultura de grande valor e alto nível. Mas isso ocorria sob o domínio da sociedade feudal e de castas, quando a produção e toda a sociedade estavam reguladas por seus princípios. Com a vitória do capitalismo esta forma social foi suprimida. Em vão, grande parte do poder econômico ficou nas mãos das castas dominantes de antes: o processo pelo qual também elas se capitalizavam e mesmos assumiam as formas do capitalismo não podia ser detido. Então, mesmo para esses setores, se manifestou a mesma contradição entre ideologia e movimento da produção que rege o capitalismo, mesmo que se expresse de outra maneira. Então, se a classe burguesa da época do capitalismo financeiro buscava a água da renovação, buscava-a em uma fonte que ela mesma havia enterrado.
Do ponto de vista da cultura, a oposição entre ideologia e organização produtiva significa que o motivo da grandeza das antigas culturas (Grécia, Renascimento) deve ser buscado no fato de que, para a harmonia então existente entre ideologia e organização produtiva, os produtos da cultura podiam se desenvolver organicamente a partir do terreno social. Enquanto as grandes obras culturais podiam ser elevadas muito acima do mundo interior do homem comum, existia sempre entre os dois pólos certo nexo. Mas ainda mais importante que essa atitude dos produtores culturais dentro da vida social é o fato de que a conformidade entre ideologia e organização produtiva fazia possível a harmonia natural entre ideologia e conduta de vida. (Que o estilo de conduta de vida do homem depende de sua posição produtiva é algo que não requer uma discussão ulterior.) Mas em toda organização social onde existe uma conformidade natural entre conduta de vida e sua expressão ideológica, existe também a possibilidade de que o tomar forma da ideologia encontre uma expressão orgânica nas figuras da cultura. Mas somente com tais condições a unidade orgânica é possível. A independência relativa dos elementos ideológicos quanto a seus fundamentos econômicos significa que eles, em seu caráter de forma das expressões humanas, são - segundo seus valores e validez formais - independentes das facticidades que lhes são confiadas pela organização econômica e social contemporânea para que qual possam receber forma. Por isso a matéria que tais formas modelam não pode ser outra que a própria realidade social. Se existe então uma oposição de fundo entre ideologia e organização econômica, ela - quanto a nosso problema - deve ser expressa assim: que formas e conteúdos das expressões culturais entraram em contradição entre si. Mas com isso cessa a unidade orgânica das obras da cultura, sua essência harmônica, esbanjadora de alegria. A cultura já não expressa mais tudo isso aos homens que tomam posição a seu respeito: aquilo que era a característica principal das velhas culturas. Enquanto foi autêntica, a cultura do capitalismo só podia ser a crítica sem embelezamentos da época capitalista, crítica que alcançou freqüentemente um nível muito alto (Zola, Ibsen); mas quanto mais autêntica e válida era, tanto mais devia lhe faltar a simples e natural harmonia e beleza da antiga cultura: a cultura no verdadeiro sentido, no sentido literal do termo. Esta contradição subsistia em todos os campos da expressão humana, no conjunto dos materiais da cultura. Assim, para citar um só exemplo muito evidente, a organização social capitalista nutria necessariamente em si, na ideologia da liberdade, a idéia de homem como fim. Podemos dizer sem temor de desmentido: nas épocas pré-capitalistas esta grande idéia não alcançou jamais uma expressão tão pura, clara e consciente como neste período (idealismo clássico alemão). Mas é também verdade que nenhuma organização social a tratou tão a pancadas como o capitalismo. No capitalismo o devir-tudo-mercadoria não se limita ao devir-mercadoria dos produtos; usurpa também as relações humanas: basta pensar no matrimônio. A necessidade interior da orientação ideológica cultural promovia, então, em todos os produtos da cultura, a anulação do homem como fim em si, enquanto, por outro lado, a matéria - modelada por essas formas culturais - era a negação viva desse propósito. Por exemplo, a poesia válida no capitalismo não podia ser o simples reflexo de seu próprio tempo como era a poesia grega, cuja eterna beleza expressa justamente este reflexo acrítico, natural, mas só poderia ser crítica do existente.
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Voltemos agora ao que significa, do ponto de vista da cultura, a transformação comunista da sociedade. Antes de tudo, significa o fim do domínio da economia sobre a totalidade da vida. Logo, o fim da estranha e inarmônica relação entre o homem e seu trabalho, pelo qual o homem está subordinado ao meio produtivo, ao invés do meio produtivo ao homem. Em última instância significa a supressão da economia como fim em si. Naturalmente, a organização social capitalista introduziu tão profundamente sua estrutura no universo do pensamento de cada um que pôs nas sombras a consciência desse aspecto da transformação. Mais ainda, este aspecto da transformação após a tomada do poder não pode ainda tornar-se explícito no que concerne aos aspectos quotidianos da vida. O domínio sobre a economia, a organização socialista da economia, significa a supressão da autonomia da economia. A economia, que foi até hoje um processo autônomo, dotado de leis próprias, e que podia somente ser reconhecido, mas não dominado pela razão humana 3 , se torna agora uma parte da gestão política. Isto é, parte de um processo planificado, não mais dominado por leis próprias, dado que os movimentos fundamentais deste processo social unitário não podem mais ser de natureza econômica. A aparência contradiz esta tese. É claro, efetivamente, que uma reorganização da produção que não seja levada no terreno econômico com órgãos econômicos e através de teorias econômicas, é impossível, tanto prática quanto teoricamente. É por demais óbvio que, em correspondência à essência da luta de classes, na fase da ditadura do proletariado, que é a culminação da luta de classes, as questões da batalha econômica, da reorganização, estão em primeiro plano. Mas isto não significa que o fundamento próprio do processo em curso seja de natureza econômica. A mudança de função que a ditadura traz em si em todo campo se afirma também aqui. Durante o capitalismo, cada momento ideológico era só a "superestrutura" do processo revolucionário que leva enfim à derrubada do capitalismo. Agora esta relação se inverte. Não quero dizer com isso que a reorganização da economia se torna mera "superestrutura" (já em relação à ideologia esta expressão não era a mais pertinente e deu lugar a muitos equívocos), mas sim pode-se dizer sem mais que desaparece a prioridade da economia. Aquilo que superficialmente contradiz esta tese na realidade a confirma, por pouco dialeticamente que observemos a questão.
Na crise da sociedade capitalista, o aspecto ideológico se situava sempre em primeiro plano na consciência social. Isto não acontecia por casualidade mas era a conseqüência do fato de que as forças motrizes do desenvolvimento não estavam em condições de tornar as massas que a punham em movimento completamente conscientes. A "crítica" que o socialismo efetuava tinha um caráter de desmascaramento em relação a essa crise, a essas revoluções: indicava as forças reais, últimas: o processo econômico. Nada mais natural então, se, com a ruína do capitalismo, o ponto de vista que até agora tomou a função de crítica adquire um relevo de primeiro plano na nova estrutura. Mas o problema é: a mudança de função não suprimiu o caráter do motivo como motivo "último" que ele possuía em sua função primitiva? E o que o suprimiu efetivamente, é algo que se deduz de tudo que foi dito até aqui: o motivo econômico pode valer como motivo último somente no estágio da "anarquia produtiva". Só as forças motrizes de uma produção desorganizada podem funcionar como forças naturais, cegas; e só enquanto tais podem constituir o motor último: todo elemento ideológico ou se adapta ao processo criado por tais forças (se torna supraestrutura) ou se opõe a ele infrutiferamente. Por isso, no capitalismo todo fator não econômico é puramente ideológico, com a única exceção da crítica socialista à sociedade capitalista em sua totalidade. Ela não é expressão ideológica de consentimento ou de rechaço que acompanha um processo singular, mas a crítica da totalidade; uma crítica da totalidade do processo econômico de forma a ser imediatamente ação prática em direção a sua transformação. O que é transformado não é apenas a desorganização, mas, com ela, também a autonomia da vida econômica, em suma: seu ser guiado de todos os modos por finalidades econômicas. A organização da vida econômica em direção ao socialismo leva ao papel de guia a esses motivos que até agora podiam ser no máximo efeitos colaterais; leva a uma vida humana interior e exterior dominada por motivos humanos, não mais econômicos. Não deve nos assombrar então se, nestas condições, a revolucionarização da vida econômica está em primeiro plano justamente na consciência revolucionária, mais que aquele momento ideológico pelo qual ela foi, em última instância, posta em movimento. Com a vitória do proletariado o processo dessa mudança de função entra necessariamente na consciência do proletariado. Trata-se do prosseguimento direto, pelas massas proletárias, da luta de classes consciente: a essência da consciência de classe surgiu até agora do elevar-se à consciência dos interesses econômicos. A mera passagem ao trabalho de reconstrução - cujo resultado final é essa troca de funções - não passa sequer perto da consciência dos interesses de classe imediatos; está, por assim dizer, "por baixo da consciência". Somente a consciência de classe completa, que se torna consciente da missão histórico-universal do proletariado além dos interesses imediatos, eleva este motivo, esta mudança de função, na consciência do proletariado. 4
A mudança de função faz emergir a possibilidade da nova cultura: pois a cultura significa o domínio interno do homem sobre as circunstâncias, assim como a civilização é seu domínio exterior. Da mesma maneira que a civilização criou os meios do domínio sobre as circunstâncias naturais, agora a cultura proletária cria os meios de domínio sobre as circunstâncias sociais. E justamente, de fato, a civilização e sua forma mais evoluída, o capitalismo, desenvolveu ao máximo o servilismo do homem para a sociedade, a produção, a economia.
O pressuposto sociológico da cultura é o homem como fim em si. Esta condição primária, que nas sociedades pré-capitalistas era concedida às classes dominantes e que o capitalismo tirou de todos, é agora preparada a todos pela fase última da vitória proletária. A metamorfose determinada pela transformação radical de toda estrutura social se refere naturalmente a todas as manifestações, de cujos efeitos destruidores em relação à cultura já falamos na análise do capitalismo.
Com a organização da economia termina assim também seu caráter revolucionário e revolucionante. Em lugar da sucessão caótica, determinada pelo acaso, que habitualmente assinalamos pelo nome de moda, se tem a continuidade orgânica, o desdobramento autêntico. O desenvolvimento no qual cada momento singular surge necessariamente dos pressupostos objetivos do momento precedente; no que então cada momento leva em si a dissolução do problema que ficou irresoluto no momento que o precedia e, no mesmo instante, coloca para o momento seguinte um novo problema a resolver. A necessária conseqüência cultural de um desenvolvimento orgânico tal (que vem da essência mesma da coisa, não do acaso) é que o nível da cultura pode novamente sobrepassar as atitudes individuais e dos indivíduos singulares isolados. A ligação com o trabalho alheio e seu prosseguimento - segundo pressuposto sociológico da cultura - volta a ser possível. Se segue que, os produtos culturais, as relações humanas, perdem seu caráter de mercadoria. A superação das relações mercantilizadas restitui seu caráter de fim em si a tudo aquilo que sob o capitalismo era - de todo ou principalmente - esmagado sob as relações econômicas. Mas a possibilidade da cultura se funda também, como é sabido, no fato de que a quantidade cada vez maior de expressões da vida humana se torna - sempre mais profunda e vigorosamente - fins em si; ou o que é o mesmo, estão a serviço da essência do homem. Pois estas duas modalidade do ser-fim-por-si-mesmo não se excluem uma em relação a outra; pelo contrário, se completam reciprocamente. Quando um produto qualquer (casa móvel, etc.) não é fabricado enquanto mercadoria mas sim de tal maneira que suas possibilidades de beleza se potenciem ao máximo, é o mesmo que dizer: a casa, o móvel, estão a serviço do ser-humano do homem, respeitam suas exigências. Não são fabricados através de um processo econômico desligado de toda exigência humana, e no qual os produtos funcionam unicamente como abstratas mercadorias e os homens também como abstratos compradores e vendedores. Ao mesmo tempo, deve desaparecer também a especialização do capitalismo. No momento em que os interesses do homem não está mais regulado pelo abstrato ocupar-se da compra e venda no mercado, mas sim pelo processo unitário, e que compreende a totalidade do homem, o processo da fabricação e do gozo do produto tornado fim em si, e também a especialização, estão destinados a sofrer uma mudança de função. Na sociedade proletária desaparecerá não apenas seu caráter de classe mas também o caráter de estranhamento a respeito da vida humana. Ao se afirmar os produtos como fins em si, estes se adaptarão automaticamente à totalidade da vida humana, a seus problemas fundamentais. Ao se suprimir o isolamento humano, o individualismo caótico, a sociedade humana vem a configurar em seus indivíduos e em seus produtos um inteiro orgânico, cujas partes singulares, sustentando-se e completando-se reciprocamente, se porão a serviço de seu objetivo comum: a idéia de um desdobramento superior do ser humano.
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Com a delineação de tal meta chegamos a essência da questão. Se o objetivo da nova sociedade consiste somente na potenciação do mero bem-estar e da propriedade material dos homens, todas essas mudanças de existência não se verificariam, seu significado seria apenas concebível. O objetivo do estado proletário poderia se esgotar na organização da produção e da distribuição, e a vida econômica voltaria a dominar - por certo que com outra finalidade - sobre o princípio humano. O desenvolvimento alcançaria naturalmente de maneira mais ampla e rápida seus objetivos, chegaria a estes com uma organização adequada da produção e da distribuição. Porém, em troca, criou somente os pressupostos imprescindíveis para chegar a meta. Em particular, a realização mesma de tal meta deve ainda abarcar toda a humanidade.
Mas a transformação econômica é um pressuposto imprescindível para conseguir tal objetivo. Não só pelos motivos sociológicos já enumerados; não só porque unicamente homens prósperos são necessários para a cultura, mas justamente pela estrutura peculiar da consciência humana: porque as questões finais e decisivas da existência humana estão recobertas na consciência pelos males e misérias imediatas e não conseguem assim, exceto em raríssimas vezes, trazer à luz. A coisa pode ser esclarecida com um simples exemplo: enquanto alguém quebra a cabeça em torno de uma grande descoberta científica, aparece-lhe uma dor de dente insuportável. Na imensa maioria dos casos, é certo que não estará em condições de prosseguir seus raciocínios enquanto não seja vencido o mal imediato. A negação do capitalismo, a nova organização socialista da economia, significa, para toda humanidade, a cura de todas as dores de dente. Desaparece da consciência dos homens tudo quanto lhes impedia até agora viver seus problemas verdadeiramente fundamentais: sua consciência se abre para o essencial. Mas este exemplo mostra também o limite da transformação. Por certo é necessário que a dor de dente tenha desaparecido para poder retomar a atividade intelectual; mas tão certo como isso é que essa atividade não se reinicia automaticamente por si mesma ao cessar a dor: é necessário um novo esforço, uma nova vocação, um novo ímpeto. Então a humanidade que trabalha não chegou ainda à meta pelo fato de que desapareceram todos os seus sofrimentos econômicos: só criou as possibilidades, como para poder por-se a caminho com novas forças para a autêntica meta. A cultura é a forma da idéia de ser-humano do homem. É então, criada pelo homem, não pelas circunstâncias. Toda restruturação da sociedade configura somente a moldura, a possibilidade da livre autorrealização, da espontânea força criadora dos homens.
Por isso a investigação sociológica deve se limitar à análise dessa estrutura. Quais serão os conteúdos essenciais da cultura proletária: isso ficará definitivamente determinado pelas forças do proletariado que tendem a libertação progressiva: toda tentativa de previsão seria ridícula. Tudo que a análise sociológica está em condições de oferecer não é mais que a indicação de que tal possibilidade - e somente a possibilidade - é preparada pela sociedade proletária. Um exame detalhado de outro modo ultrapassaria os limites da investigação científica aqui possível. Em suma, pode-se discutir quais os velhos valores culturais - conforme a essência da estrutura - poderão ser assumidos pela nova sociedade e posteriormente desenvolvidos. Pois a idéia de homem como fim em si - a idéia base da nova cultura - é uma herança do idealismo clássico do século XIX. A verdadeira contribuição da época capitalista para a construção do futuro consiste em ter criado as possibilidades de sua própria supressão e da construção do futuro sobre suas próprias ruínas. Da mesma maneira que o capitalismo fabricou por si mesmo os pressupostos econômicos de sua negação, da mesma maneira que produziu por si mesmo as armas espirituais da crítica negadora que através do proletariado o aniquilaria (a relação de Marx com Ricardo), assim também ele cria aqui, na filosofia desde Kant até Hegel, a idéia da nova sociedade, levada a provocar necessariamente sua negação.
Gyorgy Lukács, 1920
- 1Engels, F. A questão da moradia, cit., t. I.
- 2Muitos põem em relação a este processo com a divisão técnica do trabalho na indústria e estabelecem a questão como se devesse continuar também depois da derrubada do capitalismo. Aqui não podemos examinar este problema mas basta assinalar o fato de que Marx teve uma visão totalmente distinta dele: "a divisão do trabalho no interior da oficina e a divisão do trabalho no interior da sociedade" está em razão inversa uma da outra: em uma sociedade onde está desenvolvida a primeira, a segunda é atrasada e vice-versa (Miséria de la filosofia, ed. cit., pp. 119-120).
- 3A economia política enquanto ciência autônoma é o reflexo dessa situação social. Antes que tal situação se desenvolvesse não era nem sequer imaginável uma ciência econômica no sentido moderno, e com o fim da primeira também deverá desaparecer também a segunda. Por conseguinte, conceber as leis da economia política como leis naturais eternas, ou seja, como leis válidas no absoluto, é mera ideologia capitalista.
- 4Cf. meu artigo "Klassenbewusstsein", em Kommunismus, n. 14-15, 1920.
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