Da Esquerda Alemã a Socialisme ou Barbarie - La Banquise

Este texto, que é um capítulo de  "le roman de nos origines" (La Banquise No. 2 1983), examina as contribuições e limites da esquerda comunista alemã (comunistas de conselhos) e do grupo Socialisme ou Barbarie.
(Traduzido e publicado pelo Grupo Autonomia no website Biblioteca Virtual Revolucionária em Julho de 2006 a partir da versão original em francês - publicada no website John gray-For Communism)

Submitted by Joaos on October 13, 2015

Um movimento comunista, universal por natureza, que se lança à conquista do mundo seguindo os passos do capitalismo, foi levado a não tomar a ofensiva exceto na Europa central. Agora, faz-se necessária uma avaliação a partir do próprio movimento e das contradições da contra-revolução.
 
A geração revolucionária seguinte teve a vantagem de possuir uma visão crítica mais clara sobre aquele período, mas ela colidiu com a dificuldade suplementar de voltar à fonte da teoria, cujo eco acabou se tornando mais nítido do que o som original.
 
 A eclosão da guerra, em 1914, revelou a monstruosa falência do mundo burguês e do movimento operário. Não obstante, após o humanismo burguês e o reformismo salarial terem desmoronado lado a lado na lama das trincheiras, um e outro agiram como se esta catástrofe não tivesse refutado as bases sobre as quais eles tinham prosperado e arrastado milhões de seres humanos ao abismo. Todo mundo se dedica a refazer, maior e melhor, mais moderna e mais democrática, a mesma situação de antes de 1914, quando a totalidade da civilização capitalista demonstrou sua falência, confirmando as previsões apocalípticas dos revolucionários e as advertências dos burgueses mais lúcidos.
 
"Nós somos os últimos [da mística republicana]. Quase os pós-últimos. Imediatamente depois de nós, começa outra era, outro mundo, o mundo daqueles que não crêem mais em nada, que se vangloriam e orgulham disso." (Péguy, Nossa Juventude)
 
E, para aumentar a confusão, a Rússia, a Internacional Comunista e os P.C.´s também apoiavam, com a máscara de radicais, a reconstituição de um movimento operário e de uma democracia renovada, que logo fariam lembrar os do passado.
 
Ao contrário daqueles que, em vão, confiaram no ativismo, a esquerda comunista compreendeu a profundidade da contra-revolução e extraiu suas conseqüências. Ela se afirmou como resistência ao capital e, por isto, se mostrou incapaz de abandonar seu entrincheiramento para imaginar, a partir dos novos fatos e, sobretudo, da natureza invariante do movimento comunista, os traços futuros de uma revolução diferente das que aconteceram depois de 1917.
A ultra-esquerda nasceu e cresceu em oposição à social-democracia e ao leninismo - que depois se tornaria stalinismo. Contra eles, ela afirmou a espontaneidade revolucionária do proletariado.  A esquerda comunista dita alemã (na realidade, germano-holandesa) e seus derivados afirmavam que a única solução "humana" consistia na ação autônoma dos proletários, sem que fosse necessário educá-los ou organizá-los; que um embrião de relações sociais radicalmente diferentes surge da ação dos proletários quando eles agem por e para si mesmos; que a experiência de tomar em suas mãos suas próprias lutas prepara os proletários para tomar toda a sociedade em suas mãos quando a revolução se torna possível; que, hoje, os proletários devem recusar sua espoliação, até mesmo das menores ações, pelas burocracias dos sindicatos e partidos, para impedir que, amanhã, qualquer Estado dito operário possa gerir a produção em seu lugar e instituir um capitalismo de Estado, como aconteceu com a revolução russa. Enfim, afirmavam que os sindicatos e partidos se tornaram elementos do capitalismo.
 
Antes de ser reduzida à situação de grupelhos, a esquerda alemã foi o componente mais avançado (e numeroso) do movimento de 1917-1921. Depois, apesar de sua fraqueza, permaneceu sendo a única corrente a defender os explorados em todas as circunstâncias e sem concessões. Do mesmo modo, ela se recusou a apoiar qualquer guerra, seja antifascista (ao contrário dos trotskistas e da maioria dos anarquistas) ou nacional (ao contrário dos bordiguistas), com exceção da guerra espanhola, durante a qual, na esteira do anarquismo, ela chegou a apoiar a CNT.
 
Afirmando teoricamente a autonomia do proletariado contra o dirigismo estatal, ela denunciou tudo que privava a classe operária de sua capacidade de iniciativa: parlamentarismo, sindicalismo, frentes antifascistas ou nacionais tais como a Resistência Francesa à ocupação alemã, e qualquer aparato tendente a se constituir em partido acima da classe operária.
 
"A emancipação dos proletários será obra deles mesmos, os proletários", diz o Manifesto. Mas qual emancipação? Para a esquerda alemã, o comunismo se confundia com a gestão operária. Ela não via que a autonomia deve ser exercida em todos os domínios e não apenas na produção. Ou seja, somente extirpando a troca mercantil de todas as relações sociais, de tudo o que a vida se nutre, os proletários terão o domínio de sua revolução. Reorganizar mais uma vez a produção é engendrar um novo aparato de gestão.  Quem prioriza a gestão se condena a criar um novo aparato de gestão.
 
A gestão de nossas vidas pela burocracia é apenas um aspecto da nossa expropriação. Esta alienação, o fato de que nossa vida é decidida por outros, não é uma mera realidade administrativa que uma outra gestão poderia superar. O monopólio das decisões por uma camada privilegiada de tomadores de decisões é uma conseqüência das relações sociais de mercado e de trabalho assalariado. Nas sociedades pré-capitalistas, o artesão também percebia que sua atividade lhe escapava, na medida em que entrava no mecanismo de preços. Pouco a pouco, a lógica do comércio retirou-lhe a escolha de suas ações. Mas não havia nenhum "burocrata" que lhe dissesse o que fazer. Simplesmente, o dinheiro e o trabalho assalariado contém já, em si mesmos, a possibilidade e a necessidade de expropriação. Há apenas uma diferença de grau entre a expropriação do artesão e a do operário não qualificado da BMW (por exemplo...). Certamente, a diferença não é pequena, mas nos dois casos o seu “... trabalho depende de causas externas a eles..." (Dézamy, Code de la communauté, 1842). Quanto aos gestores, eles encarnam esta alienação. Portanto, não se trata de substituí-los por conselhos operários mais do que de substituir a burguesia por burocratas dos sindicatos e partidos - o resultado não deixaria de lembrar a experiência russa pós-1917.
 
Espremida entre o SPD e a CIO - as duas formas da contra-revolução nascidas das lutas operárias - a esquerda alemã se opunha às duas. Mas ela encontrava dificuldades para ver que a IWW desapareceria ou se tornaria uma organização reformista. Enquanto organização autônoma dos trabalhadores, a IWW tinha, retrospectivamente, todas as virtudes. Mas não é suficiente que uma estrutura seja operária e antiburocrática para que ela seja revolucionária. Tudo depende do que ela faz: se participa em atividades sindicais, ela se torna aquilo que os sindicatos são. Assim, a esquerda alemã se equivocou sobre a natureza da CNT. No conjunto, porém, ela mostrou o quanto é superficial contar apenas com os sindicatos, e que é a atividade reformista dos trabalhadores que mantém o reformismo organizado, abertamente contra-revolucionário.
 
A esquerda alemã compreendeu que o mundo burguês anterior a 1914 foi substituído pelo mundo capitalista. Ela soube reconhecer o capital onde quer que estivesse, inclusive na URSS, enquanto que só depois de 1945 Bordiga diria as coisas assim claramente. O comunismo de conselhos acabou se confinando no conselhismo, mas, logo depois da guerra de 1939-1945, ele viu a necessidade de sair do quadro teórico definido no período entre as duas guerras. Em 1946, Pannekoek compreendeu que o proletariado havia sofrido "uma derrota ligada a objetivos demasiado limitados" e que "a luta real pela emancipação ainda não começou". Expressão mais pura do proletariado revolucionário após 1917, a esquerda comunista alemã também reproduziu suas limitações, que ela não podia, sozinha, ultrapassar.
 
Herdeira da ultra-esquerda no pós-guerra, a revista Socialisme ou Barbarie apareceu na França entre 1949 e 1965. Organizativamente, o grupo que se constituiu em torno da revista não descendia da esquerda alemã, mas do trotskismo, antes de se juntar a dissidentes da esquerda italiana. Mesmo sem reivindicar sua filiação,  SouB pertencia não menos ao conselhismo, ao qual chegou como resultado de uma reflexão sobre a burocracia,  nascida da recusa das posições trotskistas sobre a URSS.
 
Um dos méritos de SouB foi procurar "a solução" no proletariado. Sem fazer populismo ou pretender a redescoberta de quaisquer "valores operários", entendeu que, de fato, a tomada da palavra pelos operários era realmente uma condição do movimento comunista. Assim, SouB  apoiou formas de expressão como o jornal Tribune Ouvrière, publicado pelos trabalhadores da Renault. Deste modo, ele se inscreveu no movimento mais vasto que culminaria em maio de 1968 e deu nascimento a esboços preliminares de organizações autônomas como os comitês inter-empresas. Que uma minoria operária se reúna e tome a palavra é realmente uma condição do comunismo.
 
Os sindicatos e partidos operários oferecem seus serviços aos assalariados em troca do reconhecimento e apoio, inclusive financeiro. Os grupos de extrema-esquerda pretendem oferecer aos assalariados uma defesa melhor de seus interesses que a dos sindicatos e partidos, que eles julgam demasiado moderados. Em contrapartida, eles exigem menos ainda: a aprovação, mesmo superficial, de seu programa. Dirigistas ou libertários, todos vêem a mesma solução de continuidade entre o proletariado e o comunismo - eles concebem o conteúdo do comunismo como exterior ao proletariado. Não vendo a intrínseca relação entre proletariado e revolução - exceto que o primeiro fará a segunda -, eles são obrigados a introduzir um programa.
 
SouB mostrou que a ação operária continha mais do que uma luta contra a exploração e que ela portava em si o embrião de novas relações. Mas ele só viu isto na auto-organização e não na prática proletária - monstruosa caricatura da vida humana, produzida pelo capital que, explodindo, poderia engendrar outro mundo.
 
Desde que não se embarace nas questões de organização e de gestão do trabalho, a observação da vida na fábrica torna possível iluminar o sentido comunista da luta proletária. Assim, o testemunho da operária americana Ria Stone, publicado nas primeiras edições da revista, ia mais longe do que a teorização feita depois por Chaulieu [Castoriadis] sobre o conteúdo do capitalismo (mas a publicação do texto de Ria Stone não teria sido possível sem o "erro" de Chaulieu).
 
SouB rompeu com o obreirismo. "A experiência proletária", texto escrito por Claude Lefort no número 11 (1952) da revista, é, sem dúvida, o mais profundo publicado por SouB. Mas ele indica os limites do grupo e nisto anuncia seu impasse. Com efeito, ele continua a buscar uma mediação entre a miséria da condição proletária e sua revolta aberta contra o capital. Ora, é dentro de si mesmo que o proletariado encontra os elementos de sua revolta e o conteúdo da revolução, não em alguma organização posta como pré-condição e que lhe doaria a consciência ou ofereceria uma base para o reagrupamento. Lefort viu o mecanismo revolucionário nos próprios proletários, porém via-o mais em sua organização do que em sua natureza contraditória. Assim, ele também acabou reduzindo o conteúdo do socialismo à gestão operária.
Além disso, no lugar do testemunho dos operários que Lefort queria, SouB se lança à sociologia operária, acabando por fazer tudo girar em torno da separação entre direção e execução. Nisto ele se diferenciou de Information et Correspondence Ouvrieres (ICO) - ao qual Lefort se juntou -, grupo/boletim obreirista e conselhista, a expressão mais imediata da autonomia operária, e do Groupe de Liaison pour l'action des Travailleurs (GLAT), fundado em 1959, igualmente obreirista, mas dedicado a publicar análises minuciosas da evolução do capitalismo. Cada um à sua maneira, ICO e GLAT estariam presentes no centro universitário de Censier, ocupado pelos revolucionários em maio de 1968.
 
A revolução húngara de 1956 deu novo vigor a SouB, reforçando seu conselhismo. Com efeito, vira nela a confirmação de suas teses, num tempo em que a forma "conselho" provaria ser capaz de agir de maneira totalmente contrária ao conselhismo, que apoiou um stalinista liberal. Mas logo SouB abandonaria seus antigos pontos de  referência marxistas e se lançaria numa vagabundagem intelectual que terminou em 1965. Esta evolução levou à cisão dos "marxistas" que fundaram Pouvoir Ouvrier (PO) em 1963. E um dos membros de PO, Pierre Guillaume, fundaria, dois anos mais tarde, a livraria La Vieille Taupe, cujo papel veremos adiante.
 
Como a Internacional Situacionista, mas de outra maneira, SouB "se grudou" à modernização da sociedade ocidental. Suas teses sobre o capitalismo burocrático e a sociedade burocrática, nascidas simultaneamente do espectro de uma conquista do poder pelos stalinistas e da reviravolta da sociedade francesa orquestrada pelo Estado, expressaram a crise que corroía, sobretudo na França, o modelo industrial dominante.  Ao propagar slogans como "Poder Operário - Poder Camponês - Poder Estudantil" (panfleto do PSU, junho de 1968), ao fazer da "gestão autônoma e democrática" o objetivo número um, o movimento de maio de 1968 popularizou os temas de SouB, revelando, ao mesmo tempo, os limites do grupo e do movimento como um todo.
 
Em 1969, a revista "Invariance" concluia: "Socialisme ou Barbarie não foi um acidente. Ele exprimiu claramente uma posição difundida em escala mundial: a interpretação da ausência do proletariado e da ascensão das novas classes médias... Socialisme ou Barbarie cumpriu seu papel de superar as seitas porque ele se abriu ao imediato, ao presente, rompendo qualquer ligação com o passado..." (Série I, n° 6 pág. 29).
 
 
 
BIBLIOGRAFIA:
 
                Sobre a esquerda comunista dita alemã:
S. Bricianer, Pannekoek et les conseils ouvriers - EDI, 1969.
D. Authier, La Gauche allemande. Textes, La Vecchia Talpa
Invariance, La Vieille Taupe, 1973.
D. Authier, J. Barrot, La Gauche communiste en Allemagne 1918-21 - Payot, 1976.
Revistas dirigidas  por Mattick, de 1934 a 1943, International Council Correspondence, Living Marxism et New Essays, reeditadas por Greenwood Corp., Westport, Connecticut, USA. Uma coletânea foi publicada em La Contre-révolution bureaucratique - UGE, 10/18.
P. Mattick, Intégration capitaliste et rupture ouvrière - EDI, 1972.
P. Souyri, Révolution et contre-révolution en Chine -  C. Bourgeois, 1982.
                
                Sobre Socialisme ou Barbarie:
Posfácio de P. Guillaume a Rapports de production en Russie, de Castoriadis - La Vieille Taupe, 1972.

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