A Internacional Situacionista - La Banquise

Capítulo de "le roman de nos origines" (La Banquise No. 2 1983) que examina as contribuições e limites da Internacional Situacionista. (Traduzido e publicado pelo Grupo Autonomia no website Biblioteca Virtual Revolucionária em março de 2006 a partir da versão original em francês - publicada no website John gray-For Communism).

Submitted by Joaos on October 13, 2015

 A invasão capitalista da totalidade da vida, acelerada pelo ciclo de prosperidade que começou na década de 1950, produziria sua crítica liberal: obras de Vance Packard, sobre a obsolescência programada; de Riesman, sobre a “multidão solitária”; de Henri Lefebvre, sobre a vida cotidiana etc. Países industriais retardatários, como a França, não foram amáveis com o "americanismo" (ver, particularmente, Le Monde). Por volta de 1960, quando a crítica prática dos proletários coincidiu com a primeira inquietação sobre o limite e o sentido desse crescimento econômico, todo modo (e mesmo o estilo) de vida capitalista moderno estava posto em xeque. Então, a Internacional Situacionista (1957-1971) – ponto de encontro do Novo Mundo, orgulhoso de sua modernidade, e do Velho Mundo, desestabilizado pelo consumo de massa – reuniu, de um lado, alemães, escandinavos e estadunidenses, e, de outro, franceses e italianos, contribuindo decisivamente para a crítica da colonização mercantil generalizada.

Efeito da prosperidade dos anos 60, a I.S. elaborou uma crítica do mundo burguês sem se limitar à economia, à produção, à fábrica, aos operários.  Ao mesmo tempo, os operários, como na FIAT em 1969, fizeram do espaço exterior à empresa (moradia e transportes) um ponto de partida para sua ação. A I.S. retomou a crítica da economia política anterior a 1848.

É a evolução histórica que faz ver que a vida assalariada não ocorre apenas no local de trabalho. O velho movimento operário, que desapareceu como rede social e foi substituído pelos órgãos de negociação, estendia-se a todos os aspectos da vida do proletariado. Hoje, os partidos e sindicatos são meros corretores, prestadores de serviços sociais e funcionam, em grande parte, como as administrações estatais.

A I.S. criticou o "urbanismo", ciência e técnica de recriar relações sociais ali onde as raízes dos antigos vínculos coletivos foram arrancadas. O capital destruiu a cidade e o campo, produzindo um espaço híbrido, uma cidade sem centro. (Assim, o capital criou um espaço à sua imagem, de uma sociedade que não tem centro ou cujo centro está em qualquer lugar). As inúmeras tentativas de cidades-modelo experimentais (como Pullman, próxima de Chicago, no fim do século XIX) jamais evitaram os conflitos sociais nem as rebeliões proletárias. A cidade operária-patronal, como o projeto de Nicolas Ledoux em Arc-et-Senans, no fim do século XVIII, fracassou porque a vida do assalariado não pode ter o local de trabalho como único centro. A cidade moderna "normal" integra melhor os proletários porque eles necessitam de um modo de vida capitalista, mas não patronal. Com efeito, esse modo de vida capitalista mantém uma comunidade, mesmo se ela é, em grande parte (mas não completamente, longe disso) uma comunidade mercantil constituída pela televisão e o supermercado, com o automóvel como meio de ligação entre lugares desconectados. A TV, o supermercado e o automóvel supõem a existência de seres humanos a vigiar, dirigir e fazer funcionar mais ou menos juntos.

Frente à cidade moderna, a I.S. buscou novos usos para certos locais. Ela redescobriu as visões utópicas, positivas e negativas. Inicialmente, acreditou que fosse possível experimentar desde já novos modos de vida, mas logo constataria que a reapropriação das condições de existência pressupõe nada menos do que a reapropriação coletiva de todos os aspectos da vida. E atribuiu um novo sentido à exigência de criar novas relações sociais.  Enquanto a maioria dos revolucionários debatia o "poder operário" e o "desaparecimento do Estado", a I.S. afirmava a revolução não como tarefa política, mas como transformação da totalidade da vida. Uma "banalidade", alguém diria hoje. Mas uma banalidade que só foi reintroduzida no movimento revolucionário na década de 1960, e pela atividade da I.S., entre outros. 

Produto da esquerda conselhista (Guy Debord foi membro de Socialisme ou Barbárie, por alguns meses) e de sua rejeição, a I.S. partiu de uma crítica do espetáculo como passividade e transformação de toda atividade em contemplação e concluiu com a afirmação do comunismo como atividade.

Iconoclasta, livre da problemática da organização operária (da qual não sairiam grupos como Pouvoir Ouvrier e ICO), a I.S. sacudiu a ultra-esquerda. Mas sua teoria do espetáculo a levou ao impasse do conselhismo. Sendo uma expressão do ataque contra a mercadoria mais do que de um movimento geral (ausente) contra o capital, não fez uma análise da totalidade do processo capitalista. Como Socialisme ou Barbarie, a I.S. via no capital uma forma de gestão que priva os proletários de qualquer poder sobre suas vidas, e concluía ser necessário encontrar um mecanismo que permitisse a participação de todos. A isto, adicionava a oposição passivo/ativo.  Concebendo teoricamente o capitalismo mais como espetáculo do que como capital, a I.S. acreditava que, para destruir a passividade, era preciso encontrar um meio (democracia), um lugar (o conselho) e uma forma (a autogestão generalizada). 

A noção de espetáculo engole a de capital, efetuando uma inversão da realidade.  Com efeito, a I.S. esqueceu que "a característica mais significativa da divisão capitalista do trabalho é a transformação do trabalhador de produtor ativo a espectador passivo de seu próprio trabalho" (Root and Branch, Le Nouveau Mouvement Ouvrier Américain, Spartacus, 1978, p. 90).  O "espetáculo" tem suas raízes nas relações de produção e de trabalho, que constituem o capital. O espetáculo pode ser compreendido a partir do capitalismo, mas não o inverso. O espetáculo e a contemplação passiva são efeitos de algo mais profundo. Foi a relativa satisfação de "necessidades", realizada pelo capital nos últimos 150 anos (instrução, emprego, moradia), o que suscitou a passividade no comportamento. A concepção teórica do espetáculo como motor ou essência da sociedade é idealista.

A I.S., seguindo a esquerda alemã, reconheceu a espontaneidade revolucionária, mas sem indicar a natureza dessa atividade espontânea. Glorificou as assembléias gerais e os conselhos operários, em vez de indicar o conteúdo que essas formas deveriam alcançar. Finalmente, a I.S. sucumbiu ao mesmo formalismo da ultra-esquerda: era o cego zombando do míope.

A I.S. mostrou o aspecto religioso da militância: prática separada em que o indivíduo age por uma causa, abstrai sua vida pessoal, reprime seus desejos e se sacrifica por um objetivo transcendente. Sem falar da participação em organizações políticas clássicas (partido “comunista”, extrema-esquerda...), a ação revolucionária permanente se transforma muitas vezes em militantismo: completamente devotado a um grupo, obcecado por uma visão do mundo, o indivíduo se torna incapaz de atos revolucionários quando se tornam possíveis. 

Mas essa crítica da militância, em vez de se basear numa prática e numa compreensão de relações reais que impeçam o comportamento militante, contribuiu para o surgimento, na I.S., da exigência de uma atitude radical em tudo. A moral militante é substituída pela da radicalidade, tão impraticável quanto insustentável.

Não contente com a mera denúncia do espetáculo, a I.S. se incumbiu de voltá-lo contra a sociedade. O escândalo universitário de Estrasburgo, que antecipou Maio de 68, foi um sucesso. Mas a I.S. erigiu o processo em sistema, usou e abusou até que o ´feitiço´ se voltou contra ela mesma. A repetição das técnicas publicitárias e escandalosas logo se transformaria em contra-manipulação sistemática.  Não existe uma propaganda anti-propaganda. Nem há bom uso dos media para transmitir idéias revolucionárias. 

Contra a falsa modéstia da militância, a I.S. pôs-se no palco e exagerou enormemente sua influência na situação mundial. Suas repetidas referências a Maquiavel, Clausewitz e outros estrategistas foram mais do que mera brincadeira. A I.S. estava persuadida de que uma estratégia adequada permitiria a um grupo suficientemente astuto manipular os media e influenciar a opinião pública, num sentido revolucionário. Esta é uma prova do confinamento da I.S. ao conceito de espetáculo e, finalmente, de sua incompreensão, por idealismo, do fenômeno espetacular. Quando ela se apresentou como o centro do mundo e como agente da maturação revolucionária etc., até se podia pensar, inicialmente, que estava sendo irônica. Quando a I.S. fez disto um tema constante, seria o caso de perguntar se ela não acreditava nas enormidades que propagava sobre si mesma. 

Das teorias que tiveram uma genuína difusão social antes de 1968, a I.S. forneceu a melhor aproximação do comunismo. Mas permaneceu prisioneira das velhas ilusões conselhistas às quais acrescentou suas próprias ilusões sobre o estabelecimento de um ´saber viver´ revolucionário. Ela criou uma ética na qual o prazer substituía a atividade humana. Nisto, a I.S. não foi além do quadro capitalista da abundância propiciada pela automação, limitando-se a descrever o fim do trabalho como um imenso e apaixonante lazer. 

A esquerda comunista italiana tinha posto o comunismo como abolição do mercado e rompido com o culto das forças produtivas, mas ignorou a formidável potência subversiva das medidas comunistas concretas. Bordiga adiou a comunização para depois da tomada do poder. A I.S. mostrou a revolução como uma desmercadorização imediata e progressiva. Ela viu o processo revolucionário nas relações humanas. O Estado não pode ser destruído só no plano militar. Mediação da sociedade, o Estado deve ser também aniquilado pela destruição das relações capitalistas que o sustentam.   

A I.S. cometeu um erro simétrico ao de Bordiga, que reduzia a revolução à aplicação de um programa. A I.S. reduziu a revolução à subversão das relações imediatas. Nem Bordiga nem a I.S. viram a totalidade. Ele concebeu um todo separado das relações reais e das medidas práticas; ela, um todo sem unidade ou determinação, uma adição de medidas pontuais se estendendo pouco a pouco. Incapazes de dominar teoricamente a totalidade do processo revolucionário, ambos recorreram a panacéias organizativas: o partido, para Bordiga; os conselhos, para a I.S. 

Bordiga despersonalizou excessivamente o movimento, ao ponto de se negar e desaparecer num anonimato automutilador que permitiu todas as manipulações do PCI (bordiguista). A I.S. , ao contrário, afirmou o indivíduo até o elitismo, chegando a tomar-se como o centro do mundo. 

Embora tenha praticamente ignorado Bordiga, a I.S. contribuiu tanto quanto ele para a síntese revolucionária que se delinearia em 1968.

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